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2 CANGACEIRAS (2018): UM TEXTO DRAMATÚRGICO HÍBRIDO

2.6 Personae e o autor-rapsodo de Sarrazac

Uma das tarefas de análise de Cangaceiras (2018), é tentar entender a utilização daquilo que Maria Cristina denomina dePersonae.No texto-espetacular, a autora dá voz às figurasPersona 1, Persona 2, Persona 3, e Persona 4. No entanto, nem todas as falas das personae são indicadas no registro escrito. Em minhas investigações percebi que, em linhas gerais, as falas que estão dentro de parênteses são das personagens e as que não se encontram entre esse sinal gráfico são as daspersonae.

Embora não exista uma definição clara no texto, ao assistir ao espetáculo e ao conversar com Maria Cristina Siqueira sobre o assunto, constatei que, para dizer o texto escrito, as intérpretes se alternam entrepersonaee personagens.

De acordo com Maria Cristina Siqueira (2020), na construção de Cangaceiras (2018) há um entrecruzamento de vivências das personae e personagens.

Para definir o conceito de persona em seu trabalho, a pesquisadora se afasta da concepção depersona da tradição teatral greco-romana e se aproxima da ideia de persona apresentada pelo psiquiatra James Hall (2017). De acordo com

Pavis (2011), no teatro grego, a persona é a máscara, o papel assumido pelo ator, cuja função é esconder a sua fisionomia ou personalidade. Para Hall (2017 apud SIQUEIRA, 2020) , “a persona é a função de relacionamento com o mundo coletivo exterior” e não possui a mesma função que é empregada no teatro tradicional, isto é, a de esconder.

Os papéis da persona muitas vezes são concebidos como “máscaras” e recebem um significado negativo, em contraste com a personalidade

“verdadeira”, vivenciada pelo ego [...]; entretanto, esse é um entendimento errôneo da função da persona. A persona é simplesmente a estrutura de relacionamento com a situação consciente coletiva, análoga ao conceito de papel em teoria social. (HALL, 2017, p. 88, Apud SIQUEIRA, 2020).

Nesse sentido, em Cangaceiras (2018), a persona de cada atriz é a sua relação com o mundo enquanto posição feminina. As personaenarram e comentam as histórias das cangaceiras e, a partir dessas histórias, propõem reflexões acerca da condição feminina na sociedade sob uma ótica feminina e feminista.

De acordo com Peter Szondi (2001) no drama, o desencadeamento das ações se dá por meio dos diálogos entre os personagens. Em Cangaceiras não há diálogos, as ações das personagens são desveladas à medida que as personae contam as histórias das cangaceiras e apresentam as personagens. Nesse sentido, Maria Cristina, ao construir seu texto, se aproxima do elemento épico.

O Épico, como gênero literário, isto é, em sentido substantivo, diz respeito às obras literárias em que há a presença de um narrador que conta uma estória e engloba produções como a epopéia, o romance, a novela e o conto. (ROSENFELD, 2010).

Quando se afirma que o texto Cangaceiras (2018) se aproxima do domínio épico, isso não significa que a obra seja um conto, romance ou epopeia, isto é, que o texto seja uma Épica em sentido substantivo. Entende-se que a obra de Maria Cristina Siqueira é um texto escrito para teatro que possui traços épicos. O épico é aqui entendido em sentido adjetivo, em conformidade com a perspectiva apresentada pelo teórico e crítico teatral alemão, radicado no Brasil, Anatol Rosenfeld (2010). De acordo com esse entendimento, os termos épico, lírico e dramático, em sentido adjetivo se referem a formas de construção literária, correspondem a traços estilísticos, atributos presentes, ou não, em determinadas obras. (ROSENFELD, 2010).

Lurence Batbolosi e Muriel Palana (SARRAZAC, 2012) defendem que epicizar um texto teatral não significa transformá-lo o em epopeia ou romance, muito menos numa escrita puramente épica, mas implicam incorporação de componentes épicos na mesma medida em que são inseridos elementos dramáticos ou líricos.

“Logo, a epicização implica desenvolvimento da narrativa sem ser uma simples narrativização do drama.” (SARRAZAC, 2012, p.61). Nesses termos, o épico não deve ser entendido como um modelo (um gênero literário), mas como uma tendência de escrita.

Quando se conta uma história, se faz necessária a presença de um(a) narrador(a). Isto significa que a narrativa pressupõe a existência de um sujeito épico.

Quando se estuda o conceito de Drama Absoluto, de Peter Szondi (2001), entende-se que a supremacia dos diálogos desemboca na ausência do autor. No drama absoluto, o autor estaria ausente. O drama se passa no tempo presente e as ações são desveladas à medida que os diálogos são falados pelos personagens. Os personagens, por sua vez, também se fazem presentes por meio de suas falas.

