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4.3 R ELAÇÕES , FUNÇÕES E CONCEITOS RELACIONAIS

4.3.2 Pensando os conceitos como funções proposicionais

Os conceitos deixam de ser teorizados como uma reunião de características

que supostamente seriam essenciais e comuns às coisas do mundo e passam a ser

pensados como funções proposicionais. O que permite a construção de conceitos

não é a ontologia ingênua que tenta separar as coisas em classes a partir de

características que supostamente lhes seriam comuns. O processo de conceituação

tem algo de gerativo e proposicional, o conceito é construído e permite pensar as

coisas que ele denomina como se fossem variáveis em uma função proposicional;

os objetos aparecem, relacionados entre si, pelo fato de satisfazer uma determinada

antes que tais expressões se tornem verdadeiras ou falsas.”

No mesmo sentido: “A noção de função na lógica foi apresentada de início (cf. Frege, Grundgesetze, I; Whitehead e Russell, Principia Mathematica, I) sob o conceito de função preposicional. Segundo Russell, uma função proposicional é uma é uma função na qual os valores são proposições. Devem-se distinguir então funções descritivas e funções proposicionais. Uma função descritiva tal como a proposição mais ampla deste livro não é uma função proposicional, mesmo que seu valor também seja uma proposição. Em uma função proposicional os valores devem ser enunciados e não descritos. Exemplo de função proposicional é x é humano. Só podemos dizer se essa função é verdadeira ou falsa quando atribuímos um valor a x. Assim, uma função proposicional é ‘algo que contém uma variável x, e que expressa uma proposição assim que se atribui um valor a x’.” (MORA; TERRICABRAS, 2005 [1994], p. 1158)

29 Tradução nossa: “Como ele diz: A equação de uma curva em um plano pode ser chamada de ‘conceito’ dessa curva, uma vez que ela constitui uma função enunciativa que é verdadeira com referência a todos os valores das coordenadas dos pontos que integram a curva, mas falsa com referência a outros valores.”

condição, nas palavras de Cassirer:

Los miembros unidos en la clase aparecen vinculados entre sí por el hecho de satisfacer una determinada condición formulable en términos generales. La totalidad misma no aparece ahora como mera suma de individuos, sino como totalidad definida justamente por esa condíción, cuyo significado puede aprehenderse y formularse por sí mismo sin tener que preguntar cuántos individuos la satisfacen si es que existe acaso algún individuo que la satisfaga. “Si pronuncio una oración con el sujeto gramatical ‘todos los hombres’ —hace notar Frege contra Schroder— no quiero decir con ello nada acerca de un cacique en el interior de África enteramente desconocido para mí. Así pues, es enteramente equivocado decir que yo denoto de algún modo a ese cacique con la palabra ‘hombre’.” En el mismo sentido subraya Russell mismo expresamente en los Principia Mathematica que una extensión es un símbolo incompleto cuyo uso recién cobra sentido en relación con una intención. Lo que da unidad a la clase de acuerdo con la teoría aquí desarrollada, es la circunstancia de que todos los elementos unidos en ella deben ser concebido como variables de una cierta función enunciativa (propositional function); esta última y no la mera idea de conjunto como agregado parece ser el meollo del concepto. (CASSIRER,

1998 [1929], p. 34630)

Existem, portanto, dois caminhos para se explicar a definição de uma classe;

o primeiro é exibir individualmente seus elementos e agregá-los a partir da simples

conjunção aditiva “e”, tomando como pressuposto, declarado ou não, características

que supostamente lhes seriam essenciais; ou, o segundo, definir uma condição que

têm que satisfazer todos os membros da classe. Agora fica mais claro que, ao

conceituar, podemos proceder como se estivéssemos enunciando uma função

proposicional, estabelecendo as condições que os elementos devem atender para

pertencer à classe que o conceito enuncia.

30 Tradução nossa: “Os elementos unidos na classe aparecem vinculados entre si pelo fato de satisfazer uma determinada condição formulável em termos gerais. A totalidade mesma não aparece agora como mera soma de indivíduos, mas omo totalidade definida justamente por essa condição, cujo significado pode ser apreendido e formulado por si mesmo sem ter que perguntar quantos indivíduos a satisfazem, se é que por acaso existe algum indivíduo que a satisfaça. ‘Se pronuncio uma oração com o sujeito gramatical ‘todos os homens’ — observa Frege contra Schroder — não quero dizer com ela nada sobre um cacique no interior da África a quem desconheço totalmente, Assim, pois, é totalmente equivocado dizer que eu denoto de algum modo a esse cacique com a palavra ‘homem’.’ No mesmo sentido Russell observa expressamente nos Principia Mathematica que uma extensão é um símbolo incompleto cujo uso novo cobra sentido em relação com uma intenção. O que dá unidade à classe de acordo com a teoria aqui desenvolvida é a circunstância de que todos os elementos unidos nela devem ser concebidos como variáveis de uma certa função enunciativa (propositional function); esta última e não a mera ideia de conjunto como agregado é que parece ser o miolo do conceito.”

