• Nenhum resultado encontrado

A criação do texto Cangaceiras (2018): As referências

2 CANGACEIRAS (2018): UM TEXTO DRAMATÚRGICO HÍBRIDO

2.5 A criação do texto Cangaceiras (2018): As referências

Cangaceiras (2018) foi criado no decorrer do processo criativo para a concepção do espetáculo homônimo. Ele é fruto dos laboratórios (experimentos) cênicos propostos às atrizes por Maria Cristina Siqueira e também das pesquisas acadêmicas e documentais acerca das mulheres cangaceiras. Trata-se, portanto, de um texto pós-cênico. Dessa forma, identificamos na obra, falas agregadas ao espetáculo que são provenientes da pesquisa documental e acadêmica e falas intrínsecas ao processo criativo. Nessa parte do capítulo, serão indicadas as referências bibliográficas que embasaram a escrita de Maria Cristina Siqueira.

O livro Mulheres que correm com Lobos, da escritora Clarissa Pinkola Éstes (1999) é uma referência bibliográfica marcante no texto Cangaceiras (2018). A autora teoriza a respeito do arquétipo da Mulher Selvagem. Segundo ela, quando as mulheres reafirmam sua relação com esse arquétipo, uma vida intensa e entusiasmada é estimulada nos mundos interior e exterior. No livro, é enfatizado que o termo selvagem, no contexto proposto, não é utilizado em um sentido pejorativo, como algo fora de controle, mas em seu sentido original e diz respeito ao desfrute de uma vida natural que propicie a integridade inata do ser e de limites saudáveis. A mulher selvagem está relacionada à natureza básica, intrínseca e inata das mulheres. Na primeira cena do texto Cangaceiras (2018), é feita uma associação entre o arquétipo da Mulher Selvagem e o termo Cangaceira.

Nessa mesma conversa, ela afirma que há uma aproximação entre o seu trabalho de encenadora e a concepção dedramaturgia como textura, tal como foi teorizada por Matteo de Bonfitto (2011). Para o estudioso essa ideia de dramaturgia como textura abrange camadas que são desenvolvidas pelos elementos que compõem o fenômeno teatral (atuação, iluminação, figurino, maquiagem etc) e suas inter-relações. O autor leva em consideração o texto que é criado a partir da cena.

_________________.

Cena I

PERSONA 1 - Cangaceira aqui como representação mítica, transgressão.

Selvagem não no sentido pejorativo de algo fora de controle, mas em seu sentido original, de viver uma vida, se dedicar a criar, a inventar, a procriar.

PERSONA 2 - Selvagem como sendo arquétipo, como origem. Origem do feminino e de tudo o que for instintivo, tanto do mundo visível quanto do oculto. Ela é visceral, não cerebral.

PERSONA 3 – Ela é a base, ruptura. Consciência matriarcal. Ela é intuitiva, típica e normativa, quando reafirma seu relacionamento com a natureza selvagem, recebe o dom de inspirar, intuir, instruir.

PERSONA 4 – As brabas, não importando onde ou em que época vivam, se arriscam por objetivos que nem sempre são benéficos, concretos ou duradouros. Há sempre riscos à sua espera. Elas compartilham arquétipos instintivos com outras que se relacionam entre si e, por isso, têm a reputação equivocada de serem cruéis, perigosas e vorazes. (SIQUEIRA, 2018, p. 1).

No trecho acima, é utilizada a concepção de "selvagem'' de Éstes (1999) para se entender o termo cangaceira num sentido mais amplo. No trabalho doGrupo Cínicas de Teatro Cia de Mulheres, a palavra cangaceira não diz respeito somente às mulheres que ingressaram no cangaço na década de 1930, mas trata do feminino arquetípico. Nas palavras da própria encenadora, cangaceiras é um termo que remete “à ideia da representação mítica da mulher forte e transgressora.” (SILVA, 2020, p. 39).