Dessa maneira, não há necessidade de um outro para apresentar as ações e/ou personagens. Por esse motivo, para Szondi (2001), a manifestação do sujeito épico, nos textos dramáticos,representa um forte indício da crise do drama, pois ele proporciona um assento na narrativa em detrimento da ação, fazendo com que o ponto de vista do autor se torne evidente. Dessa forma, percebe-se que em Cangaceiras(2018) há uma epicização23do drama.

Sarrazac (2012) entende que o sujeito épico representa uma quebra da ação dramática tal como concebida por Aristóteles na Poética. O sujeito épico não participa da ação dramática. No momento da narração, não há diálogos entre o narrador e os personagens e também há uma suspensão da conversação entre as personagens. Isso significa que a ação dramática é necessariamente interrompida.

O sujeito épico representa a presença de um terceiro, de uma outra voz, além dos personagens. Ele traz para a obra a reflexão, o ponto de vista do autor.

23 O termo epicização diz respeito a características épicas - isto é, o épico em sentido adjetivo - em obras dramáticas. No entanto, é importante distinguir, como bem aponta Sanches (2017, p. 44),

“aspectos épicos de um texto (no sentido adjetivo de gênero) e as características particulares do teatro épico brecthiano, ou das visões de teatro e de dramaturgia épicos. Embora associados, constituem objetos diferentes – a primeira é uma noção de gênero como modo poético, e a segunda é uma noção de engajamento político-artístico, associada ao modo épico”.

As personae, emCangaceiras(2018) desempenham a função de narradoras (sujeito épico), à medida em que contam as histórias das cangaceiras, como podemos identificar nos trechos abaixo:

Cena 3 – Sila

Ilda Ribeiro de Souza, Sila. Perdeu a mãe aos seis anos de idade, sendo criada pelo pai. Foi uma menina muito travessa, gostava de ir buscar o gado no pasto montada a cavalo e de subir em árvores. Aos treze anos perde o pai e passa a cuidar dos irmãos que saíam cedo para trabalhar, deixando-a sozinha em casa, na pequena propriedade da família. Alegre, comunicativa, devota de São João Batista. Dançava como o que! Era chamada de “Pé de Ouro”. Sila gostava dos folguedos populares: dançou Reisado, Bumba Meu Boi e Pastoril.

[...]

Cena 4 – Lídia

Lídia Pereira de Souza. Conta-se que é uma das mais belas mulheres que adentrou no cangaço. Morena, dentes brancos, lábios carnudos, sorridente, alegre, brincalhona. Linda e dona de curvas estonteantes. Para muitos, a mais bela cangaceira que existiu. Não existe nenhuma fotografia de Lídia, o que faz ainda mais aguçar-se a curiosidade sobre ela. Não tinha nem dezoito anos, quando quis acompanhar o cangaceiro Zé Baiano.

[...]

Cena 7 – Cristina

Cristina. Alta, mulata, olhos vivos, tinha sobrancelhas grossas e cerradas que se encontravam sobre o nariz. Cristina morava numa fazenda com sua família em Sergipe. Certa vez, essa fazenda se deparou com a chegada de um grupo de cangaceiros, que vinham em paz. Foram bem recebidos, com muita comida e bebida.

[...]

Cena 10 – Neném do Ouro [...]

Eleonor ficou conhecida no cangaço como Neném do Ouro porque usava grandes medalhões de ouro, presenteados por seu companheiro Luís Pedro, que era homem de confiança de Lampião. Baiana, era uma morena afilada, cabelos pretos e escorridos, simpática, tranquila e muito amiga de Maria Bonita. Uma vez, os cangaceiros bateram à porta de sua casa e pediram dinheiro a seu pai, mas naquele momento ele não tinha dinheiro nenhum. Os cangaceiros arrastaram Neném à força e a levaram para o coito, até que o pai arranjasse o dinheiro para dar a eles. (SIQUEIRA, 2018, p. 2-12).

Além de narradoras que contam as histórias das cangaceiras, as personae são comentadoras que se implicam em suas falas. Como já mencionado neste

trecho do trabalho, para Cristina Siqueira, aspersonaerepresentam a relação com o mundo enquanto posição feminina das atrizes. Pode-se dizer que elas são o que as atrizes têm a dizer enquanto nordestinas, brasileiras, inseridas num contexto em que as mulheres são vítimas das mais variadas formas de violências. As personae se aproximam do que Sarrazac chama de autor-rapsodo. Para ele, o rapsodo, ao contrário do autor dramático tradicional, não se esconde por detrás das personagens, mas se mostra em primeiro plano. Por meio daspersonae, as atrizes e encenadoras revelam os seus entendimentos de mundo, as suas posições políticas e ideológicas, as suas opiniões sobre as histórias das cangaceiras e sobre as mulheres de maneira mais ampla.

