Nas linhas anteriores fizemos uma breve digressão sobre o surracionalismo
bachelardiano, avaliando as implicações da homologia feita pelo próprio Bachelard
entre sua epistemologia e o sonho experimental de Tzara, e a citação de Bachelard
sobre como a Relatividade organiza as entidades antes de problematizar sua
realidade já nos dá o mote necessário para considerar como o surracionalismo
reorganiza — e portanto reconstrói — o real de forma homóloga à do surrealismo ao
reorganizar a liberdade poética. Abordaremos agora alguns aspectos desse
processo de reorganização e reconstrução.
Um primeiro aspecto se refere justamente ao fato de que o objeto científico é
construído, conquistado contra a ilusão do saber imediato (B
OURDIEU;
C
HAMBOREDON; P
ASSERON, 2013 [1968]). Essa afirmação de que o objeto é
construído pode causar algum estranhamento a quem não tem familiaridade com os
desdobramentos epistemológicos posteriores ao positivismo, uma falta de
familiaridade que aliás é muito comum no Direito, onde criticamos o positivismo e o
dogmatismo, mas ainda mantemos práticas positivistas e dogmáticas. De qualquer
forma, uma breve reflexão nos permite compreender e aceitar sem maiores
dificuldades que o objeto de fato é construído.
17 Tradução nossa: “A própria existência do objeto, e não apenas a prova desta a existência, aparece intimamente envolvida com as condições lógicas que a dominam completamente.” 18 Tradução nossa: “a relatividade não encontra inicialmente um real [uma realidade] a cujo estudo
seria aplicada, seguindo assim a orientação de qualquer realismo, em vez disso, ela organiza as entidades antes de colocar — nós veremos em que direção — o problema essencialmente secundário da sua realidade [existência].”
A questão aqui é que o real é inesgotável e qualquer texto — passagem
sonora ou visual — que possamos construir em relação a ele sempre será nosso e
sempre será parcial. Colocar isso dessa forma, por um lado, é perfeitamente crível,
diante do que já vimos sobre o surracionalismo, mas também gera uma circularidade
estranha e nos deixa quase diante de uma petição de princípio, já que também seria
possível dizer que se nossos relatos são parciais o real é inesgotável. De qualquer
forma, deixaremos as coisas nesses termos por enquanto, e no capítulo seguinte
aprofundaremos como essa construção efetivamente ocorre.
Parece razoável supor que se tomarmos qualquer coisa do mundo e nos
dispusermos a analisá-la, descobriremos que ela, por menor que seja, é inesgotável.
Se analisarmos, por exemplo, um grão de areia, desde como ele foi formado, nas
propriedades dos elementos que o constituem, nas semelhanças e diferenças com
outros grãos etc., ou mesmo se fôssemos capazes de reconstruir tal grão, em seus
átomos e cada átomo em suas partículas subatômicas — e talvez pudéssemos
aprofundar nossa análise até o nível dos quarks
19— ainda assim parece razoável
admitir que sempre haverá algo a ser investigado, testado, experimentado. Sempre
haverá, portanto, algo mais a ser dito sobre o grão em questão. Mesmo que assim
não fosse, ainda que conseguíssemos criar um relatório completo sobre a coisa em
questão (compreendendo tal coisa em todas as suas particularidades e
potencialidades), tal relatório não seria a coisa em si, mas algo que construímos a
partir dela.
Dessa breve digressão, extraímos dois problemas que parecem acometer a
qualquer pesquisa sobre qualquer coisa: a primeira é que o real — se é que
podemos chamar assim as coisas do mundo — é inesgotável e; a segunda,
relacionada à primeira e igualmente importante, é que o conhecimento que temos
das coisas é sempre aproximado, nunca completo. Sobre a primeira, Bachelard diz
que “A nosso ver, essa realidade, cujo conhecimento não pode ser esgotado, suscita
uma pesquisa sem fim. A essência da realidade reside na resistência ao
conhecimento. Vamos pois adotar como postulado da epistemologia o caráter
19 Os quarks e os léptons são os dois elementos básicos constituintes da matéria. Quarks se combinam para formar hádrons, dentre os quais merecem destaque os prótons e os nêutrons.
sempre inacabado do conhecimento.” (B
ACHELARD, 2004 [1927], p. 16-17).
