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A representação da mulher cangaceira nos textos Lampião (1953) e Cangaceiras (2018)

3 ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE OS TEXTOS LAMPIÃO E CANGACEIRAS No que diz respeito à dimensão temporal, os textos estudados nesta

3.3 A representação da mulher cangaceira nos textos Lampião (1953) e Cangaceiras (2018)

O texto Lampião (1953) apresenta a mulher cangaceira somente na figura de Maria Bonita5. JáCangaceiras(2018) apresenta os relatos de várias cangaceiras, além de só possuir personagens femininas.

Para entendermos melhor esse aspecto de Cangaceiras, é importante entendermos em qual contexto social, político, cultural e ideológico essa obra se insere. Nessa última década (2010-2020), observamos no Brasil uma grande polarização política e social e também a efervescência de alguns movimentos sociais, entre os quais, e com destaque, os feminismos.

A história do movimento feminista é contada em ondas. Olívia Cristina Perez e Arlene Martinez Ricoldi (2019) mostram como a concepção de ondas feministas se aproximam da noção deciclos de protesto. “O ciclo de protestos equivale a uma fase de intensificação dos conflitos, na qual o protesto público ganha força, difundindo-se amplamente em vários setores da sociedade, inclusive nos menos mobilizados.'' (PEREZ & RICOLDI, 2019, p. 2).

Entendemos que as ondas feministas são momentos em que as pautas relacionadas às questões da mulher estão mais evidenciadas em decorrência da mobilização social, dos protestos e discussões sobre essas temáticas. No entanto, não é possível pensar a ideia das ondas feministas de maneira homogênea no mundo inteiro.

[...] os períodos e as características gerais de cada onda podem variar entre os diversos países. Enquanto alguns conquistaram o sufrágio feminino (traço da primeira onda) no início do século XX (por exemplo, a Finlândia, em 1906), outros só permitiram a votação feminina no final do século (1993, na África do Sul). [...] O uso da ideia de ondas serve para organizar a realidade, apontando tendências do movimento feminista, mas não deve ser

5 A identificação de Maria Bonita como representante feminina do cangaço não é algo particular à peça da escritora cearense. Na maior parte dos textos dramáticos acerca do tema por nós pesquisados, Maria Bonita é a única representante feminina vinculada ao mundo do cangaço. Os textosLampião e Maria Bonita no Reino Divino(1988) de Annamaria Dias,Bonita Lampião(1994) de Renata Melo,O Auto de Angicos(2003) de Marcos Barbosa, aA peleja de Maria Bonita pelo Amor de Lampião(2017) de Laura Tomé seguem a mesma tendência. Sobre o texto Bonita(2014) de Dione Carlos, é importante ressaltar que a personagem Bonita cita o nome de inúmeras cangaceiras. Os únicos textos, encontrados nessa pesquisa, que possuem mais de uma cangaceira em cena são Cangaceiras (2018) e Cangaceiras: Guerreiras do Sertão (2019) de Newton Moreno. De todas as obras citadas, somente Cangaceiras (2018) de Maria Cristina Siqueira apresenta somente personagens femininas.

limitadora da sua análise, desconsiderando a trajetória, contradições e diversidade do campo social. (PEREZ ; RICOLDI, 2019, p. 4).

Além desse apontamento sobre as diferenças históricas do feminismo entre países, é importante mencionar que as reflexões iniciadas em determinada onda não necessariamente se encerram quando a onda subsequente se inicia.

De acordo com Franchin (2017), para fins didáticos, o feminismo é dividido nas seguintes ondas: 1) Primeira onda - fim do século XIX até meados do século XX;

2) Segunda onda - meados dos anos 1950 e se estende até meados dos anos 1990;

3) Terceira onda - se inicia em meados da década de 1990.

As feministas da primeira onda lutavam pelo direito ao voto, a participação política e na vida pública. A segunda onda do feminismo ficou conhecida pelo slogan

“o pessoal é político” de Carol Hanisch6. Esse momento é marcado pela luta por direitos reprodutivos e discussões acerca da sexualidade. Na terceira onda Judith Butler (1990) 7, por exemplo, questiona o paradigma da divisão entre o natural e o social, sexo e gênero; Também se destaca, nessa onda, a ideia de transversalismo.

É nesse momento que aflora a proposta de “políticas transversais”, ou seja, aquelas que consideram em suas reivindicações as variadas condições enfrentadas por mulheres no mundo (raça/etnia, classe e sexualidade, nacionalidade, idade e religião, etc).

