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O pensamento substancialista subjaz à toda a dogmática jurídica. O que se

relaciona, por um lado, à própria colonização europeia — germânica, sobretudo —

do direito brasileiro, mas tem a ver também com a própria estrutura do campo

jurídico, como lugar de disputa pela competência de dizer o direito — relacionada ou

mascarada pela necessidade de segurança jurídica —, e os próprios interesses e

demandas sociais e econômicas que se projetam nesse campo.

Por um lado, temos o pensamento substancialista, que além de permear o

senso comum, subjaz à nossa formação europeizada. Como lembra Bertalanffy, a

visão do mundo da pessoa comum que anda na rua é produto da obra de diversos

autores que sintetizaram e ajudaram a criar a cultura ocidental, ainda que a pessoa

em questão nunca tenha ouvido falar dos referidos autores:

La Weltanschauung, el concepto que tiene de la vida y del mundo el hombre de la calle (el que nos arregla el coche y nos vende pólizas de seguros) es obra de Lucrecio Caro, Newton, Locke, Darwin, Adam Smith, Ricardo, Freud y Watson, aunque se puede apostar sin riesgo que el bachiller (y aun el licenciado) jamás ha oído hablar de ellos o conoce a Freud solamente por lo que de él ha leído en las columnas de los consultorios sentimentales del periódico que compra corrientemente. Somos nosotros [profesores] quienes verdaderamente fabricamos las gafas a través de cuyos cristales la gente ve el mundo y se ve a sí misma, sin saber y sin darse cuenta de quiénes fueron los que se las calaron sobre su metafórica o metafísica nariz. (BERTALANFFY, 1971 [1967], p. 86-8741)

41 Tradução nossa: “A Weltanschauung, o conceito que tem da vida e do mundo aquele homem que anda na rua (aquele que conserta o nosso carro e nos vende apólices de seguro) é trabalho de Lucrécio Caro, Newton, Locke, Darwin, Adam Smith, Ricardo, Freud e Watson, embora você pode apostar sem risco que o bacharel (e até mesmo o advogado) nunca ouviu falar deles ou conhece Freud apenas pelo que leu dele nas colunas de conselhos sentimentais da revista que comora eventualmente. Somos nós [professores] que realmente produzimos os óculos que possuem as lentes através das quais as pessoas veem o mundo e veem a si mesmas, sem saber e sem perceber quem foi que colocou tais óculos sobre seus narizes metafóricos ou metafísicos.”

Há um claro exagero e um deficit antropológico nas palavras de Bertalanffy,

que superestima os papeis dos professores e das teorias, como se estas fossem

apenas produtoras — e são, também produtos — da realidade social, mas ele não

deixa de ter razão quando diz que, direta ou indiretamente, tais autores contribuem

para a construção do nosso senso comum.

E podemos acrescentar que essa visão de mundo (Weltanschauung) é, em

grande parte, uma visão substancialista, e assim como a pessoa comum, a visão de

mundo douta e escolasticizada dos juristas, sua doxa e seu senso comum erudito,

são permeados pelo substancialismo que subjaz à obra desses e de tantos outros

autores, o que, por si só, contribui para uma dominância do pensamento

substancialista no direito.

Temos, além disso, a questão da concorrência pela competência de dizer o

direito — juris dictio — e simbolicamente essa competência se materializa nas

conceituações e classificações, presentes em todos os ramos do direito e cobradas

nas avaliações acadêmicas, bem como na construção de verdades, como por

exemplo, sobre a natureza jurídica ou essência dos institutos jurídicos, o que fica

especialmente claro nos ramos mais dogmáticos. Um bom exemplo disso são os

debates como o da natureza tributária das contribuições sociais,

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que envolvem o

que é tributo (quais suas características) e o que é a contribuição previdenciária (que

características ela tem em comum com o tributo), são lutas simbólicas pela

competência de dizer o direito, e os debatedores muitas vezes obtém consagração

quando veem suas teses sendo adotadas nas leis e nos precedentes judiciais — o

que, adiantamos desde já, é um indício da baixa autonomia do campo da dogmática,

que depende de reconhecimento externo e não apenas do próprio campo.

Esses debates se relacionam — e algumas vezes incorporam — interesses

e demandas sociais e econômicas, aproveitando ainda o exemplo das contribuições

42 Tema que já foi abordado em incontáveis trabalhos jurídicos, inclusive Dissertações de Mestrado, como a de Roselí Silma Scheffel, intitulada Natureza jurídica das contribuições sociais e a de Ernesto José Pereira dos Reis, intitulada Natureza jurídica das contribuições sociais na Constituição Federal de 1988, ambas defendidas em 1996 na PUC-SP.

e sua natureza, temos a questão dos efeitos dessa ontologização tributária para os

devedores das referidas contribuições, que tendo essência de tributo, prescreveriam

em cinco anos, e para o Estado credor, que não irá mais recebê-las.