A inesgotabilidade do real, e o consequente caráter inacabado do
conhecimento não significam que não devamos pesquisar. Ainda que a realidade
resista ao conhecimento, isso não impede a busca de um conhecimento rigoroso,
construído a partir de aproximações sucessivas, de novas verificações, que se
tornam os instantes decisivos do conhecimento:
A verificação é, em todos os níveis, o instante decisivo do conhecimento da realidade. Não é uma informação posterior, suplementar, que vem consagrar uma certeza; é um elemento da representação, é até seu elemento orgânico; ou seja, pela verificação é que a “apresentação” torna-se uma “representação”. O mundo é “minha verificação”, é feito de idéias verificadas, em oposição ao espírito, que é feito de idéias tentativas. Ou, em outras palavras, nossa única definição possível do Real tem de ser feita na linguagem da Verificação. Sob essa forma, a definição do Real nunca será perfeita, nunca estará concluída. Mas será tanto melhor quanto mais diversas e minuciosas forem as verificações. (BACHELARD, 2004 [1927],
p. 273)
Ainda que o trabalho de definir o real nunca esteja concluído, isso não
significa que o pesquisador possa construir o objeto a seu bel prazer: as verificações
sucessivas, a dialética entre o racional e o real, as discussões com os demais
pesquisadores (etc.) proporcionam que o objeto possua certa homologia com o real,
que o conhecimento seja rigoroso e apresente algo além de um mero conjunto de
ideias amparadas em argumentos de autoridade.
A ciência contemporânea é relacional e trabalha com conceitos
proposicionais (Cassirer) e teorias de valor indutivo (Bachelard). Não se trata,
portanto, de teorias do conhecimento que hoje são consideradas ingênuas, como o
racionalismo cartesiano, o empirismo baconiano ou o positivismo comteano. Não há
a crença numa verdade que seria atingida, graças a Deus, nas ideias que seriam
como imagens das coisas;
20ou através de procedimentos indutivos capazes de
20 “Entre meus pensamentos, alguns são como as imagens das coisas, e é apenas a estes queconvém propriamente o nome de idéia (...)” (DESCARTES, 2005 [1641], p. 60)
Vale lembrar que Descartes, depois de levar o ceticismo ao extremo e construir o argumento do
afastar e repelir os idola;
21ou, ainda, um método positivo pautado na observação e
experiência como critério da verdade.
Essa perspectiva de um conhecimento como reprodução fiel do real é
impensável na epistemologia bachelardiana; como diz o próprio Bachelard, um
conhecimento exato, no sentido de uma coincidência plena entre pensamento e
realidade, é um verdadeiro “monstro epistemológico” (B
ACHELARD, 2004 [1927], p.
46). O real, como já vimos, é inesgotável, e acrescentamos por nossa conta, que
mesmo que essa verdade como coincidência fosse atingida, simplesmente não
teríamos um Ponto de Arquimedes que pudesse garantir sua existência.
A epistemologia de Bachelard pode ser pensada, em suma, como uma
ruptura com as teorias dos conhecimentos anteriores. Com o que já vimos do
surracionalismo, percebemos que se trata de uma filosofia não-cartesiana e não-
positivista.
22Dito isso, e tendo ficado claro que o surracionalismo bachelardiano,
independentemente do nome que lhe seja dado (e.g. racionalismo aplicado,
materialismo racional ou mesmo filosofia do não) definitivamente não se confunde
com as epistemologias anteriores, parece oportuno acentuar mais algumas dessas
diferenças, a fim de que possamos nos situar ainda melhor dentro dessa nova
extensa), de algo que proporcione não apenas a possibilidade de acessar tais coisas mas de
produzir um conhecimento verdadeiro, e, para, Descartes, Deus faz essa ligação. Já vimos que Alain Badiou (2005. p. 209) observa que Deus é necessário para Descartes como garantia da própria verdade.
21 “The formation of ideas and axioms by true induction is no doubt the proper remedy to be applied for the keeping off and clearing away of idols.” (BACON, 2014 [1620], tradução nossa: “A formação de ideias e axiomas pela verdadeira indução é sem dúvidas o remédio ideal a ser aplicado para afastar e repelir os idola”.)
22 O próprio Bachelard aponta as inadequações das epistemologias anteriores, e poderíamos citar qualquer uma de suas obras diurnas para demonstrar isso. O nôvo espírito científico, por exemplo (e), contém o célebre capítulo intitulado “epistemologia não-cartesiana” (cf. BACHELARD, 1968
[1934], p. 111 e seguintes), também fala na realização do racional na experiência física “um dos traços distintivos do espírito científico contemporâneo, bem diferente a este respeito do espírito científico dos últimos séculos, bem afastado em particular do agnosticismo positivista ou das tolerâncias pragmáticas, sem relação enfim com o realismo filosófico tradicional.” (BACHELARD,
1968 [1934], p. 14).
Praticamente todos os comentadores de Bachelard ressaltam esses aspectos da obra dele, Lecourt (cf. 1987 [1972], p. 10-11 et passim), por exemplo, diz que trata-se de um não-positivismo radical
e deliberado que é inaugurado por Bachelard e forma a argamassa de uma tradição que une autores díspares como Canguilhem e Foucault, e, acrescentamos, que essa argamassa é
essencial à construção da obra de outros como Althusser, Bourdieu, Passeron, o próprio Lecourt etc.