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Embora Bachelard se refira às ciências da natureza, ter consciência de que

o objeto é construído também é especialmente importante nas ciências do homem,

observações participantes, questionários, entrevistas e instrumentos de coletas de

dados em geral são teorias materializadas, quer o pesquisador tenha consciência

disso, ou não. Estar ciente disso, para além do mero procedimento metodológico

(e.g. como construir e conduzir a entrevista), fornece ao pesquisador possibilidades

de uma melhor construção do objeto da pesquisa, uma construção relacional. Esta

construção, evidentemente, segue o sentido do vetor epistemológico que vai do

racional ao real:

Se soubéssemos, a propósito da psicologia do espírito científico, colocar-nos precisamente na fronteira do conhecimento científico, veríamos que é de uma verdadeira síntese das contradições metafísicas que se ocupa a ciência contemporânea. Todavia o sentido do vetor epistemológico parece-nos bem claro. Êle [sic] vai seguramente do racional ao real e de nenhum modo, ao contrário, da realidade ao geral como o professavam todos os filósofos, desde Aristóteles até Bacon. Noutras palavras, a aplicação do pensamento científico parece-nos essencialmente realizante. (BACHELARD, 1968 [1934], p. 13)

Ter consciência disso nos faz perceber com clareza que sempre que nos

colocamos diante de um objeto de pesquisa, nós (re)construímos e (re)organizamos

o real a partir de nossa perspectiva teórica — vale lembrar que o sentido original de

teoria era o de visão de mundo.

Essa é uma questão recorrente, aliás, em tradições de pesquisa díspares,

tais como a sociologia estadunidense e a francesa, o que se deve, evidentemente,

ao próprio estágio de desenvolvimento das ciências contemporâneas, que permite o

desenvolvimento de concepções homólogas por pesquisadores teórica e

geograficamente tão distantes entre si. Se bem que, nesse caso, a recorrência pode

se dever, em parte, a uma influência não percebida de Bachelard. Sobre isso, no

mundo anglófono é muito comum que se diga que os fatos são permeados pela

teoria ou carregados de teoria (theory laden), muitas vezes aludindo a Kuhn, cuja

obra epistemológica pode ter uma dívida não reconhecida com a obra de

Bachelard.

7

A questão da construção teórica do real se faz presente, portanto, em obras

teórica e geograficamente distantes, o que é compreensível, já que não temos como

pesquisar senão a partir de pressupostos teóricos, implícitos ou explícitos. Nesse

sentido, é necessário lembrar — ad nauseam — que os presentes capítulos não se

destinam apenas a dar ao presente relatório de pesquisa a densidade e maturidade

que se espera de uma tese, mas sobretudo deixar claro o trabalho de objetivação

que realizamos sobre os nossos próprios pressupostos teóricos, o que por si só os

justificaria, além, claro, de eles terem o mérito de deixar clara a nossa própria

7 Howard Becker, por exemplo, diz: “Thomas Kuhn persuadiu-me há muito tempo de que fatos nunca são apenas fatos, mas antes, como disse ele, estão ‘carregados de teoria’.” (BECKER, 2011

[2007])

Fazer um paralelo entre os dois autores demandaria um estudo à parte. Há quem reconheça a influência de Bachelard em Kuhn e há quem sugira que é possível fazer um paralelo entre os dois autores, nesse sentido, Elyana Barbosa (1996, p. 86-87), por exemplo, faz um breve comentário sobre a ideia de cidade científica (cité scientifique, que abordamos anteriormente) de Bachelard e comunidade científica (scientific community) em Kuhn, observando que este último refere-se à reunião de especialistas que usam um mesmo paradigma, enquanto Bachelard fala em cidade científica num sentido mais amplo, para se referir não apenas a uma história ou mommento da ciência mas à organização de uma cultura científica. Conclui a autora dizendo que “É possível estabelecer uma relação entre Bachelard e Kuhn.”

