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Como sabemos, toda observação é feita a partir de um ponto de vista, de

uma Weltanschauung, de uma teoria. Isso se aplica perfeitamente às ciências do

homem, talvez até mais que às da natureza, já que tendemos não apenas a

perceber, mas também julgar os fatos sociais a partir de nossos (pré)conceitos. Essa

compreensão de que o vetor epistemológico vai do racional ao real é um aspecto

essencial da reflexividade e da relacionalidade da ciência social reflexiva que

Bourdieu propõe; já que impõe uma vigilância epistemológica constante, sobre os

pressupostos empregados, temas, procedimentos e sobre o próprio pesquisador

(seu posicionamento no campo, relação com o objeto etc.); e, ao mesmo tempo, põe

em cheque o teoricismo. Toda a construção teórica é, como veremos, uma

construção do trabalho empírico e para o trabalho empírico (racionalismo aplicado).

Assim como os procedimentos das ciências da natureza, vide exemplo de

Bachelard sobre a separação dos isótopos no espectroscópio de massa, os

procedimentos das ciências do homem também são produzidos tecnicamente. Uma

observação participante, a formulação e aplicação de uma entrevista ou de um

questionário — e a própria análise das respostas obtidas —, ou mesmo a análise de

um texto, são atividades realizadas a partir de um ponto de vista teórico, quer o

pesquisador saiba ou não. As ciências da natureza, entretanto, têm uma facilidade

óbvia, os isótopos no espectroscópio podem até apresentar resultados

surpreendentes e difíceis de serem interpretados, mas a rigor eles não mentem, não

se esquecem, não se enganam, não mudam de opinião, não se sentem compelidos

a dar uma determinada resposta politicamente correta por conta da pessoa do

pesquisador — e da posição que ocupa no campo — etc. Todos esses obstáculos

apenas mostram como o objeto científico é, na realidade, uma construção.

Sabemos que uma das eternas questões da observação participante reside

no fato de que a presença do pesquisador tende a criar um ambiente artificial,

sempre há a questão de que as pessoas observadas eventualmente não se

comportariam daquela forma se o pesquisador não estivesse presente. A realização

de uma entrevista (ou aplicação de um questionário), por outro lado, coloca para a

pessoa que responde questões sobre as quais ela não necessariamente refletiria, ou

ao menos não refletiria naquele dado momento. Nesse sentido, a crítica de Bourdieu

às pesquisas de opinião se aplica, em grande parte, às pesquisas empíricas nas

ciências humanas:

Uno de los efectos más perniciosos de la encuesta de opinión consiste precisamente en conminar a las personas a responder a preguntas que no se han planteado. Así, por ejemplo, las preguntas que giran en torno a problemas de moral, ya se trate de preguntas sobre la severidad de los padres, las relaciones entre profesores y alumnos, la pedagogía directiva o no directiva, etc., problemas cuya percepción como problemas éticos aumenta a medida que se desciende en la jerarquía social, al tiempo que pueden ser problemas políticos para las clases superiores: uno de los efectos de la encuesta consiste en transformar respuestas éticas en respuestas políticas por el simple efecto de imposición de problemática. (BOURDIEU, 2011 [1984], p. 2249)

A esta artificialidade das perguntas sobre as quais as pessoas não refletiriam

podem ser somados os demais fatores que mencionamos anteriormente (enganos,

9 Tradução nossa: “Um dos efeitos mais perniciosos de pesquisa de opinião pública consiste

precisamente em induzir as pessoas a responder a perguntas que não haviam colocado parasi mesmas. Assim, por exemplo, as perguntas que giram em torno de questões morais, sejam perguntas sobre a severidade dos pais, as relações entre professores e alunos, pedagogia diretiva ou não-diretiva, etc., problemas cuja percepção como problemas éticos aumenta à medida em que se desce na hierarquia social, enquanto podem ser problemas políticos para as classes mais altas: um dos objetivos da pesquisa é transformar respostas éticas em respostas políticas pelo simples efeito de imposição de uma problemática.”

esquecimentos, inverdades, se sentir compelido a responder de determinada forma

etc.), e, claro, a própria presença do gravador ou o fato de o entrevistador tomar

notas. Quem trabalha com entrevistas livres e até com narrativas e história de vida

(a exemplo do excelente trabalho feito por historiadores orais), eventualmente se

depara com essa artificialidade provocada pela interação, no sentido de que o objeto

não é algo natural mas algo construído.

