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1 DE MARIA DÉA A MARIA BONITA: UM ESTUDO DE PERSONAGEM NA PEÇA LAMPIÃO DE RACHEL DE QUEIROZ

1.3 A construção do texto Lampião: as referências

Nesse intuito de retratar o Nordeste por meio de figuras femininas, Rachel de Queiroz empreende o projeto de escrever uma peça de teatro sobre a companheira do “rei do cangaço”, Maria Bonita. No entanto, no transcorrer de sua pesquisa sobre o cangaço, a autora se encanta pela figura de Lampião e muda o rumo de sua escrita. (TAMARU, 2004). Inicialmente, o texto era para tratar da trajetória de Maria Gomes de Oliveira (popularmente conhecida como Maria Bonita), mas acabou centrado na figura de Lampião.

A minha hipótese para essa mudança se relaciona com as referências encontradas por Rachel de Queiroz sobre o cangaço. Na segunda edição do livro Lampião, publicado em 1954, antes de se iniciar a peça propriamente dita, encontramos a seguinte apresentação:

Esta peça não se pode presumir de "histórica"; contudo, procurou acompanhar o mais perto possível a lenda, o anedotário, o noticiário de jornal - a tradição oral e a escrita relativa ao mais famoso dos nossos cangaceiros.

A autora agradece especialmente o grande auxílio que lhe prestaram os livros Lampiãode Ranulpho Prata,Bandoleiro das Caatingasde Melquíades da Rocha, eComo dei cabo de Lampiãodo capitão João Bezerra.

Agradece o Coronel José Abílio, do Bom Conselho, que narrou muitas reminiscências de Virgulino e Maria Bonita, a quem conhecera pessoalmente.

E, mais que a todos, agradece ao seu finado amigo e mestre Leonardo Mota, cujo livro No tempo de Lampião, pela riqueza e autenticidade da contribuição folclórica, foi como colaborador inestimável no trabalho de Reconstruir a figura, os incidentes de vida, os companheiros e até a linguagem, de Virgulino Ferreira, o Lampião. (QUEIROZ, 1954, p. 5).

Nessa parte do livro, são mostradas as referências historiográficas que embasam a escrita da peçaLampião(1953). Os títulos dos livros já apontam indícios de que essas fontes tratam de Lampião. Ao que tudo indica, Rachel de Queiroz pretendia escrever a respeito de Maria Gomes de Oliveira, mas encontrou bibliografias e relatos que sublinharam os feitos e bravatas de Lampião e pouco falavam a respeito de sua companheira.

No intuito de se aproximar das fontes historiográficas utilizadas por Rachel de Queiroz na escrita da peça Lampião (1953), foram lidos os livros No Tempo de Lampiãode Leonardo Mota (1976)11eLampiãode Ranulfo Prata (1980)12.

Leonardo Mota (1976), na primeira parte do seu livro, seleciona alguns dos feitos de Lampião e dos seus companheiros e os apresenta aos leitores. Além das narrativas, em alguns momentos do texto, são transcritas partes de entrevistas realizadas com sertanejos, que além de contar as histórias, comentam e expressam suas opiniões a respeito dos cangaceiros. O autor também faz referência a outras figuras históricas relacionadas ao cangaço e ao Banditismo Nordestino, como Antônio Silvino13 e Lucas da Feira14. Nessa obra, em nenhum momento é feita alusão às mulheres que adentraram no cangaço.

Ranulfo Prata (1980) também enfoca os crimes e peripécias cometidos por Lampião e seu bando. O autor inicia o livro tratando a respeito do nascimento e de familiares do cangaceiro, enfocando o motivo pelo qual essa figura histórica

14Lucas Evangelista dos Santos, mais conhecido comoLucas da Feira, nasceuem outubro de 1807 como escravo na fazenda Saco de Limão (no que seria hoje o bairro Pedra do Descanso, do Munícipio de Feira de Santana - BA). Era filho de negros jejes (oriundos da região de Daomé, na África) e trabalhou desde da primeira infância na lavoura e na carpintaria.Aos 21 anos de idade, ele se rebela e foge, tornando-se bandoleiro e líder de um bando de ex-cativos armado. (UZÊDA, 2019;

(NEVES; NOVAES, 2019).“Há quem afirme que Lucas da Feira foi uma espécie de Hobin Wood (SIC), que indignado com sua realidade, tirava dos fazendeiros ricos para dar aos pobres, que lutava pela causa da abolição ajudando outros escravos. Outros afirmam que nosso personagem não fazia distinção de classes e roubava de quem achava que deveria roubar. No livro Lucas da Feira de Inocêncio Marques são apresentadas as fases dos inquéritos policial e judicial, onde Lucas é acusado de crimes como roubo, latrocínio e tortura.” (NEVES; NOVAES, 2019).

