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No capítulo anterior vimos como a ontologia ingênua do pensamento

substancialista perpassa a forma como compreendemos os conceitos. Veremos

agora como essa perspectiva equivocada pode ser substituída por uma perspectiva

relacional, muito mais adequada, para isso, apresentaremos agora o próprio

desenvolvimento dessa perspectiva.

Importante esclarecer novamente que este capítulo não pretende construir

retoricamente uma narração articulada na forma de um evolucionismo histórico, mas

tão somente relatar parte da investigação teórica — um tanto escolástica, ainda que

construída em face de uma prática de pesquisa — que realizamos para

compreender e aplicar o pensamento relacional. Para que isso fique claro,

precisamos retomar as questões que o próprio Cassirer coloca em face da

insuficiência da noção tradicional de conceito:

Der Begriff (notio, conceptus) ist somit diejenige Vorstellung, in welcher die Gesamtheit der wesentlichen Merkmale, d.i. das Wesen der betreffenden Objekte/vorgestellt wird. Bei dieser scheinbar so einfachen und einleuchtenden Erklärung kommt alles darauf an, was man hier unter „Merkmal“ versteht und wie man die Merkmale entstanden sein läßt. Die Bildung des Allgemeinbegriffs setzt die Bestimmtheit der Merkmale voraus: nur wenn gewisse Kennzeichen bestehen, durch die sich die Dinge als ähnlich oder unähnlich, als übereinstimmend oder nichtübereinstimmend erkennen lassen, ist die Zusammenfassung des Gleichartigen in eine Gattung möglich. Wie aber — so muß nun notwendig weiter gefragt werden —: bestehen derartige Kennzeichen schon vor der Sprache, vor dem Akt der

Benennung oder werden sie nicht vielmehr erst mittels der Sprache, erst in diesem Akt des Benennens selbst erfaßt? Und wenn das letztere der Fall ist: nach welchen Regeln, nach welchen Kriterien verfährt dieser Akt? Was ist es, das die Sprache veranlaßt oder nötigt, gerade diese Vorstellungen zu einer Einheit zusammenzunehmen und sie mit einem bestimmten Wort zu bezeichnen; was veranlaßt sie, in der fließend immer gleichen Reihe der Eindrücke, die unsere Sinne treffen oder die der inneren Selbsttätigkeit des Geistes entstammen, bestimmte Gestalten herauszulösen, bei ihnen zu verweilen und ihnen eine bestimmte „Bedeutung“ aufzuprägen? (CASSIRER,

1965, p. 941)

Como vemos, se adotássemos a perspectiva tradicional sobre os conceitos,

qualquer critério que selecionássemos para verificar as características em comum

das coisas a serem conceituadas só existiria através da linguagem, diante disso, não

há como definir o que obrigaria (nötigt) a linguagem a reunir ideias ou sensações

sob o rótulo de um conceito, simplesmente porque não há nada que determine isso,

não temos nenhuma garantia efetiva de que esse processo aconteceria

corretamente.

Como bem observa Cassirer, precisarímos de um indicador ou princípio de

diferenciação prévio — a priori — a partir do qual pudéssemos identificar as

características que as coisas têm em comum, e como tal indicador poderia existir

antes ou fora da linguagem? Como podemos, então, falar em conceitos que reunem

características essenciais?

Em certo sentido, essa inexistência de um identificador ou princípio de

diferenciação que existisse antes da linguagem e que permitisse a própria

identificação das características essenciais do objeto se relaciona também à própria

1 Tradução nossa: “O conceito (notio, conceptus) é, portanto, essa ideia que contém a totalidade

das características essenciais, ou seja, a essência dos objetos é identificada. Nesta explicação aparentemente simples e óbvia, tudo depende do que se entenda por ‘características’, e de como pode ser desenvolvida a caracterização [ou identificação] das referidas características em comum: apenas quando tivermos um determinado identificador [ou princípio de diferenciação] que permita identificar o que é similar ou não, o que as coisas têm ou não em comum, é que será possível agrupar as coisas que possuem características comuns em uma determinada classe. Mas — não podemos deixar de questionar —: é possível que esse indicador possa existir antes da linguagem, ou ele e as características são apreendidas através da linguagem e do próprio ato de sua nominação [definição]? E se este é o caso: quais as regras que regem os critérios do ato de nominá-las? O que impeliria ou obrigaria a linguagem a reunir essas ideias em uma unidade para nominá-las com uma palavra; o que selecionaria, em todo o fluxo, nem sempre uniforme, de sensações produzidas por nossos sentidos, ou nos processos autônomos da mente, determinadas características para as quais seria atribuído um significado?”

impossibilidade de as palavras terem significados intrínsecos, e aqui entram

questões como a vaguidade e a textura aberta da linguagem, já que, na vida real,

podemos estar sempre nos deparando com situações que coloquem em cheque o

significado de uma determinada palavra ou expressão — e o exemplo dos cisnes

negros que mencionaremos no final do presente capítulo exemplifica bem isso.