Apesar das dificuldades, pesquisar dessa forma sempre tende a ser mais

engrandecedor do que o mero teoricismo, as histórias de vida e os relatos, por

exemplo, em que pese a ilusão biográfica,

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tendem a suscitar novas questões,

problemas e reflexões que o pesquisador dificilmente encontraria dialogando apenas

consigo mesmo e com os livros. Voltaremos a essas questões oportunamente, por

enquanto queremos atentar apenas para a questão de que, independentemente do

método e instrumento de coleta de dados empregado, é necessário compreender

que “o real nunca toma a iniciativa já que só dá resposta quando é questionado.”

(B

OURDIEU

; C

HAMBOREDON

; P

ASSERON

, 2015 [1968], p. 48)

Com isso, acreditamos ter deixado razoavelmente claro que, também nas

ciências do homem, o objeto é surracionalmente construído. Por mais que a

problemática e os instrumentos de coleta de dados pareçam neutros ou

desinteressados, quer o pesquisador saiba ou não, a teoria permeia todo o seu

trabalho, que se vincula a uma determinada filosofia do conhecimento — pouco

importando se ele sabe disso, ou não. Nesse sentido, além de só responder quando

é questionado, o real só tende a responder ao que foi questionado. A passagem que

se segue, de Bourdieu, Chamboredon e Passeron, deixa isso bastante claro:

Se é necessário lembrar que “a teoria domina o trabalho experimental desde sua concepção até as últimas manipulações de laboratório”, ou ainda que “sem teoria, não é possível regular um único instrumento, interpretar uma única leitura” é porque a representação da experiência como protocolo de uma constatação isenta de qualquer implicação teórica transparece em mil indícios, por exemplo, na convicção, ainda bastante comum, de que existem fatos que poderiam sobreviver tais 10 Com isso queremos nos referir à (re)construção de uma linearidade artificial na história da vida do

quais à teoria para a qual e pela qual tinham sido feitos. No entanto, o destino infeliz da noção de totemismo (que o próprio Lévi-Strauss aproxima do destino da histeria) bastaria para destruir a crença na imortalidade científica dos fatos: uma vez abandonada a teoria que os reunia, os fatos de totemismo voltam ao estado de poeira de dados de onde tinham sido tirados, durante algum tempo, por uma teoria e de onde poderiam ser tirados por outra teoria com a condição de lhes conferir outro sentido.

Basta ter tentado uma vez submeter à análise secundária o material coletado em função de outra problemática, por mais neutra que esta possa ser na aparência, para saber que os data mais ricos nunca estariam em condições de responder completa e adequadamente a questões para as quais e pelas quais não foram construídos. Não se trata de contestar, por princípio, a validade da utilização de um material já usado, mas sim lembrar as condições epistemológicas desse trabalho de retradução que incide sempre sobre fatos construídos (bem ou mal) e não sobre dados. Semelhante trabalho de interpretação, cujo exemplo já era dado por Durkheim em sua obra O suicídio, poderia até mesmo constituir o melhor treino para a vigilância epistemológica na medida em que exige a explicitação metódica das problemáticas e princípios de construção do objeto que são investidos tanto no material, quanto no novo tratamento que lhe é aplicado. (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2015 [1968], p 48- 49)11

Estamos certos, portanto, de que o objeto é teoricamente construído, e esse

exercício — ou eventual necessidade — de submeter os dados coletados em função

de uma problemática a questões outras, para as quais e pelas quais não foi

construído,

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confirmam isso. Conforme ficou registrado, já na epígrafe do presente

capítulo, precisamos ter a consciência de que os objetos científicos são consciente e

metodicamente construídos.

Em se tratando de pesquisa em ciências sociais, é necessário advertir,

entretanto, que esta consciência de que o objeto é teoricamente construído não

pode jamais ser confundida com o teoricismo ou conduzir o pesquisador ao

teoricismo. Nesse sentido, concordamos com Howard Becker de que a teoria é um

mal necessário, precisamos fazer o trabalho teórico, mas não devemos ser

seduzidos por ele a fim de torná-lo um fim em si mesmo, possibilitando que isso

11 Os trechos aspeados referem-se a citações de K. Popper e P. Duhem feitas pelos autores.

12 Enfrentamos esse problema no trabalho intitulado “O habitus jurídico-acadêmico: uma leitura a partir dos depoimentos de professores de direito” apresentado no IX Encontro de História Oral do Nordeste. Naquela ocasião, estávamos prestes a redefinir o tema do projeto de pesquisa para o que veio a ser a presente pesquisa, e utilizávamos entrevistas gerais sobre as trajetórias profissionais de professores para tentar identificar aspectos específicos de como o habitus é formado (cf. GONÇALVES, 2013).