13Antônio Silvino (Manoel Baptista de Morais) foi um dos mais conhecidos cangaceiros da história do Brasil. Inúmeras vezes, é referenciado como o rei do cangaço que antecedeu Lampião. Nasceu Afogados de Ingazeira-PE em 02 de novembro de 1975 e ingressou no cangaço aos 21 anos de idade. O seu pai, o senhor Batistão de Pajeú, foi assassinado no sertão pernambucano, numa disputa por terras. Esse evento levou os filhos Manoel e Zeferino a buscar vingança e adentrar no mundo do crime. Manoel mudou o nome para Antônio Silvino em homenagem ao tio Silvino Aires Cavalcanti de Albuquerque que também era cangaceiro. Esse parente acolheu e auxiliou Antônio Silvino e seu irmão após a morte de Batistão.

12 O livro Lampião de Ranulfo Prato foi publicado em 1934. Essa edição serviu como referência bibliográfica para Rachel de Queiroz elaborar o textoLampião(1953), uma vez que a segunda edição da obra foi lançada, somente, em 1972, ou seja, posteriormente à publicação em questão de Rachel de Queiroz. A exemplo do que foi realizado com o livro No tempo de Lampiãode Leonardo Mota, buscou-se também a primeira edição do livroLampiãode Ranulfo Prata. No entanto, foi encontrada a terceira edição da obra, publicada em 1980.

11 A primeira edição do livro No tempo de Lampiãode Leonardo Mota foi publicada em 1930. Essa edição foi a consultada por Rachel de Queiroz para escrever a peça Lampião (1953), visto que a segunda edição do livro foi publicada em 1967, posteriormente à publicação da dramaturgia em tela.

Ao procurar essa referência para consulta, buscou-se a edição de 1930, no entanto, foi encontrada a terceira edição da obra, publicada em 1976.

ingressou no banditismo15; traça o perfil físico, psicológico e antropológico do cangaceiro e de alguns dos seus companheiros; comenta a respeito de autoridades policiais que empreenderam buscas e batalhas para prender Lampião; retrata lugares que foram palco de peripécias e batalhas do cangaço. No primeiro capítulo, o autor cita algumas mulheres do cangaço: “Mulheres que os acompanhavam: Maria Déa, Lydia, Lió, Ignacia, Anna, etc.” (PRATA, 1980, p. 42). Este trecho de duas linhas é a única referência que se faz às cangaceiras na obra.

Ao lermos os livros mencionados acima, percebe-se que Rachel de Queiroz empreendeu uma pesquisa histórica acerca do cangaço e, mais especialmente, sobre o bando de Lampião para escrever a dramaturgia Lampião (1953). Inúmeros fatos históricos relatados por Leonardo Mota e Ranulfo Prata se fazem presentes nos diálogos e ações dos personagens da peça.

Na época em que Rachel escreveu a peça em tela, as referências sobre os cangaceiros eram inúmeras, como bem demonstram os livros de Leonardo Mota e Ranulfo Prata. No entanto, os estudos acerca da presença feminina no cangaço eram escassos. A referência bibliográfica mais antiga acerca das cangaceiras que esta pesquisa conseguiu alcançar, foi a primeira edição do livro Lampião, As Mulheres e o Cangaço de Antônio Amaury Correia de Araújo, lançado em 1985, portanto, posterior à escrita da peça racheliana e ainda escrito por um homem. As mulheres só começaram a escrever sobre as cangaceiras bem mais para frente.

Além das referências bibliográficas citadas explicitamente no trecho transcrito acima, Raquel de Queiroz menciona outras referências que lhe auxiliaram na escrita da dramaturgiaLampião(1953). Dentre elas, o noticiário local.

Em relação às informações fornecidas pela imprensa escrita a respeito do cangaço, Ana Paula Freitas (2004) se debruçou sobre as notícias da Folha de São Paulo (São Paulo-SP) e o Correio da Manhã (Rio de Janeiro-RJ). A pesquisadora relata que:

As matérias veiculadas pelos periódicos paulista e carioca mencionam a participação de algumas mulheres em situações de confronto com a polícia [...] As informações sobre a mulher cangaceira limitam-se, na maioria das vezes, ao nome, a uma ligeira descrição física e ao nome do companheiro.

Nem sempre é mencionada a maneira pela qual estas mulheres passaram a

15De acordo com Ranulfo Prata (1980), quando Virgulino Ferreira da Silva tinha 16 anos de idade, um vizinho da família roubou uma cabra do seu pai, o senhor José Ferreira da Silva. Por causa desse acontecimento, o jovem Virgulino e o seu irmão Antônio castigam o ladrão com a morte. A partir daí se inicia a vida de criminalidade dos irmãos que acabam, em virtude das perseguições desencadeadas pelo evento mencionado acima, se juntando ao Bando de Sinhô Pereira, porta de entrada do cangaço para os irmãos Ferreira da Silva.

integrar os bandos. Esta característica também se observa na cobertura da imprensa, tanto no periódico paulista como no carioca. O jornal O Estado de S. Paulo, por exemplo, apenas menciona esta presença de forma genérica e depreciativa, ora tratando-as como bandoleiras, ora como amantes, sugerindo sua condição de objeto sexual ou, ainda, como números.

(FREITAS, 2005, p. 57-125).

Diante das informações mencionadas acima, infere-se que a centralidade da personagem Lampião na dramaturgia de Rachel de Queiroz se justifica, em parte, pelas referências bibliográficas e historiográficas encontradas acerca do fenômeno do cangaço em sua pesquisa.