Uma outra questão — em certo sentido análoga ao problema da linguagem

— que pode e deve ser feita é se é mesmo possível encontrar características que

seriam essenciais aos objetos englobados pelo conceito e apenas a eles. No

capítulo anterior, exemplificamos com as cerejas que têm como uma de suas

características serem vermelhas, e poderíamos acrescentar que são gostosas, mas,

nesse caso, o que diferenciaria a cereja da carne? Esse exemplo, um tanto lúdico,

não foi escolhido por acaso, ele é problematizado pelo próprio Cassirer:

We may borrow a drastic example from Lotze: If we group cherries and meat together under the attributes red, juicy and edible, we do not thereby attam a valid logical concept but a meaningless combination of words, quite useless for the comprehension of the particular cases. (CASSIRER, 1923 [1910], p. 72)

Claro que seria possível escolher outra característica, acrescentar mais

alguma coisa ao predicado a fim de diferenciar a cereja da carne. Cerejas seriam,

portanto, frutas gostosas e vermelhas. Conseguimos diferenciar da carne. Mas isso

não nos livra do problema em si, já que framboesas e groselhas, por exemplo,

também são frutas gostosas e vermelhas.

De toda forma, compreendidos os problemas, fica claro que esta forma

classificatória de conceituar na verdade é um ato de quem conceitua. Como diz

Agustín Gordillo, possivelmente não existem duas coisas no universo que sejam

totalmente iguais ou totalmente diferentes entre si, então, dependendo do critério

2 Tradução nossa: “Nós podemos pegar um exemplo drástico de Lotze: Se agruparmos cerejas e

carne juntas sob os atributos vermelho, suculento e comestível, não atribuiremos um conceito lógico válido, mas uma combinação de palavras sem sentido, inútil para a compreensão dos casos particulares.”

adotado, é possível estabelecer uma classe para cada objeto, ou agrupá-los todos

em uma única classe. Isso tudo dependendo dos interesses de quem classifica

(G

ORDILLO

, 2000).

Ou, como lembra Genaro Carrió, “Las clasificaciones no son ni verdaderas ni

falsas, son serviciales o inútiles” (C

ARRIÓ

, 1986 [1965], p. 99

3

). E não poderia ser de

outra forma, pois como lembra o mesmo autor, as próprias palavras não possuem

nenhum significado além do que lhes é dado.

4

Retomando a problematização feita

por Cassirer, em Substance and function, ele questiona, além disso, a própria

compatibilidade da teoria dos conceitos com as ciências da contemporaneidade:

Is the theory of the concept, as here developed, an adequate and faithful picture of the procedure of the concrete sciences? Does it include and characterize all the special features of this procedure; and is it able to represent them in all their mutual connections and specific characters? (CASSIRER, 1923 [1910], p. 11-125)

A resposta é negativa. A perspectiva substancialista não atende à realidade

das ciências na contemporaneidade e, se empregada na prática científica, é um

verdadeiro obstáculo epistemológico. Desenvolveremos isso ao longo do presente

capítulo, mas para que isso comece a ficar claro desde já, devemos fazer uma breve

investigação de como se deu a ruptura para com o pensamento substancial dentro

da filosofia ocidental, e para isso começaremos com Berkeley.

A crítica de Berkeley à abstração, seu argumento sobre a impossibilidade de

3 Tradução nossa: “As classificações não são verdadeiras ou falsas, são úteis ou inúteis”

4 “Las palabras no tienen otro significado que el que se les da (por quien las usa, o por las convenciones lingüísticas de la comunidad). No hay, por lo tanto, significados ‘intrínsecos’, ‘verdaderos’ o ‘reales’, al margen de toda estipulación expresa o uso lingüístico aceptado.” (CARRIÓ, 1986 [1965], p. 94, tradução nossa: “As palavras não têm outro significado além daquele

que lhes é dado (por que as usa, ou pelas convenções linguísticas da comunidade). Não existe, portanto, significados ‘intrínsecos’, ‘verdadeiros’ ou ‘reais’, à margem de tudo o que foi expressamente estipulado ou aceito pelos usos linguísticos.”)

