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Como lembra Maria Cecília Minayo, a observação participante e a entrevista

são as duas técnicas por excelência na coleta de dados num trabalho de campo.

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É

interessante observar que nem sempre existe uma fronteira clara entre a observação

e a entrevista, seja porque ambas podem ser empregadas conjuntamente, seja

porque o pesquisador que faz observação muitas vezes faz entrevistas, ainda que

informais, e o pesquisador que trabalha com entrevistas invariavelmente acaba

observando o contexto do entrevistado.

Uma pesquisa que pretende estudar, dentre outras coisas, como se

constroem os habitus de docentes de direito, certamente pode se valer de ambos os

métodos; numa observação participante o pesquisador realizaria uma imersão no

campo e poderia fazer uma (auto)análise de como suas disposições vão sendo

modificadas. Existem inúmeros trabalhos nesse sentido, mas podemos exemplificar

com o que foi feito por Wacquant (2002 [2001]) em sua pesquisa sobre o boxe, já

que ele também usa um referencial bourdieusiano, para a presente pesquisa,

20 Embora hajam muitas formas e técnicas de realizar o trabalho de campo, dois são os instrumentos principais desse tipo de trabalho: a observação e a entrevista. Enquanto a primeira é feita sobre tudo aquilo que não é dito mas pode ser visto e captado por um observador atento e persistente, a segunda tem como matéria-prima a fala de alguns interlocutores. (MINAYO, 2013

entretanto, a observação por si só não era viável já que estaríamos limitados às

instituições que temos acesso mais diretamente e o habitus de um jurista oriundo de

uma Grande Escola

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não necessariamente é o mesmo de um oriundo de uma

faculdade pequena.

Diante disso, empregamos uma liberdade considerável no que concerne às

técnicas e procedimentos para coleta dos dados da presente pesquisa. Recorremos,

basicamente, a todos os dados a que tivemos acesso, desde documentos e dados

governamentais, passando pelo levantamento de obras sobre o ensino jurídico,

realizamos observação participante na Faculdade de Direito do Recife etc., mas a

principal fonte dos dados foi, sem sombra de dúvidas, o corpus constituído a partir

da realização de trinta entrevistas que realizamos com docentes que atuam no

campo das faculdades de direito em Recife.

O uso de fontes orais é algo antigo, e com o avanço nas tecnologias de

gravação e comunicação, as entrevistas se tornaram um procedimento recorrente

nas ciências sociais. A entrevista é usada na antropologia, história oral, sociologia,

ciências da educação, psicologia social (etc.) — por essa razão, também, essa é

uma pesquisa sobre fronteiras simbólicas —, cada disciplina com suas

particularidades, na Educação, por exemplo, é recomendável prezar pelo sigilo das

fontes, na História oral, por outro lado, há o costume de se identificar e inclusive

disponibilizar as fontes para pesquisa. Ainda na história oral há um interessante

debate sobre o uso do relato como sendo uma fonte preferível à entrevista. O

Direito, por seu turno, salvo raras exceções, permanece distante de todas essas

questões.

Dissemos que, apesar de termos recorrido a todos os dados a que tivemos

acesso, a principal técnica de coleta de dados foi a entrevista. Diante disso,

21 A terminologia Grandes Escolas é uma inspiração direta nas Grandes Écoles francesas, estabelecimentos de educação superior, altamente seletivos e prestigiosos, os quais são capazes de assegurar capitais — social, simbólico e cultural — em um grau diferenciado em relação às demais instituições. Isso não significa dizer, evidentemente, que os egressos das Escolas e das

Écoles serão igualmente bem sucedidos e gozarão do mesmo prestígio, mas quando

consideramos outros fatores, como a altivez e o orgulho — às vezes mal disfarçado — de integrar a instituição, manifestado por docentes e discentes, a tradução da expressão francófona parece adequada.

sentimos a necessidade de objetivar um pouco mais o uso da referida técnica, tanto

no que concerne ao seu funcionamento, como interação construída, quanto no que

diz respeito às escolhas que precisam ser feitas — e obstáculos que precisam ser

enfrentados — na fase de transcrrição e análise dos dados. Ainda para fins de

objetivação, é necessário esclarecer que o que apresentaremos nas linhas que se

seguem, detalhando a entrevista, certamente decorre da nossa afinidade ao

procedimento em questão (que estudamos há alguns anos, já empregamos em

outras pesquisas, e é utilizado por pessoas com quem temos afinidade pessoal),

mas não sentiríamos a necessidade de discorrer longamente sobre as entrevistas se

as pessoas que entrevistamos não fizessem tantas perguntas sobre a entrevista em

si, muitas vezes, antes ou depois de ligar o gravador, sentimos como se

estivéssemos sendo entrevistados sobre a entrevista (o que é, como funciona, como

a confidencialidade é assegurada etc.).

