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O TRABALHO E OS SABERES DO TRABALHO

2.3 A divisão social e técnica do trabalho em saúde

Ao apresentarmos alguns elementos sobre a historicidade do trabalho em saúde, também o aspecto da divisão social foi, de alguma forma, levantado. Porém, é importante ressaltar que essa divisão, segundo Matumoto et al. (2005, p. 20) permanece “intimamente relacionada às nossas matrizes incorporadas, ou seja, é tomado como algo natural, já dado” passando de forma despercebida para a maioria dos profissionais do setor.

Para as autoras, “a divisão social do trabalho é inerente aos diversos modos de produção da sociedade e reflete a divisão de classes sociais, tendo em vista as diferenças que as constituem.” (MATUMOTO et al., 2005, p.21). A divisão social aparece mais camuflada, mas pode ser apreendida em diferentes momentos como, por exemplo, na diferença de remuneração, já que se destina ao médico maior poder e salário, à enfermeira um salário intermediário, às auxiliares um salário menor, sendo os agentes comunitários de saúde os mais precariamente remunerados. Também pode ser percebida na flexibilização das jornadas de trabalho a serem cumpridas; no oferecimento e liberação diferenciada para participação de cursos de capacitação; na representação da equipe em diferentes eventos. As autoras assinalam ainda que

As relações de poder estabelecidas nas divisões de classe também são reproduzidas na divisão social/técnica do trabalho assim como as relações políticas e ideológicas, conforme os lugares das classes sociais de que são provenientes os trabalhadores, aceitas e reforçadas culturalmente como inerentes às relações sociais. (MATUMOTO et al., 2005, p.21)

A divisão técnica é resultado do trabalho parcelado em função do modo de produção capitalista. Verifica-se que, quanto maior o avanço tecnológico mais se acentua essa divisão - que não deixa de estar arraigada à divisão social do trabalho. De modo geral, o trabalho manual é executado pelos trabalhadores de classes sociais menos favorecidas, enquanto o intelectual é da responsabilidade daqueles que pertencem às classes mais privilegiadas (MATUMOTO et al., 2005).

No trabalho em saúde, a própria formação já delineia claramente essa divisão entre os trabalhadores universitários e os de nível médio. A categoria médica, subdivida por especialidades, vai levar a um trabalho cada vez mais fragmentado. Também o trabalho da enfermagem foi redividido, cabendo à enfermeira com maior qualificação, o trabalho mais intelectual; às técnicas e auxiliares de enfermagem, com menor qualificação, a parcela mais manual do trabalho e às ACS as atividades mais simplificadas e manuais.

Com a institucionalização das práticas de saúde, se acentua a divisão técnica do trabalho devido à perda do controle sobre os meios de trabalho, à crescente especialização e à maciça incorporação de tecnologias. Desse modo, o trabalho médico e o trabalho em saúde, em geral, voltam-se para os procedimentos em detrimento das necessidades das pessoas, perdendo assim, cada vez mais sua dimensão cuidadora (FRANCO; MERHY, 2004).

Nesse sentido, também o trabalho de enfermagem se constituiu e se mantém até os dias atuais subdividido por uma relação hierárquica e técnica entre o trabalho da enfermeira e das auxiliares/técnicas de enfermagem. Essa divisão teve origem na formação diferenciada dos seus agentes, a partir da classe à qual pertencem e na própria diferenciação das atividades atribuídas a cada um deles.

A institucionalização do ensino das enfermeiras teve início nos treinamentos realizados no hospital, em 1860, fortemente pautado na disciplina e na hierarquia do trabalho. As candidatas oriundas da classe social mais elevada,

chamadas lady-nurses, eram preparadas para o ensino e supervisão do pessoal, enquanto as nurses, oriundas das classes menos privilegiadas, trabalhavam e moravam no hospital durante todo o curso e eram preparadas para a execução do cuidado direto ao paciente, sob a supervisão da lady-nurse (MELO, 1986).