paralise nossa própria capacidade de pesquisa, nesse sentido, a teoria é, ainda de

acordo com Becker, um animal perigoso e ganancioso que deve ser mantido sempre

em sua jaula, e em relação ao qual precisamos estar sempre em estado de alerta.

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Concordamos, ainda, com Bourdieu, que a teoria não é um discurso

profético ou programático criado a partir da articulação de outras teorias, mas um

esquema de percepção, apreciação e ação voltado para a pesquisa, uma construção

que toma forma pelo trabalho empírico e para o trabalho empírico. Dito de outra

forma, trata-se da realização, nas ciências sociais, do que Bachelard identificava

como sendo a necessidade de aplicar o racionalismo e de compreender o

empirismo:

La théorie n'est pas une sorte de discours prophétique ou programmatique, né de la dissection ou de l'amalgame de théories (dont le meilleur exemple reste le schème AGIL de Parsons que certains tentent de ressusciter aujourd'hui). La théorie scientifique telle que je la conçois se présente comme un programme de perception et d'action, un habitus scientifique, si vous préférez, qui se dévoile seulement dans le travail empirique où elle se réalise. [It is a temporary construct which takes shape

for and by empirical work. (BOURDIEU, 1992b, p. 16114)] En conséquence, on

a plus à gagner en s'affrontant à de nouveaux objets qu'en s'engageant dans des polémiques théoriques qui ne font que nourrir un métadiscours auto-engendré et trop souvent vide à propos de concepts traités comme des totems intellectuels.

Traiter la théorie comme un modus operandi qui guide et structure pratiquement la pratique scientifique implique évidemment que l'on abandonne la complaisance un peu fétichiste que les théoriciens théoricistes 13 “(...) some researchers — most especially graduate students — are especially vulnerable to the questioning doubts that paralyze thought and will and work. For them the evil is serious. To repeat, we still have to do the theoretical work, but we needn't think we are being especially virtuous when we do. Theory is a dangerous, greedy animal, and we need to be alert to keep it in its cage.” (BECKER, 1993, tradução nossa: “(…) alguns pesquisadores — especialmente estudantes de

graduação — são especialmente vulneráveis às dúvidas que paralisam o pensamento, a vontade e o trabalho. Para eles o mal é sério. Para repetir, ainda temos que fazer o trabalho teórico, mas não precisamos pensar que estamos sendo especialmente virtuosos quando o fazemos. A teoria é um animal perigoso, ganancioso, e precisamos estar alerta para mantê-lo em sua jaula.”)

Esta passagem, longe de ser uma simples crítica ao teoricismo, orientou a presente pesquisa, mas mesmo assim tivemos que dedicar um tempo precioso estudando e escrevendo, num esforço de compreensão de teorias que a rigor não foram diretamente úteis ao presente trabalho.

14 Esta passagem, ausente da edição francesa, consta na edição inglesa (de onde foi extraída) e na edição em espanhol, nos seguintes termos: “Es una construcción temporal que toma forma por y para el trabajo empírico.”

Como a passagem em questão reforça este aspecto fundamental da ciência reflexiva bourdieusiana, o de que a teoria é construída pela e para a prática da pesquisa, preferiu-se incluí-la dessa forma.

lui accordent. C'est pourquoi je n'ai jamais éprouvé le besoin de retracer la généalogie des concepts que j'ai forgés ou réactivés, comme ceux d'habitus, de champ ou de capital symbolique. N'étant pas issus d'une parthénogenèse théorique, ces concepts ne gagnent pas beaucoup à être resitués par rapport aux usages antérieurs. C'est dans la pratique de la recherche que ces concepts nés des difficultés pratiques de l'entreprise de recherche doivent être évalués. La fonction des concepts que j'emploie est d'abord et avant tout de désigner, de manière sténographique, une prise de position théorique, un principe de choix méthodologique, négatif autant que positif. La systématisation vient nécessairement ex post, à mesure que des analogies fécondes émergent, à mesure que les propriétés utiles du concept sont énoncées et mises à l'épreuve.