Necessário salientar que uma adequada análise da questão precisaria considerar também as relações de poder que se realizam na e pela linguagem, o que não temos como realizar agora. 5 Tradução nossa: “A teoria do conceito, como aqui desenvolvida, é uma imagem adequada e fiel

do procedimento das ciências concretas? Inclui e caracteriza todas as características especiais deste procedimento; E é capaz de representá-las em todas as suas conexões mútuas e características específicas?”

um triângulo geral e abstrato — que não seja equilátero, isósceles ou escaleno, mas

todos eles e nenhum deles — nos faz perceber que os conceitos tradicionais sempre

desprezam algo. E embora substitua o objeto externo por uma imagem mental, o

que é criticado por Cassirer, já que substitui o objeto externo por uma imagem

mental mas mantém uma perspectiva substancialista,

6

a crítica de Berkeley a Locke

nos ajuda a encontrar a saída do substancialismo.

Vimos, no capítulo anterior, como Locke constrói uma concepção de ideias

complexas (notions) a partir da combinação de ideias simples e como a consistência

de tais ideias, ainda segundo Locke, existiria mais na razão do que na realidade das

coisas. Berkeley percebe a fragilidade da tese de Locke e faz uma crítica que

compromete fundamentalmente sua consistência e coerência. Conforme Cassirer:

Ese reconocimiento del concepto en el sistema empirista de Locke lo coloca ciertamente en una base tan estrecha e insegura que basta un solo ataque para quebrantar su ser y su validez. Berkeley procede con mayor agudeza y congruencia al retirar esa relativa concesión de Locke y ver en el concepto no una fuente de conocimiento independiente, sino más bien la fuente de todos los engaños y errores. Si el fundamento de toda verdad reside en los simples datos sensibles, entonces sólo pueden surgir meras seudoconfiguraciones si se abandona ese fundamento. Ese veredicto que pronuncia Berkeley sobre el concepto en cuanto tal inincluye los 6 “In the case of Berkeley, we can follow in detail how his skepticism as to the worth and fruitfulness of the abstract concept implied, at the same time, a dogmatic belief in the ordinary definition of the concept. That the true scientific concept, that in particular the concepts of mathematics and physics, might have another purpose to fulfill than is ascribed to them in this scholastic definition, —this thought was not comprehended. In fact, in the psychological deduction of the concept, the traditional schema is not so m u c h changed as carried over to another field. While formerly it had been outer things that were compared and out of which a c o m m o n element was selected, here the same process is merely transferred to presentations as psychical correlates of things. The process is only, as it were, removed to another dimension, in that it is taken out of the field of the physical into that of the psychical, while its general course and structure remain the same.” (CASSIRER, 1923 [1910], p. 9-10, tradução nossa: “No caso de Berkeley, podemos seguir em

detalhes como seu ceticismo quanto ao valor e frutificação do conceito abstrato implicava, ao mesmo tempo, uma crença dogmática na definição comum de conceito. Que o verdadeiro conceito científico, em particular os conceitos da matemática e da física, poderiam ter outro propósito a cumprir além do que lhes é atribuído nesta definição escolástica — este pensamento não foi compreendido. De fato, na dedução psicológica do conceito, o esquema tradicional não é tão mudado, mas transferido para outro campo. Enquanto antigamente eram coisas externas que foram comparadas e das quais o elemento [essencial] foi selecionado, aqui o mesmo processo é simplesmente transferido para representações como correlatos psíquicos das coisas. O processo é apenas, por assim dizer, transferido para outra dimensão, na medida em que são retirados do campo do físico para o do psíquico, enquanto seu curso geral e sua estrutura permanecem os mesmos.”)

conceptos de todo tipo y rango lógico; más aún, tal veredicto se dirige en primer término contra los conceptos aparentemente más “exactos”, esto es, los conceptos de la matemática y de la física matemática. Todos ellos no son caminos que conduzcan a la realidad, a la verdad ni a la esencia de las cosas, sino desviaciones de ella; todos ellos no afinan el espíritu, sino que lo embotan con relación a la única y verdadera realidad que nos es dada en las percepciones inmediatas.

