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A formação de nível superior das profissionais da saúde

OS SABERES DO TRABALHO NO PROGRAMA SAÚDE DA FAMÍLIA

5.1 O saber formalizado dos profissionais da Saúde da Família

5.1.3 A formação de nível superior das profissionais da saúde

O ensino superior, médico e de enfermagem, seguiu, durante muitos anos, o modelo disciplinar centrado numa racionalidade biomédica, restrito à sua dimensão biológica, com uma visão organicista do paciente e a uma análise do processo saúde-doença, enfocando prioritariamente a doença e as medidas terapêuticas aplicáveis a ‘cada caso’. O domínio teórico das disciplinas biomédicas, que fundamentavam a organização curricular, era a condição para o início da formação profissional.

O ensino clínico, desenvolvido em sua maior parte em hospitais, permitia que, de modo geral, os pacientes fossem tomados como objetos de aprendizagem, desvinculados do seu contexto, distanciados das contradições do mundo de fora, do

‘extra-muros’. Trata-se do modelo médico hegemônico de ensino: organicista, mecanicista e ahistórico, que subtrai da formação profissional outras abordagens, impedindo assim, uma prática socialmente construída; o usuário é tomado como objeto do trabalho – com pouca ou nenhuma participação no processo. (ALMEIDA et al., 1999).

Assim, pode-se depreender que a formação pautada nessas bases propicia uma prática médica na qual o profissional pode construir seu mundo próprio de experiências e assumir o tratamento dos ‘seus’ casos, com uma autonomia profissional que está na origem da profissão e lhe garante status e controle do trabalho. Essa condição coloca o médico numa posição de dominação em relação aos demais trabalhadores da saúde (SCHERER, 2006).

Em relação à enfermeira, essa formação leva a uma segmentação de diferentes conteúdos, ao descentramento do sujeito e à fragmentação do cuidado, predominando em todo atendimento o aspecto curativo. Além disso, com a divisão técnica do trabalho, a enfermeira, via de regra, é responsável pela coordenação e supervisão do serviço de enfermagem. A profissional, ao se inserir no serviço, de modo geral, passa a assumir os objetivos e processos de trabalho já determinados. Nessa perspectiva, é esperado pela instituição que a enfermeira desempenhe inúmeras tarefas, além de responder pela organização, condução e supervisão do processo de trabalho, de maneira que, apesar de todo o investimento em sua qualificação, muitas vezes, ela sofre um sério desencantamento no que diz respeito ao campo de sua autonomia e de seu status profissional (VILLA, 2006).

Não nos deteremos nessa temática, uma vez que se encontra extensa bibliografia referente ao ensino superior dos profissionais da saúde, notadamente, a partir das propostas de mudanças que vêm se processando no trabalho do setor saúde, requisitando diversas reformulações no sistema de formação de seus trabalhadores.

Nesse sentido, o Ministério da Saúde e da Educação têm oferecido estímulos aos processos de mudança curricular do ensino superior, que se refletem nas práticas profissionais em saúde.

Destacamos como um dos marcos desse processo, a elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Medicina de do Curso de

Enfermagem, em 2001 pelo Conselho Nacional de Ensino, visando proporcionar às Instituições de Ensino Superior um direcionamento para a implantação e a implementação de novos projetos político-pedagógicos, que pudessem dar maior sustentação às transformações da área da saúde (BRASIL, 2001b).

Segundo as novas diretrizes curriculares, os conteúdos essenciais para os cursos devem estar relacionados com todo o processo saúde-doença do cidadão, da família e da comunidade, integrados à realidade epidemiológica e profissional, proporcionando a integralidade das ações; devendo contemplar as ciências biológicas e da saúde, priorizando também as ciências humanas e sociais (BRASIL, 2001b). Tais diretrizes norteiam, desde os conteúdos essenciais, as propostas metodológicas, os objetivos dos cursos, até o perfil dos profissionais a serem formados, visando uma capacitação comprometida com as transformações das práticas de saúde, notadamente de acordo com o contexto brasileiro de construção do SUS e com o novo modelo assistencial.

Nessa perspectiva, o Ministério da Saúde propôs diferentes fóruns para possibilitar o diálogo entre instituições formadoras e gestores do sistema de saúde, buscando definir os caminhos que a formação deve percorrer para atender às necessidades do SUS. Também foi oferecido apoio técnico e financeiro ao desenvolvimento das mudanças curriculares para viabilizar a adoção dessa orientação.

São muitos os desafios ainda presentes como a ampliação da clínica, a articulação entre indivíduos e coletivo no trabalho em equipes, a construção da integralidade da atenção que “têm sido propostos, simultaneamente para as escolas e para o sistema de saúde. E deverão ser enfrentados conjuntamente no processo de formação e de transformação das práticas de saúde.” (FEUERWERKER; ALMEIDA, 2003, p. 352). Trata-se de projetos inovadores, mais críticos e criativos para que os atores vivenciem os princípios de integralidade, eqüidade e universalidade preconizados pelo SUS, e possam contribuir efetivamente na construção de novos modelos de atenção à saúde - que incluam o desenvolvimento do aprendizado e da prática multiprofissional como elemento estratégico da mudança.

Contudo, os sujeitos desse estudo foram, em sua maioria, formados sob a égide médico-hegemônica, conforme aponta claramente o discurso de uma das médicas e das enfermeiras:

Eu formei e fui direto pra especialidade. Todos meus colegas dessa época, já entravam escolhendo a especialidade que iam fazer. Eu escolhi a ginecologia e de 1982 até 2002 só cuidei de mulheres. (M Marta)

Mas a formação era muito diferente de hoje, pra você ver, eu não vi nada sobre consulta de enfermagem, nem tinha isso, vim aprender aqui no trabalho com as colegas mais novas. (E Mara)

Eu formei em 99 na Federal e nem se ouvia falar de PSF. (E Cleide)

As trabalhadoras fizeram poucas referências sobre a sua formação acadêmica, reiterando em diversos momentos o aprendizado com o trabalho diário:

O trabalho é uma fonte de saber porque a gente já tem uma carga teórica do Curso, que exige a prática pra te dar um conhecimento consolidado. (E Laura)

Porque eu fiz residência em clínica médica e logo que formei vim pra saúde pública, mas estava há 12 anos afastada da pediatria, que estou aprendendo agora. (M Célia)

O PSF ajuda a gente a ter uma visão social muito importante e ajuda a ter um conhecimento mais amplo dos saberes médicos. Você tem uma atualização em pediatria, em ginecologia, em clínica médica, enquanto se você fica só numa área você não consegue isso. Então, é um campo de saberes muito mais amplo que qualquer outro. (M Regina)

Finalizando, reconhecemos a importância da formação dos

trabalhadores para a efetivação das mudanças da área da saúde, contudo, concordamos com Merhy (2002) ao assinalar que as tecnologias de ação mais estratégicas na assistência estão contidas nos processo de intervenção em ato, ou seja, no momento assistencial. De maneira que é no trabalho diário, dependendo das escolhas realizadas pelo trabalhador que as mudanças podem ocorrer.

Verificamos assim, que as profissionais vêm aprendendo a lidar com as novas propostas de reformulação da assistência na saúde coletiva – como pioneiras da construção do novo modelo assistencial – num verdadeiro processo de ensino- aprendizagem no cotidiano do trabalho, como veremos adiante.

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