Je pourrais, paraphrasant Kant, dire que la recherche sans théorie est aveugle et que la théorie sans recherche est vide. (…) (BOURDIEU,

1992a, p. 136-13715)

Para Bourdieu, é muito mais proveitoso, portanto, construir novos objetos,

efetivamente pesquisar, do que investir em debates teóricos que apenas alimentam

um metadiscurso perpétuo, o que alás é plenamente condizente com o que

Bachelard dizia sobre até mesmo um método excelente perder a fecundidade se o

seu objeto não é renovado.

Essa forma de trabalhar a teoria, voltando à para a prática, faz com que se

rompa com o fetichismo com a teoria, um fetichismo especialmente presente no

15 Tradução livre: “A teoria não é um tipo de discurso profético ou programático, nascido do desmembramento ou do amálgama de outras teorias (o melhor exemplo é o esquema AGIL de Parsons que alguns tentam ressuscitar hoje em dia). A teoria científica, tal como eu a concebo, se apresenta como um programa de percepção e ação, um habitus científico, se vocês preferirem, que se revela apenas no trabalho empírico onde ela se realiza. [É uma construção temporária que toma forma para e pelo trabalho empírico.] Consequentemente, pode-se ganhar muito mais confrontando novos objetos do que se envolvendo em controvérsias teóricas que só alimentam um metadiscurso autoengendrado, mais das vezes vazio, tratando os conceitos como totens intelectuais.

Tratar a teoria como um modus operandi que guia e estrutura a prática científica implica, evidentemente, abandonar a complacência um tanto fetichista que os teóricos teoricistas costumam ter com ela. É por isso que eu nunca senti a necessidade de traçar a genealogia de conceitos que eu forjei ou reativei, como o de habitus, de campo ou de capital simbólico. Não sendo produto de uma partenogênese teórica, estes conceitos não ganham muito ao serem resituados em relação aos seus usos anteriores. É na prática da pesquisa que estes conceitos --- nascidos das dificuldades práticas do mpreendimento da pesquisa --- devem ser avaliados. A função dos conceitos que eu utilizo é, antes de tudo, uma forma de designar, de uma forma estenográfica, uma tomada de posição teórica, um princípio de escolha metodológica, tanto negativo quanto positivo. A sistematização vem necessariamente ex post, na forma de analogias férteis emergindo pouco a pouco na medida em que as as propriedades úteis do conceito são definidas e testadas.

Eu poderia, parafraseando Kant, dizer que a investigação sem teoria é cega e que a teoria sem pesquisa é vazia. (...)”

Direito, onde se produzem estudos e mais estudos cujo propósito é unicamente

teórico. Teorias são dissecadas, articuladas e reconstruídas ad nauseam, sem

nenhum propósito com a pesquisa empírica. Claro que não há, a priori, nenhum

pecado nesta forma abstrata — filosófica, poderíamos dizer — de trabalhar as

teorias. Não é crime dedicar-se à abstração pela abstração. Apenas não pode ser

considerada uma prática científica de acordo com o Novo espírito científico.

A própria recusa de Bourdieu em realizar a genealogia dos conceitos de

habitus e campo, confrontando-os com seus usos prévios pode ser melhor

compreendida quando se tem em mente que tais conceitos são destinados à prática

da pesquisa e através dela são ressignificados, eles relacionam teoria e prática e

relacionam os próprios objetos a que se referem, e é nessa perspectiva que eles são

instrumentalizados na presente pesquisa.

Ainda sobre a passagem transcrita, ao mesmo tempo em que ela retoma a

epistemologia bachelardiana, com a noção de que o objeto é teórica e materialmente

construído, retoma também a epistemologia de Cassirer, na qual os conceitos são

proposicionais, o que fica especialmente claro em Substance and Function, no qual

ele estuda os conceitos relacionais e testa a própria ideia de conceito, aplicando-a

ao conceito de espaço, por exemplo. É principalmente a partir desses dois autores

— embora não apenas deles — que a obra de Bourdieu (re)constrói a filosofia da

ciência que aplica aos objetos que estuda, e, sempre é necessário deixar claro para

fins de objetivação, que é a partir da forma como a presente pesquisa reconstrói a

referida filosofia que é construída a filosofia da ciência que será aplicada aos objetos

estudados.

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