De acordo com Franco Ferrarotti, podemos pensar a entrevista como “un

incontro fra due o più persone, nel corso del quale una persona (l'intervistatore)

interroga l'altra, o le altre persone (gli intervistati), allo scopo di conoscere le loro

opinioni su alcuni punti, o fatti, che la interessano.” (F

ERRAROTTI

, 1985, p. 210

22

).

Adotando esta definição, ainda que provisoriamente, é válido lembrar que as

entrevistas costumam ser classificadas de acordo com o grau de diretividade e

liberdade que ela apresenta no que concerne à formulação de perguntas e

respostas:

• Entrevista pessoal/formal/estruturada

Esquema de entrevista estruturada (padronizada) quando o entrevistador usa um esquema de questões sobre um determinado tema, a partir de um roteiro (pauta), previamente preparado.

• Entrevista semi-estruturada

O pesquisador organiza um conjunto de questões sobre o tema que está sendo estudado, mas permite, e às vezes até incentiva, que o entrevistado fale livremente sobre assuntos que vão surgindo como 22 Tradução nossa: “um encontro entre duas ou mais pessoas, no curso do qual uma pessoa (o entrevistador) interroga a outra, ou as outras pessoas (os entrevistados), a fim de conhecer as suas opiniões sobre alguns pontos, ou fatos, nos quais está interessado.”

desdobramentos do tema principal. • Entrevista livre-narrativa

Também denominada não-diretiva; o entrevistado é solicitado a falar livremente a respeito do tema pesquisado.

• Entrevista orientada

O entrevistador focaliza sua atenção sobre uma experiência dada e os seus efeitos — isto quer dizer que sabe por antecipação os tópicos ou informações que deseja obter com a entrevista.

• Entrevista de grupo

Pequenos grupos de entrevistados respondem simultaneamente as questões, de maneira informal. As respostas são organizadas posteriormente pelo entrevistador, numa avaliação global.

• Entrevista informal

É geralmente utilizada em estudos exploratórios, a fim de possibilitar ao pesquisador um conhecimento mais aprofundado da temática que está sendo investigada. Pode fornecer pistas para o encaminhamento da pesquisa, seleção de outros informantes, ou mesmo a revisão das hipóteses inicialmente levantadas. (PÁDUA, 2004, p. 70-71)

Como toda classificação, a que acabamos de apresentar não é certa ou

errada; porque outras classificações são possíveis, porque é possível utilizar mais

de um tipo de entrevista em uma pesquisa, e porque existem entrevistas que se

situam entre um e outro dos tipos mencionados. De qualquer forma, consideramos a

classificação acima útil por permitir ilustrar o que fizemos.

Sem esquecer que a dicotomia entre quantitativo e qualitativo é falsa e

nociva, vale lembrar também que não apenas a quantidade, mas também a

diretividade é um critério que distingue a entrevista, que, como sabemos, é

usualmente associada à pesquisa qualitativa, e que, além disso, é usualmente

contraposta ao questionário, este compreendido como um formulário padronizado

com resposta preestabelecidas que é muito utilizado nas pesquisas ditas

quantitativas.

Podemos explicar a diferença entre questionário e entrevista a partir de um

exemplo singelo. Grosso modo, um questionário vai perguntar o que o informante

acha do ensino jurídico e apresentará alternativas como “bom”, “regular”, “ruim” e

“não sabe/não quer opinar”. Ao final da pesquisa, o pesquisador poderá tabular os

dados com argumentos do tipo: “X% informantes responderam que o ensino jurídico

é bom, Y% que é ruim” etc. Em uma entrevista, diferentemente, o pesquisador

poderá formular perguntas como “o que você pode dizer sobre o ensino jurídico” ou

“como você avalia o ensino jurídico” e a pessoa que responde ficará à vontade para

falar abertamente sobre o tema.

O senso comum, talvez seduzido pela adesão — nem sempre consciente —

a modelos ainda positivistas de ciência e pelos efeitos retóricos dos gráficos e

tabelas, costuma considerar que pesquisas quantitativas têm mais objetividade, mas

isso nem sempre é verdade, pois muitas vezes uma pesquisa qualitativa permite

uma objetivação maior. Já vimos que pesquisas quantitativas também possuem

aspectos subjetivos (escolha do tema, formulação das questões, análise dos dados

etc.) e que tais pesquisas podem levar o pesquisador a um distanciamento do objeto

(e.g. através da terceirização da coleta dos dados) que pode ser prejudicial à prática

científica, o que por si só já é capaz de fazer com que desconfiemos de um modelo

quantitativo de ciência.