A enfermagem se institucionaliza no século XIX, no movimento de transformação do hospital num instrumento de cura, atendendo às novas necessidades sociais. No crescente processo de industrialização, a força de trabalho torna-se um bem precioso ao capital, sendo necessária, portanto, a sua recuperação. Trata-se de uma divisão do trabalho fundada na lógica capitalista, que busca dar conta de atender ao maior fluxo de pacientes, com menor tempo de internação, utilizando, para isso, grande número de pessoal de enfermagem sem preparo algum (ALMEIDA; ROCHA, 1989).

Verificamos então que, embora a divisão social e técnica já existisse, é com o taylorismo que ela se intensifica, em nome de uma racionalidade técnica, visando maior produtividade com menor gasto, mais eficiência com menos tempo de internação.

Conforme a Lei do Exercício Profissional 7.498/86 em vigor, (BRASIL, 1986) cada um dos integrantes da enfermagem tem suas atividades claramente definidas, estabelecendo-se a divisão entre o trabalho intelectual da enfermeira e o trabalho manual da auxiliar/técnica de enfermagem. A enfermeira atende, assim, às demandas organizacionais, assumindo as funções mais administrativas, como é desejável à organização capitalista. Na diferenciação das tarefas, de acordo com os diferentes graus de qualificação, as auxiliares/técnicas de enfermagem permanecem voltadas para o cuidado, desenvolvendo maior destreza em determinadas técnicas, numa expressão taylorista do trabalho (ALVES, 1997).

As auxiliares/técnicas de enfermagem, além de lidar com a vida e com a morte, enfrentam condições de trabalho de contínuo desgaste, recebem salários quase sempre incompatíveis com as suas necessidades o que, via de regra, obriga- as à dupla ou tripla jornada de trabalho em diferentes instituições. Essa realidade se agrava quando a mulher, além das jornadas de trabalho externo, enfrenta diariamente as várias atividades domésticas (BRITO, 1999).

Nesse sentido, Fonseca (2000, p. 22-3) assinala que “capital e patriarcado (...) orquestram as possíveis transmutações dos sentidos de dominação e exploração neles inscritos, bem como a extração do reconhecimento e legitimação das próprias dominadas”. É assim que as auxiliares/técnicas de enfermagem, apesar de estarem sendo espoliadas, passam a celebrar seus dominadores como fontes de salvação e amparo. Afinal,

o emprego para elas significa a própria condição de se manterem vivas e a seus familiares. A conquista do mesmo, após a concorrência seletiva, torna-se uma grande vitória que, aliada à consciência da crise social do desemprego e de suas baixas qualificações técnicas e escolares, as transforma não só em trabalhadoras, mas em devotadas trabalhadoras. (FONSECA, 2000, p. 137)

Sob essa ótica, pode-se entender, em parte, a atitude de algumas das auxiliares/técnicas, tais como, a aceitação da submissão ao outro, às condições de trabalho e às demais injustiças às quais são submetidas no cotidiano da saúde. Trata-se de uma forma de “sobreviver e vencer no sistema produtivo à custa do silenciamento de seus corpos e mentes, negando-se igualmente a orquestrarem as possibilidades coletivas de suas vozes.” (FONSECA, 2000, p. 72).

Assim, a organização do trabalho contribui de diferentes maneiras para a submissão de algumas das trabalhadoras. Mesmo aquelas que iniciaram há pouco tempo na profissão, é comum manifestarem um apego a tudo que diz respeito ao seu trabalho. O trabalho em saúde é sustentado como

construção material e simbólica, significando-se não apenas pela sua capacidade de capturar o trabalho e torná-lo produtivo, como por ser capaz de recapturar os próprios sujeitos do mesmo, fazendo-os experimentarem, mesmo que de forma consentida e no mais das vezes inconsciente, conteúdos que lhes são familiares em outras esferas da vida social. (FONSECA, 2000, p. 114)

É um trabalho fundado pela estratificação social, hierarquizado e permeado pelas relações de gênero e poder, sobre o qual a maioria dos trabalhadores desconhece a constituição histórico-social.

Assim, tendo revisto alguns aspectos relevantes sobre a constituição do trabalho em saúde, passamos agora a enfocar o trabalho da saúde pública e suas transformações - cenário deste estudo.

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