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3.3 O SUBSTANCALISMO NA FILOSOFIA MODERNA

3.3.1 O substancialismo no racionalismo

René Descartes (1596-1650) costuma ser considerado o fundador do

racionalismo continental — embora Francisco Sanches, por exemplo, tenha

antecipado muitos elementos do cartesianismo, foi Descartes quem foi consagrado

como o pai do racionalismo (e para muitos, pai da própria modernidade) —

sobretudo graças às suas Meditationes de prima philosophia (Meditações sobre a

filosofia primeira ou Meditações metafísicas, dependendo da tradução), que pode

ser considerada a obra prima de Descartes. O projeto cartesiano, desde as Regulae,

passando pelo Discurso do Método e culminando nas Meditações, pode ser pensado

tanto como uma defesa de um novo modelo de ciência em oposição ao

conhecimento antigo e medieval — e, nesse sentido, parecido com o de Bacon,

portanto.

Embora funde seu método na dúvida radical — ele cogita que seus sentidos

podem enganá-lo, que pode estar sonhando, e até que pode estar sendo enganado

por um gênio maligno —, o que lhe proporciona uma certeza, a de que ele próprio

existe: cogito ergo sum. Essa certeza, entretanto, deixa Descartes preso em um

solipsismo — como saber que qualquer outra coisa existe? —, cuja saída se dá

através de Deus,

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que afinal deve existir e que possibilita a afirmação da existência

do mundo externo (criado por Deus).

O substancialismo aparece na crença de Descartes na existência de três

14 Alain Badiou lembra que, para Descartes, Deus é necessário como garantia da verdade e por isso justifica a própria ciência, numa perspectiva lacaniana, seria possível dizer que o Deus de Descartes é o Deus do sujeito da ciência: “Para Descartes, Dios es necesario como garantía de la verdad. Por eso la certeza de la ciencia encuentra su justificación en Él. Por lo tanto, será lícito decir, en la lengua de Lacan, que el Dios de Descartes es el Dios del sujeto de la ciencia: lo que constituye un nudo entre el hombre y Dios no es otra cosa que la verdad tal como, bajo las especies de la certeza, se propone a un sujeto.” (BADIOU, 2005. p. 209, tradução nossa: “Para

Descartes, Deus é necessário como garantia da verdade. Por isso a certeza da ciência encontra a sua justificação Nele. Portanto, seria lícito dizer, na perspectiva de Lacan, que o Deus de Descartes é o Deus do sujeito da ciência: o que constitui um vínculo entre o homem e Deus não é outra coisa senão a verdade tal qual, sob as espécies da certeza, se propõe a um sujeito.”)

substâncias: a res cogitans (a consciência), a res extensa (os objetos do mundo) e a

res infinita (Deus). O conhecimento é possível porque pode existir a

correspondência entre os objetos e as ideias que são “são como imagens das

coisas”.

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Embora seu critério racionalista de verdade seja baseado na razão (que as

ideias verdadeiras são aquelas concebidas com clareza e distinção), Descartes

reconhece características essenciais aos objetos, seu exemplo do triângulo parece

ilustrar bem isso quando ele diz que a figura geométrica em questão tem

propriedades que lhes são essenciais. Existe, segundo ele:

(…) uma certa natureza, ou forma, ou essência determinada dessa figura, a qual é imutável e eterna, que eu não inventei e que não depende de forma alguma de meu espírito; como é aparente do fato de se poder demonstrar diversas propriedades desse triângulo, a saber, que seus três ângulos são iguais a dois retos, que o ângulo maior é sustentado pelo lado maior, e outras semelhantes, (…). (DESCARTES, 2005 [1641], p. 98,

grifamos.)

Essa passagem é interessante, ademais, por sugerir que certos

conhecimentos teriam um caráter inato, certas propriedades do triângulo lhe seriam

essenciais, independentemente dos triângulos que vemos e independentemente de

quem vê o triângulo. Embora o próprio Descartes rejeite a possibilidade de que

esses conhecimentos sejam empíricos (já que, para ele, o espírito poderia

demonstrar a propriedade das figuras geométricas independentemente de elas

terem sido experienciadas), ele reconhece uma essência determinada da figura.

Descartes valoriza, portanto, a razão em detrimento da experiência sensível,

seria a razão que possuiria os critérios que permitiriam verificar a verdade, mas isso

não é suficiente para romper com o substancialismo, que permanece, afinal de

contas, nas características essenciais do triângulo.

O substancialismo permeia, também, a filosofia de Nicolas Malebranche

(1638-1715) que problematiza a questão da comunicabilidade entre a res cogitans e

15 “Entre meus pensamentos, alguns são como as imagens das coisas, e é apenas a estes que convém propriamente o nome de idéia (...)” (DESCARTES, 2005 [1641], p. 60)

a res extensa, um dualismo que recolocava um problema que vinha desde filosofia

antiga, o da (in)comunicabilidade entre alma e corpo. A solução dada por Descartes,

de que essa comunicabilidade se dava através da glândula pineal, “the only organ in

the area of the brain which occurs singly and furthermore one whose function is

unknown” (M

ARÍAS

, 2012 [1941]

16

) era no mínimo precária, e Malebranche, em seu

esforço para conciliar o cristianismo e o cartesianismo, propõe que a

comunicabilidade entre a res cogitans e a res extensa era mediada pelo próprio

Deus.

Para Malebranche, a alma está isolada tanto dos objetos do mundo quanto

das outras almas, mas ela possui uma união direta e imediata com Deus, que, por

sua vez, atua no mundo. Seríamos capazes de conhecer as coisas através de Deus.