Podemos acrescentar, além disso, que as pesquisas quantitativas podem ser

problemáticas por vários outros motivos, como, por exemplo, os problemas de

compreensão das perguntas pelo informante. Mesmo uma pergunta simples e

aparentemente objetiva como “na sua opinião o ensino jurídico é: a) bom; b) regular;

c) ruim” na realidade pode ser extremamente vaga. Por exemplo: quando o

entrevistado assinala a alternativa, o que ele tem em mente? Estrutura física da

instituição? Titulação ou didática dos professores? Ele está se referindo apenas às

instituições que tem acesso direto ou ao geral? A resposta se refere apenas à

graduação, ou também à pós? Está considerando apenas faculdades, ou também

cursinhos?

Mesmo assumindo que todos os informantes serão capazes de entender e

se referir exatamente ao que o pesquisador está perguntando, ainda há a

possibilidade de que parte deles vá mentir ou responder qualquer coisa a fim de se

livrar daquela situação que pode considerar incômoda. E mesmo que consideremos

um informante ideal, que vai entender e gostar de responder, há, ainda, a tendência

de que ele seja influenciado pelo pesquisador:

A questão relativa aos dados de trabalho de campo tem sido freqüentemente levantada, mas ganhou nova força por causa dos estudos que demonstram o efeito dos biases do investigador em situações muito mais controladas. Estudos feitos pela equipe do NORC [National Opinion Research Ccnter] e por outras instituições demonstraram que as características e biases dos entrevistadores em “surveys” exercem um efeito considerável sobre as respostas que eles recebem dos informantes. Ainda mais chocantes, os estudos de Rosenthal sobre os biases do experimentador demonstraram que o conhecimento do experimentador em relação à hipótese que está testando e à conclusão a que ele espera chegar afeta as respostas dos sujeitos-objeto de experimentos sócio-psicológicos. (BECKER, 1993, p. 69)

De modo semelhante, os pesquisadores que fazem “surveys” descobriram que os atributos sociais, assim como as atitudes e crenças dos entrevistadores de “surveys”, afetam as respostas que seus informantes dão. As pessoas respondem a perguntas sobre raça de maneira diferente quando os entrevistadores são de uma cor ou de outra, e, da mesma forma, respondem de forma diferente a perguntas sobre sexo e doença mental em função da idade e do sexo do entrevistador. Os entrevistadores obtêm as respostas que esperam obter, do mesmo modo que os experimentadores obtêm as reações que esperavam obter. (BECKER, 1993, p. 73)

É importante ter em mente que esse é um aspecto que tende a independer

do controle do pesquisador, já que dificilmente ele conseguirá camuflar a sua hexis

corporal e o seu habitus linguístico durante a aplicação do questionário. Trata-se de

um problema que embora possa acometer as entrevistas mais livres (e.g.

semiestruturadas), parece ser menos presente, já que é mais fácil falsear sem cair

em contradições uma resposta a ser assinalada do que uma entrevista mais longa e

que pode demandar várias horas.

Outro problema frequente referente aos questionários está na falsificação

dos dados por parte de quem os aplica. Como, via de regra, o pesquisador vai se

valer de terceiros para aplicar os questionários a fim de ampliar o número de

informantes, ele se deparará com o problema endêmico da falsificação dos

questionários:

As fraudes cometidas por entrevistadores sempre foram um problema sério para diretores de organizações de pesquisa que produzem “surveys”. A análise lógica que se segue a um “survey” simplesmente pressupõe como verdadeiro que as entrevistas especificadas no desenho amostral serão realizadas, e que seus resultados serão enviados de volta à organização. Sabe-se, todavia, que um certo número de entrevistadores falsificará suas entrevistas, preenchendo horários e guias de entrevista com respostas imaginárias para entrevistas que nunca foram realizadas. (BECKER, 1993, p. 28)

Esses e outros problemas podem comprometer, portanto, a pesquisa

quantitativa realizada com a aplicação de questionários, o que demonstra que o

senso comum relacionado à sua objetividade pode estar mais das vezes errado. Isso

não significa, evidentemente, que as entrevistas são imunes a tais problemas, mas,

sempre é válido lembrar, as chances de evitar mal-entendidos, identificar inverdades

e identificar o que o informante realmente acha são consideravelmente maiores na

entrevista, não apenas porque é mais difícil fingir numa interação mais longa mas

porque as entrevistas estão aptas a trazer pontos de vista diversos e detalhados que

serão ser analisados em profundidade. Uma das vantagens da entrevista consiste

em, precisamente, permitir uma certa flexibilidade, recolocando perguntas,

esclarecendo dúvidas etc.

