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3 ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE OS TEXTOS LAMPIÃO E CANGACEIRAS No que diz respeito à dimensão temporal, os textos estudados nesta

3.4 Cangaceiras e a Violência contra a mulher

Maria Cristina Siqueira (2020), em sua tese de doutorado, apresenta críticas contundentes ao texto de Rachel de Queiroz. Ela argumenta que “o problema do texto de Queiroz não é o de não ser histórico ou ser ficcional, que não são

“obrigações” dramatúrgicas, mas o de apresentar Maria Déa, a Maria Bonita, como

11 Em espetáculos teatrais anteriores, incluindo o Lampião de Queiroz (1953), a figura feminina representante do cangaço era tão somente Maria Bonita. Além disso, também era comum a representação de Maria Bonita sempre em companhia da figura de Lampião e não sozinha, como ocorre emLampião(1954) de Rachel de Queiroz, Lampião e Maria Bonita no Reino Divino(1988) de Annamaria Dias, Bonita Lampião (1994) de Renata Melo, O Auto de Angicos (2003) de Marcos Barbosa,A peleja de Maria Bonita pelo Amor de Lampião(2017) de Laura Tomé.

uma figura estereotipada.” (SILVA, 2020, p. 121)12. Para a pesquisadora, Rachel de Queiroz coloca Maria Déa como vilã que se rebela contra a “falta de macheza” do seu primeiro marido e abandona os “deveres sagrados de mãe e esposa, ‘virtudes’

de uma mulher decente, para seguir com um sanguinário bandido.” (SILVA, 2020, p.122). Ao desposar Lampião, a personagem Maria Bonita tem o castigo merecido por desertar o lar e os filhos, pois o cangaceiro passa a rebaixar e ofender a esposa colocando-a no seu devido lugar. Para Silva (2020), Rachel de Queiroz leva a temática da mulher cangaceira para o teatro corroborando com as ideias machistas, retratando a personagem Maria Déa/Maria Bonita como desumana e repleta de atributos negativos.

Para apoiar as suas críticas à dramaturgia racheliana, Maria Cristina lança mão de uma citação da crítica teatral de Décio Almeida Prado ao texto, comentada no Capítulo 1 desta dissertação. Após alguns parágrafos enfatizando que Rachel de Queiroz retrataria Maria Bonita de forma machista, ela apresenta o argumento de Prado de que “a peça foi escrita num momento pouco frutífero para a dramaturgia brasileira, com escritores assumindo papéis de dramaturgos, como forma de promover o teatro do período.” (SILVA, 2020, p.124).

Estudar um texto sobre o qual se encontra uma fortuna crítica negativa se constitui num verdadeiro desafio. Não foi fácil me desvencilhar das ideias encontradas sobre o Lampião (1953) de Rachel de Queiroz e propor uma leitura mais particular e independente da obra. Precisei me distanciar das falas já consolidadas sobre esse escrito e lançar um novo olhar para a produção da renomada escritora cearense, mais abrangente em relação ao contexto da obra e da autora.

As críticas feitas ao texto de Rachel de Queiroz, em parte, são pertinentes: o texto Lampião (1953) traz inúmeras falas hoje consideradas machistas e, ao que tudo indica, a personagem ficcional não faz jus à figura histórica de Maria Gomes de Oliveira. No entanto, não se pode deixar de considerar que as violências sofridas pela personagem não foram incomuns às mulheres cangaceiras numa perspectiva mais ampliada.

Sobre esse aspecto, é importante destacar que o texto ficcional de Rachel de Queiroz, embora, no que se refere à Maria Bonita, seja repleto de discrepâncias entre realidade vivenciada pela cangaceira e as situações de violências e

12Maria Cristina Siqueira é o nome artístico de Girlane Cristina Siqueira da Silva.

humilhações sofridas pela personagem da peça, ainda apresenta menos violência do que o texto Cangaceiras (2018) de Maria Cristina Siqueira, que foi alicerçado em relatos das ex-cangaceiras, chegando mesmo até a entrevistar a ex-cangaceira Dulce, em Campinas-SP, por duas vezes. Isso nos dá subsídios para afirmarmos que, de fato, o cangaço foi um ambiente hostil, machista e misógino onde muitas mulheres foram maltratadas.

No texto de Siqueira, temos deliberadamente as vozes das atrizes e encenadoras que apresentam as cangaceiras como mulheres fortes e resilientes, aproximando-as de figuras arquetípicas e transgressoras. No entanto, no que diz respeito aos relatos das cangaceiras, se sobressai cenas de extrema violência contra a mulher.

Como já mencionado, os dois textos aqui investigados possuem entre si 65 anos de diferença e apresentam discrepâncias significativas. No entanto, no que se refere à exposição da violência sofrida pela mulher, apresentam semelhanças. Em ambas as peças, essa ferida é exposta de forma veemente. No texto de Rachel de Queiroz, são denunciadas a violência e os abusos sofridos pela personagem Maria Bonita no contexto de sua vida ao lado dos cangaceiros. Em Cangaceiras (2018), são apresentados relatos sobre as personagens nos quais, muitas vezes, se faz alusão a situações de extrema violência como feminicídio, estupro, violação de seus corpos, pedofilia, dentre outros. A partir do relato desses episódios, as atrizes tecem reflexões sobre a condição da mulher nos dias de hoje, mostrando que essas violências, infelizmente, ainda se fazem presentes.

Dessa constatação, podemos inferir que a violência sofrida pelas mulheres cangaceiras e retratada por Rachel de Queiroz, infelizmente, ainda perdura no presente e, de maneira aguda, nas duas primeiras décadas do século XX, como demonstram as comparações tecidas pelo texto Cangaceiras. Ao mostrar, por exemplo, os relatos de estupro sofridos pelas cangaceiras Dulce e Dadá, o feminicídio de Lídia, cometido por seu companheiro Zé Baiano, e a misogenia dirigida às cangaceiras, relaciona as violencias dirigidas a essas sertanejas a situações presentes na vida de inúmeras mulheres ainda hoje, Brasil afora.

É inegável que, na atualidade, observa-se o fortalecimento dos feminismos.

Encontram-se pesquisadoras feministas nas mais diversas áreas do conhecimento mostrando, discutindo e até mesmo denunciando situações de desigualdade entre homens e mulheres na sociedade; Na última década, observou-se uma série de

hastags nas redes sociais com motivações feministas, como #omeuprimeiroassédio em 2014 e o #meuamigosecreto 2015; Também destacam-se campanhas publicitárias para o combate e a denúncia da violência contra a mulher; Em relação específica às artes cênicas, observa-se a majoração de produções, tanto do ponto de vista artístico quanto acadêmico, que abordam as questões feministas.

Embora os textos estudados possuam 65 anos de diferença, observa-se em ambos os quadros a subordinação da mulher cangaceira, marca de uma sociedade alicerçada em preceitos patriarcais. No entanto, a cada dia, movimentos de mulheres vêm lutando e disputando espaços de representação e representatividade.

Uma das formas de engajamento e visibilidade dessas lutas é a utlização das redes sociais, símbolo da onda feminista que estamos vivenciando, que propiciam a troca de saberes e experiências entre mulheres de difrentes classes sociais, faixas etárias e condições socioeconômicas. Dessa forma, vislumbra-se que essa onda feminista colabore na construção de um mundo mais justo para as mulheres, onde possam ser produzidas narrativas em que as mulheres sejam retratadas de forma empoderada e não em condições de violência e subordinação.