Como dissemos, nossa interpretação da filosofia cassireriana no que

concerne aos conceitos é no sentido de que, muitas vezes, é assim que procedemos

ao conceituar algo. Ainda que não necessariamente tenhamos consciência disso,

estamos efetivamente construindo o conceito. Em certo sentido é possível pensar,

portanto, que o que estava errada era a explicação ou teorização sobre a forma

como os conceitos é construída e não a construção ou os conceitos em si.

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31 “La función enunciativa en cuanto tal debe distinguirse estrictamente de un determinado enunciado, de un juicio en el sentido lógico usual. Lo que ella nos da es en principio sólo un esquema de juicios, sin ser ella misma un juicio, ya que le falta el rasgo característico de todo juicio, puesto que no es ni verdadera ni falsa. Verdad y falsedad atañen siempre sólo al juicio, en el cual se refiere un predicado determinado a un sujeto determinado, mientras que la función enunciativa carece de tal determinación y establece sólo un esquema general qué necesita ser llenado con valores determinados para adquirir el carácter de enunciado. ‘Una función enunciativa (propositional function) —define Russell— es de hecho una expresión que contiene uno o más elementos constitutivos indeterminados, de tal modo que la expresión se convierte en un enunciado (proposition) cuando se asignan valores a tales elementos. En otras palabras, es una función cuyos valores son enunciados’. En este sentido toda ecuación matemática es un ejemplo de una función enunciativa. Consideremos la ecuación X - 2X - 8 = 0. Este enunciado es verdadero si sustituimos el valor enteramente indeterminado X por las dos raíces de la ecuación, siendo falso para todos los otros valores de X. Si nos basamos en essas definiciones podemos ofrecer ahora una definición general, puramente ‘intencional’ del concepto de clase. Si consideramos todas las X que tienen la propiedad necesaria para pertenecer al tipo de una cierta función enunciativa determinada φ (X) y juntamos los valores de X que resulten ser valores ‘verdaderos’ de esa función, habremos definido así una cierta clase por medio de la función φ (X). En ese sentido cada función enunciativa genera una clase: la clase de tales X que son determinadas φ (X). Ese ‘tales que’ no es reductible a otras determinaciones, sino que es aceptado como un significado sui generis, como un ‘indefinible lógico’. Toda clase se hace definible por medio de una función enunciativa que resulta verdadera por los miembros de esa clase y falsa para todas las otras cosas. Sin embargo, con ello no se ha logrado el propósito de reducir a un conjunto lo que la lógica llama ‘concepto’, sino antes bien lo contrario: se ha fundado nuevamente el conjunto en el concepto. El mero cálculo lógico, por tanto, no nos ha hecho adelantar mucho, ya que no es capaz de sustituir al análisis conceptual, sino sólo de reducirlo a una fórmula más rigurosa y sencilla.” (CASSIRER, 1998 [1929], p. 346-347, tradução nossa: “A

função enunciativa, enquanto tal, deve se diferenciar estritamente de um determinado enunciado, de um juízo no sentido lógico usual. O que ela nos dá é, a princípio, apenas um esquema de juízos, sem ser ela mesma um juízo, já que lhe falta a característica de todo juízo, já que não é verdadeira nem falsa. Verdade e falsidade dizem respeito apenas ao juízo, ao qual se refere um predicado determinado a um sujeito determinado, enquanto que a função enunciativa carece dessa determinação e estabelece apenas um esquema geral que necessita ser preenchido com valores determinados para adquirir o caráter de enunciado. ‘Uma função ennciativa (propositional function) — define Russell — é de fato uma expressão que contém um ou mais elementos constitutivos indeterminados, de tal modo que a expressão se converte em enunciado (proposition) quando são atribuídos valores a tais elementos. Em outras palavras, é uma função cujos valores são enunciados’, Nesse sentido, toda equação matemática é um exemplo de uma função enunciativa. Consideremos a equação X - 2X - 8 = 0. Este enunciado é verdadeiro se substituirmos o valor indeterminado X pelas duas raízes da equação, sendo falso para todos os outros valores de X. Se nos baseamos nessas definições podemos oferecer agora uma definição geral, puramente ‘intencional’ do conceito de classe. Se consideramos todos os X que têm a propriedade necessária para pertencer ao tipo de uma certa função enunciativa φ (X) e juntamos

Essa tomada de perspectiva, que escapa a muitos comentadores de

Cassirer, nos permite contornar um problema grave: se todos os conceitos

elaborados a partir da perspectiva substancialista estivessem errados, como

pudemos viver em sociedade até hoje? O problema não necessariamente está,

portanto, nos conceitos existentes, mas na teoria que pretendia explicar sua

formação. Aproveitando o exemplo que anteriormente citado, o problema não está

em uma palavra como “cereja”, está em achar que esse rótulo (palavra) se

desenvolveu para nomear características que supostamente seriam essenciais a

todas as cerejas. É muito mais adequado considerar que tal conceito foi construído a

priori — até mesmo porque é impossível avaliar todas as cerejas do mundo para

fazer a adequada construção a posteriori —, estabelecendo o que caracterizaria a

cereja e, a partir daí, temos o conceito que permite relacionar todas as cerejas em

uma determinada categoria.