Não significa que devemos abandonar os questionários e usar apenas

entrevistas. Inclusive cogitamos inicialmente aplicar questionários na comunidade

docente em Recife, como forma de ampliar o escopo da análise e permitir uma

triangulação com os dados qualitativos.

23

Tal ideia não pôde ser colocada em prática,

23 Isso foi feito pela antropóloga Mirian Goldenberg: “Outro exemplo de integração de dados qualitativos e quantitativos é a minha pesquisa sobre amantes de homens casados. Fiz entrevistas em profundidade com oito mulheres que viveram a situação de amantes, em um primeiro estudo. Em seguida, entrevistei nove homens casados que refletiram sobre as suas experiências extraconjugais. Por fim, realizei um estudo de caso, em que entrevistei o homem casado, sua amante e toda a sua família (pai, mãe, duas irmãs e um irmão). Além destes dados qualitativos, foram fundamentais para as minhas conclusões as análises demográficas feitas por Elza Berquó, a partir dos dados do censo de 1980.

Berquó percebeu que, entre a população com mais de 65 anos, somente 32% das mulheres estavam casadas enquanto 76% dos homens estavam casados. A maior mortalidade dos homens — e também o fato do homem brasileiro casar com mulheres mais jovens que ele — gera este desequilíbrio. ‘As mulheres têm até os 30 anos, no máximo, chances iguais às dos homens.’ Berquó levanta a hipótese de que no Brasil esteja existindo uma poligamia disfarçada, já que as

entretanto, por duas razões: a falta de recursos para cobrir todas as instituições e,

principalmente, a rejeição que tivemos. Já nas abordagens iniciais, os

coordenadores — talvez com receio de expor a instituição ou de se expor, ou talvez

com uma certa desconfiança em relação aos pesquisadores (que afinal se vinculam

a outras instituições) — se mostraram desconfortáveis ou proibiram a aplicação dos

questionários no âmbito das instituições.

mulheres sem possibilidades de casamento acabam se unindo a homens casados.

Neste caso, apenas para ilustrar, os dados quantitativos revelam uma realidade demográfica e as entrevistas em profundidade retratam como cada mulher vivencia esta situação. É interessante como minhas entrevistadas se queixam que ‘falta homem no mercado’, constatação que pode ser facilmente verificada pelos dados do censo.

Os dados do IBGE sobre idade, sexo e estado civil foram usados para pensar situações complexas, não-quantificáveis, como a situação de ser amante de um homem casado. Estes dados ajudaram a interpretar o discurso e a compreender a situação de uma forma mais ampla. Interpretados à luz da minha questão, concluo que as mulheres têm menos chances de casar e esta pode ser uma possível explicação para a situação da amante. Sem os dados do IBGE, poderia me restringir às explicações dos pesquisados: a idéia de que o fato de ser amante deve corresponder a um tipo determinado de personalidade de mulher ‘que não se valoriza’ ou que ‘não quer compromisso’. A integração dos dados quantitativos e qualitativos permite verificar a tensão existente entre a ‘escolha individual’ e o ‘campo de possibilidades’ das mulheres que são amantes de homens casados.

Creio que demonstro, através de uma análise concreta, que a integração de dados quantitativos e qualitativos pode proporcionar uma melhor compreensão do problema estudado. Na verdade, o conflito entre pesquisa qualitativa e quantitativa é muito artificial. Arrisco afirmar que cada vez mais os pesquisadores estão descobrindo que o bom pesquisador deve lançar mão de todos os recursos disponíveis que possam auxiliar à compreensão do problema estudado.” (GOLDENBERG,

8 C

OISAS DITAS E COISAS ESCRITAS

:

OS PERCURSOS E PERCALÇOS DE UMA PESQUISAEMPÍRICA

Tentar saber o que se faz quando se inicia uma relação de entrevista é em primeiro lugar tentar conhecer os efeitos que se podem produzir sem o saber por esta espécie de intrusão sempre um pouco arbitrária que está no princípio da troca (especialmente pela maneira de se apresentar a pesquisa, pelos estímulos dados ou ou recusados, etc.) é tentar esclarecer o sentido que o pesquisado se faz da situação, da pesquisa em geral, da relação particular na qual ela se estabelece, dos fins que ela busca e explicar as razões que o levaram a aceitar participar da troca. (BOURDIEU, 2012 [1993], p. 695)

A mesma disposição está em ação no trabalho de construção ao qual submete-se a entrevista gravada — o que permitirá andar mais depressa na análise dos procedimentos de transcrição e análise. Pois é claro que a transcrição muito literal (a simples pontuação, o lugar de uma vírgula, por exemplo, podem comandar todo o sentido de uma frase) já é uma verdadeira tradução ou até uma interpretação. (BOURDIEU, 2012 [1993], p. 709)