No obstante, en ese rechazo radical del concepto se gesta histórica y sistemáticamente un viraje peculiar, una verdadera peripecia del pensamiento. Berkeley cree haber afectado con su critica las raices mismas del concepto. Sin embargo, si extraemos las consecuencias últimas de esa crítica, encontramos un factor positivo altamente fructífero para entenderla y valorizarla, ya que no es al concepto a quien se le corta aqui el hilo de la vida. Lo que se corta aquí es más bien el vínculo que hasta ahora lo había unido con la “idea general” (general idea) en virtud de una tradición lógica y psicológica secular. La “idea general” es identificada como algo en si contradictorio y eliminada decididamente. La idea “general” del triángulo, esto es, la imagen de un triángulo que no es ni rectángulo, ni isósceles, ni escaleno pero que al mismo tiempo ha de ser todo ello, es una mera ficción. Con todo, al rechazar esa ficción, contra su propia intención prepara Berkeley el terreno para otra concepción más profunda del concepto, ya que, aunque combate la representación general, deja incólume la generalidad de la función representativa. Una sola configuración intuitiva concreta, un triángulo con una cierta longitud de lados y una cierta apertura angular puede muy bien representar para el geómetra todos los demás triángulos. Partiendo de la representación intuitiva de un triángulo el “concepto” del mismo no surge al cancelar nosotros simplemente ciertas determinaciones que contiene la representación, sino al colocarlas como variables. Consiguientemente, lo que vincula a las diversas configuraciones que consideramos como “casos” de un mismo concepto no es la unidad de una imagen genérica, sino la unidad de una regla de transformación en virtud de la cual es posible derivar un caso a partir del otro y, finalmente, la totalidad de los casos “posibles”. (CASSIRER, 1998 [1929], p. 340-3417)

7 Tradução nossa: “Este reconhecimento do conceito no sistema empirista de Locke certamente o

coloca em uma base tão estreita e insegura que basta um único ataque para quebrar seu ser e sua validez. Berkeley procede com maior agudeza e congruência ao retirar essa relativa concessão de Locke e ver no conceito não uma fonte de conhecimento independente, mas sim a fonte de todos os enganos e erros. Se o fundamento de toda a verdade reside nos dados sensíveis simples, então só podem surgir meras pseudoconfigurações quando se abandona esse fundamento. Esse veredicto que Berkeley pronuncia sobre o conceito enquanto tal inclui os conceitos de todo tipo e alcance lógico; mais ainda, tal veredicto se dirige principalmente contra os conceitos aparentemente mais ‘exatos’, isto é, os conceitos da matemática e da física matemática. Todos eles não são caminhos que conduzem à realidade, à verdade ou à essência das coisas, mas desvios dela; todos eles não esclarecem o espírito, mas o entorpecem em relação à única verdadeira realidade que nos é dada nas percepções imediatas.

Nada obstante, nesse rechaço radical do conceito germina histórica e sistematicamente uma transformação peculiar, uma verdadeira peripécia do pensamento. Berkeley acredita ter afetado as próprias raízes do conceito com sua crítica. No entanto, se extrairmos as últimas consequências de tais críticas, encontramos um fator positivo altamente frutífero para entendê-lo e valorizá-lo, já que não é ao conceito a quem se corta aqui o fio da vida. O que é cortado aqui é muito mais o vínculo que até agora lhe havia unido com a ‘ideia geral’ (general idea) em decorrência de uma tradição lógica e psicológica secular. A ‘ideia geral’ é identificada como algo contraditório em si mesmo e é decididamente eliminada. A ideia ‘geral’ do triângulo, ou seja, a imagem de um triângulo que não é nem retângulo, nem isósceles, nem escaleno, mas que ao

Como vemos, ainda que não realize a ruptura efetiva com o substancialismo

e não chegue à concepção dos conceitos propriamente relacionais, subjaz em

Berkeley uma ideia de conceito como imagem propositiva na qual podemos

enquadrar os triângulos, que poderiam ser compreendidos como variáveis de uma

concepção prévia — e.g. figura geométrica com três ângulos — e é precisamente

esse caráter prévio do conceito enquanto algo construído que fornece uma base

importante para o pensamento relacional e para a nossa perspectiva epistemológica.