O próprio Kuhn não menciona Bachelard uma única vez em seu célebre The structure of scientific

revolutions, mas reconhece que autores como Alexandre Koyré e Hélène Metzger, que

conheceram e certamente foram influenciados por Bachelard, foram “Particularly influential” para suas reflexões, reconhece também que conhecia o trabalho de Meyerson, que como sabemos, é anterior ao de Bachelard. Kuhn diz ter se encontrado com Bachelard uma única vez e parece que a experiência não foi exatamente profícua: “Em alguma ocasião anterior, eu já havia conhecido Koyré — acho que ele estivera nos Estados Unidos. Meu francês não era bom, os franceses não eram acolhedores, mas [Koyré] me deu uma carta de apresentação para Bachelard, e disse que eu definitivamente deveria me encontrar com Bachelard. Entreguei a carta, fui convidado a ir até lá, subi as escadas. A única coisa dele que eu tinha lido era seu Esquisse d'une probléme

physique [Esboço de um problema de física], acho que é esse o título. Mas eu tinha ouvido falar

que ele fizeram um trabalho brilhante sobre literatura americana , sobre Blake e outras coisas assim; supus que me receberia e que estaria disposto a conversar em inglês. Um sujeito bem corpulento, de camiseta, veio até a porta e me convidou para entrar; eu disse ‘Meu francês é ruim, podemos falar em inglês?’. Não, ele me fez falar em francês. Bem, a coisa toda não durou muito.” (KUHN, 2006 [2000], p. 344)

De qualquer forma, parece razoável supor que Kuhn possa não tenha sido influenciado pelo trabalho de Bachelard diretamente (já que este demorou a ser conhecido fora da França), mas tenha tido alguma influência através de Koyré.

A exemplo do que dissemos sobre Popper, consideramos que, no geral, a epistemologia de Bachelard é mais apropriada à ciência contemporânea do que a de Kuhn.

disposição escolástica, aqui materializada na propensão ao teoricismo. Conforme

adverte Howard Becker, “So we all have to be epistemological theorists, know it or

not, because we couldn’t work at all if we didn’t have at least an implicit theory of

knowledge, wouldn't know what to do first. In that sense, theory is necessary.”

(B

ECKER

, 1993

8

).

O simples ato de observar, aliás, é permeado pela teoria (aqui no sentido de

visão de mundo), já que apreendemos o mundo a partir de esquemas de percepção,

apreciação e ação previamente estruturados. Isso vale inclusive para o senso

comum, como diz Bertalanffy, a Weltanschauung, a visão de mundo do homem

comum é obra de autores como Newton, Locke, Darwin, Adam Smith, Freud, mesmo

que o referido homem nunca tenha ouvido falar de nenhum deles. Da mesma forma,

a visão de mundo do homem da ciência é permeada pelas teorias. “Desde William

James, tem-se repetido freqüentemente que todo homem culto segue fatalmente

uma metafísica.” (B

ACHELARD

, 1968 [1934], p. 11)

No que se refere ao cientista, especificamente, a vigilância epistemológica, o

esforço — individual e coletivo — de objetivação permite que as aproximações

sucessivas afastem as experiências primeiras, a doxa que insiste em permear os

processos científicos, e com isso é possível produzir um conhecimento cada vez

mais aproximado. A construção da ciência, entretanto, acontece na fronteira entre o

racionalismo e o empirismo, se realiza justamente a partir da aplicação da razão.

Trata-se, como já vimos, da percepção de que o objeto é teórica e

tecnicamente construído. Bachelard dá um ótimo exemplo disso quando diz que “As

trajetórias que permitem separar os isotopos no espectroscópio de massa não

existem na natureza; é preciso produzi-las tecnicamente. Elas são teoremas

reificados.” (B

ACHELARD

, 1977 [1949], p. 13) Claro, para todo experimento físico ou

químico, sempre é possível especular que pode existir algum lugar no universo onde

eles acontecem espontaneamente, mas isso não muda o fato de que, aqui, eles

foram teorizados e construídos.

8 Tradução nossa: “Assim, todos temos que ser epistemólogos, sabendo disso ou não, porque não

teríamos como trabalhar se não tivéssemos pelo menos uma teoria implícita do conhecimento, não saberíamos o que fazer primeiro. Nesse sentido, a teoria é necessária.”

Parece tranquilo afirmar, com Bachelard, que o objeto das ciências da

natureza é construído, mas o que se pode dizer do objeto das ciências do homem?

Será possível dizer que classes sociais (Marx), ações sociais (Weber) ou fatos

sociais (Durkheim) são construídos? Existe algo homólogo ao espectroscópio de

massa nas ciências do homem? Responder a essas perguntas pressupõe relembrar

que o real é inesgotável e que o conhecimento que temos das coisas é sempre

aproximado, e, nessa perspectiva, também nas ciências humanas o objeto é

teoricamente construído.