Como observam Reale e Antiseri, a solução de Malebranche remete a Agostinho e

ao neoplatonismo:

Ma, allora, come si spiega la conoscenza e come è possibile raggiungere la verità? Ciascuna anima resta isolata sia a) dalle altre anime; sia b) dal mondo fisico. Da questo isolamento, che parrebbe veramente assoluto, come si può uscire?

La soluzione di Malebranche si ispira ad Agostino (il quale a sua volta si ispirava al neoplatonismo, sia pure con una serie di mutamenti e riforme): l’anima, che è separata da tutte le altre cose, ha una unione diretta

e immediata con Dio, e quindi conosce tutte le cose mediante la visione in Dio. (REALE; ANTISERI, 2014 [1983])17

16 “In man, the pineal body — the only organ in the area of the brain which occurs singly and furthermore one whose function is unknown — is the point at which the soul and the body can affect one another. From the pineal body the soul directs the activity of the animal spirits, and vice versa. Later Descartes realized the impossibility of explaining the communication which obviously takes place.” (MARÍAS, 2012 [1941], tradução nossa: “No homem, a glândula pineal — o único

órgão na área do cérebro que ocorre de forma singular e, além disso, cuja função é desconhecida — é o ponto em que a alma e o corpo podem afetar um ao outro. Da glândula pineal a alma dirige a atividade dos espíritos animais, e vice-versa. Mais tarde, Descartes percebeu a impossibilidade de explicar a comunicação que obviamente ocorreria.”)

17 Tradução nossa: “Mas, então, como se explica o conhecimento e como se pode chegar à verdade? Cada alma permanece isolado: a) das outras almas; e, b) do mundo físico. Diante deste isolamento, que parece realmente parece absoluto, como se pode sair?

A solução de Malebranche é inspirada em Agostinho (que por sua vez se inspirou no neoplatonismo, ainda que com uma série de mudanças e adaptações): a alma, que é separada de todas as outras coisas, tem uma união direta e imediata com Deus, e, portanto, conhece todas as coisas

Diante dos atos de vontade de cada um, Deus age no mundo — e.g.

movimentando as mãos da pessoa que lê, e consequente as páginas do presente

trabalho. Pela mesma razão, o conhecimento direto do mundo seria, nessa

perspectiva, impossível, mas Deus forneceria as ideias das entidades que existem

para a alma. Vontade e pensamento, em suma, não atuariam sobre os objetos, mas

seriam ocasiões, nas quais Deus atuaria. Embora não tenha sido o primeiro a propor

esta solução ocasionalista,

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Malebranche é quem lhe dá a formulação mais

sistemática.

Benedictus (Baruch) de Spinoza (1632-1677) propôs uma tese mais

ambiciosa, a qual talvez possa ser sintetizada na célebre máxima Deus sive Natura

(Deus, ou natureza). Enquanto Descartes parte da consciência da existência de si

(cogito), Spinoza parte da consciência de Deus. Para Spinoza, Deus e Natureza são

uma mesma realidade, a substância que constitui o universo e todas as coisas que

nele estão, entre as quais a res extensa e a res cogitans:

(…) también el Breve tratado distingue los dos atributos del pensamiento y la extension; pero esta diferencia pasa a segundo plano ante el rasgo común que los une por el hecho de ser calificados y explicados ambos como fuerzas. Son, simplesmente, dos formas o manifestaciones distintas del mismo poder de la naturaleza del que emanan, y esto explica por qué pueden influir la una sobre la otra y determinarse mutuamente. Así como el cuerpo se ofrece al espíritu y provoca en él, de este modo, el acto de la sensación, así también el alma, a su vez, aunque no pueda crear nuevos movimientos corporales, puede, indudablemete, desviar con arreglo a sus decisiones la dirección del movimiento existente. (CASSIRER, 1993

[1907], p. 1119)

18 Malebranche foi precedido, dentre outros, por Arnold Geulincx (1624-1669) e esta solução estaria subjacente no próprio Descartes, seria quase uma solução óbvia, se não fosse a tese da glândula pineal.

19 Tradução nossa: “(…) também o Breve tratado distingue os atributos do pensamento e da extensão; mas essa diferença fica em segundo plano diante do aspecto comum que os une pelo fato de serem, ambos, qualificados e explicados como forças. São, simplesmente, duas formas ou manifestações distintas do mesmo poder da natureza de que emanam, e isso explica por que podem influir uma sobre a outra e se determinarem mutuamente. Assim como o corpo se oferece ao espírito e provoca nele, deste modo, o ato da sensação, assim também a alma, por sua vez, ainda que não possa criar novos movimentos corporais, pode, indubitavelmente, desviar, de acordo com suas decisões, a direção do movimento existente.”

Spinoza radicaliza, portanto, a noção de substância de forma que só pode

existir uma: Deus, ou natureza. Há portanto, esse distanciamento entre Spinoza e

Descartes, já que para Spinoza, a res cogitans e a res extensa são manifestações

de uma substância única que é Deus. O fundamento do conhecimento estaria, desta

forma, em Deus e não na subjetividade do cogito, mas o substancialismo

permanece. Se o racionalismo cartesiano precisa de Deus como ponto externo que

garanta a correspondência entre as ideias da res cogitans e os objetos no mundo;

“Na linguagem de Espinosa, as coisas e os intelectos humanos não são substâncias

independentes. Só Deus é a única substância; as coisas e o os intelectos humanos

são tão-somente modos dessa substância única.” (W

EISCHEDEL

, 2006, p. 159)