Sempre é válido lembrar que, em termos de ciência, é muito mais frutífero

pensar os conceitos numa perspectiva relacional do que com base em uma

ontologia ingênua. Dando um exemplo mais concreto, podemos lembrar da

descoberta dos cisnes negros na Austrália, e como isso gerou o debate se as aves

em questão seriam ou não cisnes:

If someone says that all swans are white, is she giving us (part of) the meaning of the word “swan” or informing us of a fact about the thing, swan? People came to dispute about this when black swans were discovered in Australia. Biologists called them swans because they were just like the other swans except for their color. Some insisted, however, that if it isn't white it isn't a swan (that is, being white is a defining feature of swans), so the black creatures in Australia therefore aren't swans.

How could this dispute be resolved? It could have been resolved os valores de X que resultem ser valores verdadeiros dessa função, teremos definido assim uma certa classe por meio da função φ (X). Nesse sentido, cada função enunciativa gera uma classe: a classe dos tais X que são determinados φ (X). Esses ‘tais que’ não são redutíveis a outras determinações, mas são aceitos como significado sui generis, como um ‘indefinível lógico’. Toda classe se faz definível por uma função enunciativa que resulta verdadeira para os membros da classe e falsa para todas as outras coisas. Sem embargo, com isso não se logrou o propósito de reduzir a um conjunto o que a lógica chama de ‘conceito’, mas, pelo contrário: foi fundado novamente o conjunto no conceito. O mero cálculo lógico, portanto, não nos fez avançar muito, já que não é capaz de substituir a análise conceitual, mas apenas de reduzi-la a uma fórmula mais rigorosa e singela.”)

either way, by a fiat about whether being white was or was not defining of swans. It was quickly settled, however, in the biologists’ favor: since color is traditionally a variable, it had not been used as defining of any species. Being white is therefore an accompanying feature of most swans, although not of all swans. (HOSPERS, 1997 [1956]32)

Como vemos, não se trata de reunir todos os cisnes e verificar quais as

características essenciais a todos eles, o que aliás seria um exercício inconclusivo

— já que a classificação depende da perspectiva de quem classifica —, mas de

verificar se o conceito de cisne proposicionalmente estabelecia a cor branca como

uma característica definidora (defining) dos cisnes. A solução, pelo que Hospers nos

conta, ficou especialmente fácil quando se comparou esse conceito com os das

demais espécies, que não propunham a cor como uma variável capaz de excluir os

animais do conceito. Diante disso tudo, as belas aves negras australianas passam a

estar relacionadas aos demais cisnes pelo fato de atender aos requisitos que o

conceito de cisne propõe.

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O que foi dito anteriormente sobre as parábolas e elipses, enquanto

conceitos gerativos, construções teóricas que precedem — e orientam a

compreensão sobre — as parábolas e elipses concretas, tanto mostra como o

conceito pode preceder a experiência sensível quanto permite compreender a

relação que construímos entre as figuras geométricas. Para tornar mais clara essa

questão da relacionalidade, vamos avaliar agora algumas possibilidades desse

pensamento relacional ser empregado nas ciências sociais.

32 Tradução nossa: “Se alguém diz que todos os cisnes são brancos, esta pessoa está nos dando (parte) do significado da palavra ‘cisne’ ou informando-nos de um fato sobre a coisa, cisne? As pessoas entraram em uma disputa sobre isso quando os cisnes negros foram descobertos na Austrália. Os biólogos chamaram os mesmos de cisnes porque eles eram como os outros cisnes, exceto para sua cor. Alguns insistiram, no entanto, que se não é branco não é um cisne (isto é, ser branco é uma característica definidora de cisnes), de modo que as criaturas pretas na Austrália, portanto, não seriam cisnes.

Como esta disputa poderia ser resolvida? Poderia ter sido resolvida de qualquer forma, por um fiat [faça-se] sobre se ser branco é ou não algo definidor dos cisnes. Isso foi rapidamente resolvido, no entanto, em favor dos biólogos: uma vez que a cor é, tradicionalmente, uma variável, ela não tinha sido utilizada como a definição de qualquer espécie. Ser branco é, portanto, uma característica que acompanha a maioria dos cisnes, embora não de todos os cisnes.”

33 Estamos recorrendo unicamente ao exemplo, sem estudar o caso em si, que demandaria inclusive uma investigação do poder simbólico de decidir se as belas aves negras são ou não cisnes.