7Judith Butler é uma filósofa norte-americana; Graduou-se em Filosofia na Universidade de Yale e 1984, aos 28 anos de idade, defendeu a tese de doutorado; Em 2012, recebeu o Prêmio Adorno, em Frankfurt, por sua contribuição para o feminismo e a ética filosófica; É também ganhadora do Prêmio Brudner, na Universidade de Yale, pelos estudos sobre homossexualidade; Atualmente, é professora de Literatura Comparada no Departamento de Retórica da Universidade da Califórnia, onde também é fundadora doCritical Theory Program(Programa de Teoria Crítica) e doInternational Consortium of Critical Theory Programs (Consórcio Internacional de Programas em Teoria Crítica). É também professora titular da cátedra Hannah Arendt na European Graduate School, Suíça. Participa de várias organizações sociais, como aAmerican Philosophical Society, oJewish Voice for Peacee oCenter for Constitutional Rights.(RODRIGUES, 2020).

É importante destacar, entre os seus livros, as publicações Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, lançado em edição brasileira em 2003 e Corpos em aliança e a política das ruas: notas sobre uma teoria performativa de assembleia, publicado em no Brasil em 2018. (HOLANDA, 2019).

6Carol Hanisch é uma importante feminista norte- americana. Graduou-se em jornalismo pela Universidade Drake; Em 1967, foi membro-fundadora do coletivo de feministas radicais em Nova York. Em 1968, participou de um protesto contra o concurso Miss América Pageant, onde ela e outras três ativistas interromperam o concurso com uma grande faixa com a mensagem Libertação das Mulheres; Em 1969, Hanisch escreveu o artigo The Personal is Political no qual a expressão o pessoal é político foi utilizada pela primeira vez; Foi editora do livro Feminist Revolution (1975) e também fundadora da revistaMeeting Ground(1977). Também merece destaque a atuação de Carol nos movimentos anti-racismo, anti-gura, trabalhista e ambiental. (CORRÊA, 2011; SARDENBERG, 2018; GFEMINISTA, 2021).

Embora não seja um consenso entre os estudiosos da área, parte das acadêmicas defende que estamos vivenciando a quarta onda do feminismo. Para Perez & Ricoldi (2019), a quarta onda feminista no Brasil é caracteriza pela utilização dos meios digitais, o reconhecimento de várias clivagens sociais relacionadas ao gênero na luta feminista, e a organização em forma de coletivos.

O feminismo está na moda, não só na pesquisa, mas também na sociedade como um todo. Na academia, nos movimentos sociais, e principalmente na internet, se discute temas e pensadoras, bem como suas vertentes teóricas (radical, socialista, liberal, interseccional etc) [...] Recentemente, autoras como Alvarez (2014) e Matos (2010, 2014) vêm chamando a atenção para uma reconfiguração e um impulso do feminismo que tem alguns traços particulares, como o uso de redes sociais, horizontalidade, altermundismo, etc, além de um marco e um turning point decisivo a partir das chamadas Jornadas de Junho de 2013. (PEREZ; RICOLDI, 2019, p. 2).

Em nosso entendimento, as artes cênicas acompanham essa tendência, pois é perceptível, na última década, reflexões relacionadas ao feminismo nas produções artísticas de mulheres nas artes cênicas em todo o território nacional. Em meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de graduação em licenciatura em teatro8, esboço um breve mapeamento dos espetáculos que tratavam dessas temáticas no ano de 2017 na cidade de Natal-RN. Naquele ano, contabilizei nove espetáculos9 na cidade que tratavam dessa temática. Se fizéssemos esse levantamento hoje, outros títulos10ainda seriam acrescentados a essa lista.

A pesquisadora em artes cênicas Daniela Bescow (2017), em sua dissertação de Mestrado intitulada O discurso das mulheres na cena paulistana de 2015-2016: uma proposta feminista de análise de espetáculos, se debruça sobre espetáculos relacionados às artes cênicas (teatro, dança e performance) apresentados na cidade de São Paulo-SP nos anos de 2015, 2016 e 2017 que trazem apenas mulheres em cena.

As questões feministas, afortunadamente, definem ou, pelo menos, compõem grande parte das produções artísticas contemporâneas. Elas também se

10Por exemplo, o espetáculo Mulheres Invisíveis (2018) sob a direção de César Ferrario.

9 Violetas, da atriz Mayra Montenegro,O Som que faz debaixo D’água, sob a direção de Lina Bel Sena, Eu – Fêmea, da dançarina Roseane Oliveira, Manga Rosa, da atriz Luana Menezes, Tratados sobre mim mesma na Infertilidade, dirigido por Heloísa Souza,Enquanto Falo, do Coletivo Matriona,Inkubus, da artista visual e atriz Alice Carvalho,(Sou)pa de Pedra, da atriz Liliane Bezerra e Femininadas atrizes Tatiane Tenório, Antônia Delgado e Kédma Silva.