Na explanação acerca da especificação do texto dramático apresentada por Laurecen Barbolosi e Muriel Plana (SARRAZAC, 2012) se torna evidente a relação entre o sujeito épico e o autor-rapsodo, conceito criado e desenvolvido por Sarrazac.

Para o teórico francês, o autor dramático tradicional é compelido a ocultar-se por detrás das personagens, atitude contrária à do autor rapsodo. Em sua obraO Futuro do Drama, Sarrazac entende que:

o dramaturgo-rapsodo [...] à semelhança dos seus antepassados homéricos, [...] está sempre em primeiro plano para contar os acontecimentos e ninguém pode abrir a boca sem que ele lhe tenha dado previamente a palavra . Se, durante a leitura de uma peça, ouço a voz do seu autor, quer esta voz seja límpida ou camuflada, quer me chegue diretamente ou através de um intermediário, sei, antecipadamente, que a representação não será clara. Esta voz é perturbadora: do teatro, da ficção. Ela conta-nos o modo como o autor apreende o mundo.[...] Esta voz, que transforma o autor em

«sujeito épico», é contígua ao teatro e à realidade; percorre os caminhos mistos da arte e da vida. Além disso, detém o poder de suspender e de retomar o desenvolvimento da peça: engrena e problematiza. Desenrolar uma ficção é sempre um gesto um pouco teológico, inseparável de um vislumbre de certeza. Esta voz será, portanto, a necessária contrapartida de questionamento à soberania do ficcionamento. Falar na primeira pessoa, tornar a ficção transparente e centrar a narrativa teatral na sua própria subjectividade de autor. (SARRAZAC, 2002, p.21).

É importante destacar, entretanto, que a concepção de autor-rapsodo é ainda mais ampliada na obra de Sarrazac. A ideia de voz rapsódica vai além da sua relação com o sujeito épico. Ao comentar a obra de Peter Szondi em Poética do Drama Moderno, Sarrazac (2017) elucida que:

O autor da Teoria do Drama Moderno põe em evidência o aparecimento no seio da forma dramática, de um “eu épico” que se acredita objetificar o mundo no qual ele evolui, e sobretudo o mundo sobre o qual ele exerce o seu olhar. Mas o que Szondi parece não conseguir visualizar, ao menos na época

em que escreve o seu Teoria do Drama Moderno, é que esse sujeito épico possa ser igualmente um sujeito dramático e um sujeito lírico. Em resumo, um sujeito rapsódico. (SARRAZAC, 2017, p. 318).

No texto Cangaceiras (2018), as personae, além de trazerem a dimensão épica para o trabalho, apresentam também aproximação com a voz lírica, pois ao contar as histórias das cangaceiras, elas imprimem suas percepções pessoais, permeadas de emoções e sentimentos nos momentos em que comentam as vidas dessas mulheres.

Sarrazac (2017) mostra também que a voz rapsódica pode ir além da voz do autor da obra. Em suas palavras:

Que voz é essa, de qualquer forma a mais, que faz ouvir não sobre, mas antesao ladodas personagens? não a do autor, no sentido de auctoritas. A voz que se escuta em tantas peças modernas e contemporâneas [...] é uma voz inquieta, errática, imprevisível. E, com frequência, subversiva. Uma voz anterior à do autor. Voz que remonta à oralidade das origens. Voz do rapsodo, que retorna, que se imiscui na ficção. (SARRAZAC, 2017, p. 317).

A partir da ideia de Sarrazac apresentada acima, percebe-se ainda mais a aproximação entre a concepção do autor rapsodo e o papel que as personae ocupam no texto de Maria Cristina Siqueira. Cada persona traz para o texto não apenas a voz de Maria Cristina e demais atrizes que compõem o espetáculo, mas evidenciam, sobretudo, a voz de uma coletividade que reflete sobre a condição feminina.

A figura da persona, conforme apresentada pela proposta de Siqueira, pode se aproximar do conceito de autor-rapsodo de Sarrazac, tanto por seu caráter épico e lírico, quanto pela definição dada por Maria Cristina Siqueira relacionada à condição feminina das atrizes no mundo. Portanto, no texto Cangaceiras (2018), as vozes das atrizes, das autoras, nos chegam através das personae. Temos, nesse texto, ecoadas as vozes dessas mulheres nordestinas. Suas experiências, opiniões e sentimentos são transformados em poética. Essa voz rapsódica das atrizes-autoras-contadoras torna o texto potente para discutir a mulher cangaceira e a condição feminina na sociedade de moldes machistas e patriarcais sob um ponto de vista feminino e feminista.

2.7 As reflexões sobre as cangaceiras e a condição feminina na