Este é um exemplo pontual, para o qual atentamos a partir de uma conversa

informal com uma das pessoas entrevistadas para a presente pesquisa, mas seria

possível encontrar muitos outros, na forma como os conceitos são construídos, em

todas as frequentes discussões relacionadas à natureza jurídica de qualquer instituto

jurídico, as quais invariavelmente acabam tangenciando o substancialismo. Como

exemplo, agora em outro ramo do direito, podemos citar o entendimento de Maurício

Delgado sobre o que seria a própria natureza jurídica:

A pesquisa acerca da natureza de um fenômeno supõe a sua precisa definição — como declaração de sua essência e composição — seguida de sua classificação, como fenômeno passível de enquadramento em um conjunto próximo de fenômenos correlatos. Definição (busca da essência) e classificação (busca do posicionamento comparativo), eis a equação básica da ideia de natureza. (DELGADO, 2012, p. 71)

O caráter substancial fica, portanto, evidente, já que para o autor, definir é

buscar a essência. Necessário observar que esse tipo de perspectiva substancialista

não fica restrita aos manuais, ela perpassa a própria ciência do direito, vide as

incontáveis teses e dissertações tentando identificar a natureza jurídica ou a

essência de um determinado instituto,

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havendo, explícita ou implicitamente, a

perspectiva de que “encontrar a natureza jurídica de um ramo do Direito consiste em

determinar sua essência para classificá-lo dentro do universo de figuras existentes

no Direito.” (F

ARIA

, 2012, p. 12)

O substancialismo é tão presente no direito que alguns autores identificam e

43 A busca da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações [bdtd.ibict.br] em 23/09/2016, retornava 98 (noventa e oito) trabalhos com a expressão natureza jurídica no título. Vale observar que existem dissertações e teses que não estão cadastradas, e que restringimos nossa busca exclusivamente ao título, certamente há várias outras teses e dissertações que abordam a questão da natureza jurídica de alguma coisa em seus capítulos, sem no entanto incluir a expressão no título do trabalho.

insurgem contra uma coincidência entre a ontologia e a própria filosofia.

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Adeodato,

por exemplo, identifica uma “pretensão de estender a todos os Estados o modelo

jurídico de Estado Moderno eurocentrado.” E, ainda de acordo com ele, “Para isso

parte-se de uma espécie de epistemologia ontológica, isto é, a crença de que é

possível uma teoria universal, de que há uma essência do direito, da política, das

relações sociais e esta é o que nos apresenta o paradigma europeu” (1996, p. 8).

Sobre essa perspectiva europeia de universalização, Saldanha diz que:

De certo modo, o conceito de direito, convertido no oitocentos em “centro” do edifício social, traduziu uma atitude ideológica — mais do que utópica — atitude que se desdobrou depois numa consciência explicitadora, quando do surgimento da axiologia jurídica a partir sobretudo da década vinte no nosso século. Mas por trás das diversas pautas axiológicas, enfatizadas por certas correntes e recusadas por outras, acha-se sempre uma cosmovisão, que coloca a idéia de direito como um dado, dentro da imagem da vida social: o direito “reflexo” das classes, ou o direito realização da justiça, o direito projeção do poder, o direito criação imanente do conviver. Em algumas destas colocações, ainda permanece um traço dos prestigiosos ontologismos e essencialismos, que fazem admitir o direito quase como um “transcendental” ou como um “universal”, inerente ao mundo independentemente do homem ou inerente ao homem independentemente do mundo. (SALDANHA, 2005 [1977], p. 267-268)

Mesmo desconsiderando a questão do argumento de autoridade, e o fato de

que tais obras foram publicadas e — até onde sabemos — não foram contestadas, e

se tomarmos o que foi dito apenas como um depoimento pessoal dos autores, ainda

assim é significativo que eles identifiquem esses ontologismos. Não se trata, enfim,

de querer que os filósofos citados subscrevam o pensamento relacional, mas de

perceber que o pensamento substancialista permeia o próprio pensamento jurídico,

o que é uma herança europeia e, em alguma medida, pode estar relacionado à

44 Encontramos exemplos disso em Alexandre da Maia e João Maurício Adeodato, ambos defendendo uma perspectiva retórica não-ontológica — mas, na nossa opinião, também não- relacional. Maia observa que “A ontologia, pois, para alguns, seria a própria filosofia (...)” (1999, p. 339); e João Maurício Adeodato é ainda mais enfático ao dizer que “Os ontológicos apossaram-se da filosofia a tal ponto que os próprios retóricos passaram a acreditar que não faziam filosofia, pois esta consistiria na busca da verdade.” (2011, p. 2).

Na filosofia, conforme citamos anteriormente, Cassirer observa que a metafísica antiga era ontologia e isso se aplica tanto aos sistemas que se apresentam com a etiqueta de empirismo quanto aos que são conhecidos como racionalismo.

pretensão de universalidade do direito, uma pretensão que, como veremos

oportunamente, mascara o arbitrário que existe em sua origem.

4 O

PENSAMENTO RELACIONAL

O interesse apaixonado dos pesquisadores em ciências sociais pelas ciências da natureza não poderia ser compreendido de outro modo: a definição dos princípios de avaliação de sua prática é que está em jogo na pretensão de impor, em nome da epistemologia ou sociologia da ciência, a definição legítima da sua forma mais legítima — a ciência da natureza. (BOURDIEU, 2013 [1989], p. 119)