8 Apresentado em 2017 no Departamento de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, UFRN, e orientado pela professora Melissa dos Santos Lopes.

fazem cada vez mais presentes nas pesquisas e produções acadêmicas das artes cênicas. Em breve pesquisa realizada no banco de dados do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN (PPGArC), contatou-se que nos últimos dois anos (2019 - 2020), sete dissertações foram defendidas a respeito de alguma forma sobre temas femininos e feministas.

Maria Brigida Miranda (2019) constata que a produção acadêmica feminista nas artes cênicas foi tardia quando comparada a outras áreas de conhecimento das humanidades. Segundo ela:

No Brasil o campo dos estudos da mulher e estudos feministas desde a década de 1980 e mais recentemente dos estudos de gênero e dos estudos queer têm se estruturado como campos multidisciplinares em cursos nas faculdades de humanidades. Há pelo menos três décadas a área de literatura e crítica literária traz algumas pesquisadoras que se embasam nas teorias feministas e de gênero. Mas, mesmo observando que os estudos feministas engendraram várias disciplinas - inclusive os estudos literários - a área de artes cênicas permaneceu até aproximadamente 2008 pouco permeável para (trans)abordagens teóricas como a teoria crítica feminista.

(MIRANDA, 2019, p.5).

Posteriormente, a pesquisadora apresenta algumas considerações acerca da macropolítica brasileira e relaciona o contexto político-social aos estudos sobre a mulher e feminismos nas artes cênicas.

Percebo, como uma das pesquisadoras da área no Brasil, que nos últimos cinco anos – talvez pelo contexto de Golpe de Estado em 2016, pelo acirramento das políticas neoliberais e a proliferação de discursos de intolerância e ódio - há uma crescente visibilidade de inúmeros eventos e atos sobre feminismo e gênero. Talvez a visibilidade, a criação de redes sociais e a multiplicidade de discursos sobre questões de gênero e feminismos estimulem e fortaleçam uma transformação dos estudos teatrais brasileiros sobre o tema. Em minha experiência de organização e participação em eventos acadêmicos, observo que a resistência de colegas de ofício parece estar dando lugar a um crescente interesse em engendrar os estudos de teatro no Brasil a partir das teorias feministas, de gênero e queer. Se por um lado intuo que uma das razões é a popularização das questões de gênero na grande mídia e redes sociais. Por outro lado, vale destacar como os governos do presidente Lula (2003-2010) e da presidenta Dilma Rousseff (2011-2016) promoveram investimentos e criação de políticas públicas que ajudaram a popularizar o assunto da igualdade de gênero no Brasil. Essas ações, me parecem, somaram-se as ações de diversos movimentos sociais criando reverberações inclusive na produção artística brasileira. No âmbito acadêmico, a imagem que vejo é de uma

―onda feminista formada por colegas, pesquisadoras e pesquisadores e artistas que querem ―falar sobre ―mulheres, ―gênero e temáticas LGBT nas artes da cena (MIRANDA,2020).

Ainda sobre a produção acadêmica acerca dos estudos de gênero nas artes cênicas, Miranda (2020) destaca atividades e publicações acadêmicas na

disseminação de discursos sobre teatros feministas: 1) O Simpósio Temático específico sobre teatro e Gênero na oitava edição do Seminário Internacional Fazendo Gênero em 2008; 2) Um número dedicado a temática teatro e Gênero em 2013 e o dossiê Teatro Feminista: Lutas e Conquistas em 2018 na Revista Urdimento (Revista do Programa de Pós-graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC).

Os dados apresentados acima demonstram que o espetáculo Cangaceiras (2018) não está isolado. Ele se insere num contexto de muitos espetáculos e produções cênicas que tratam sobre a questão do feminino e do feminismo, que refletem sobre a condição da mulher na sociedade.

Embora Cangaceiras componha um conjunto de obras que discutem as questões relativas à mulher de uma forma mais crítica e baseada em pressupostos feministas, é importante frisar algumas particularidades dessa obra, pois nela as mulheres cangaceiras são retratadas de uma forma pouco comum para a temática.

A peça de Siqueira é uma obra teatral que trata a respeito da mulher cangaceira a partir de outra perspectiva. A obra viabiliza mulheres que adentraram no cangaço e que foram invisibilizadas na história e, consequentemente, no universo das artes11.

Maria Cristina Siqueira, ao colocar o foco do seu trabalho nas figuras das cangaceiras, desloca a ação tradicionalmente periférica dessas personagens para o primeiro plano, o que torna sua obra ímpar por falar dessas mulheres de maneira plural, mostrando que elas foram múltiplas em suas existências.