Outro livro que fez parte das referências que embasaram Cangaceiras (2018) foi Mulheres no Cangaço: Amantes e Guerreiras (2005), fruto da dissertação de mestrado da cientista social Ilsa Queiróz. Nesse trabalho, a autora estabelece uma relação entre as cangaceiras e o Arquétipo da Mulher Selvagem. Essa associação, como já mencionada nesse capítulo, também é explorada no texto de Maria Cristina Siqueira20. A imagem das cangaceiras como mulheres fortes, corajosas, transgressoras e intuitivas permeia a obra como um todo, como pode ser visto no trecho abaixo:

PERSONA 2 - O que pode ainda ser ainda atribuído é a esperteza, a coragem, a resistência, a intuição, qualidades reservadas às lobas. Ela se posiciona entre o mundo da realidade consensual e do insconsciente místico, vivendo essa liminaridade. Ela ouve coisas, sabe coisas e pressente o que virá a seguir.

20com a diferença que no trabalho no trabalho de Ilza Queiroz as cangaceiras se referem literalmente as mulheres que participaram cangaço, enquanto Maria Cristina utiliza a palavra com o entendimento mais amplo acerca do arquétipo feminino.

PERSONA 1 - A mulher selvagem é uma combinação do bom senso e senso da alma, tem essa dupla capacidade. Algumas nascem com esse dom, outras o adquirem. Renunciam a um lugar, um lar, um espaço concreto e seguro para seguir uma vida nômade, selvagem e instável, de constante movimento e à procura sempre de outro lugar. Essa transformação é transgressão, quando uma mulher busca sua ancestralidade.

PERSONA 3 - Cangaceiras foram mulheres que estiveram à frente de seu tempo, um tempo de submissão, da cozinha, do quarto, do silêncio. Quando iam para o cangaço, iam para o mundo, para o espaço que estava reservado aos homens.

PERSONA 4 - Obviamente, não tinham os mesmos direitos e não atingiram a total liberdade desejada, porque como toda sociedade patriarcal, a sertaneja e a cangaceira criaram regras que mantinham o poder masculino sobre o feminino. Mas quando o seu espaço passou a ser o mundo, as estradas, o mato, acenderam, indiscutivelmente, o sinal de resistência.

Essas mulheres deixaram de ver os rios passarem e passaram a seguir os rios. (SIQUEIRA, 2018, p.2).

Além da ideia apresentada acima, encontram-se na peça, outros conteúdos relativos ao texto de Ilsa Queiróz (2005). De acordo com a cientista social, as mulheres sertanejas, que ingressaram nos bandos, passaram por uma transformação e desempenharam um papel social diverso em vários aspectos da sertaneja comum. Na cena dois, encontram-se informações a respeito da origem socioeconômica das cangaceiras e das condições essenciais para que mulheres sertanejas fossem aceitas nos bandos. Esses requisitos foram explanados por Ilsa Queiroz no primeiro capítulo de sua obra. As condições mencionadas pela cientista social são apresentadas no início da segunda cena do espetáculo.

Cena 2

PERSONA 1 - Elas eram jovens e suas origens socioeconômicas eram diversas, incluindo mulheres de famílias abastadas, e vinham de diversos estados nordestinos, sendo o da Bahia o que mais forneceu moças ao movimento, seguido de Sergipe, Alagoas e Pernambuco. Essas mulheres foram motivo de polêmica na sociedade nordestina da época, onde o significado de ser cangaceiro tinha um peso forte em qualquer lugar do sertão. E sendo mulher, era mais hostilizada, censurada, perseguida.

PERSONA 2 - A presença feminina no cangaço se deu por consideráveis dez anos, entre 1930 e 1940. A maioria delas via no cangaço uma oportunidade para romper com os padrões sociais. Mas nem todas trilharam a estrada do cangaço porque quiseram. Algumas foram forçadas a seguir com cangaceiros, com históricos de violência.

PERSONA 4 - Para ser cangaceira, era preciso ter quatro requisitos:

Primeiro, “Ser moça donzela”, um valor social não só do cangaço, visto que ainda nessa época, para as mulheres, a virgindade antes do casamento era sinal de honra e moral cristã. Segundo requisito: “Ser de paz”, ou seja, deveria ser amiga de todos.

PERSONA 3 - Terceiro: “Ser honesta e fiel”. Isso significava ser “mulher direita, decente”, e garantir exclusividade sexual ao companheiro, sob pena de ser morta, no caso de infidelidade. O quarto requisito, para ser cangaceira, dependeria do resultado do seu treinamento. Quando chegava ao bando, aprendia a atirar e era adestrada no manejo de armas, mais pela sua segurança. Era treinada nas posições de luta, testada se era mesmo destemida. (SIQUEIRA, 2018, p. 2).

Na cena 6, intitulada Maria Bonita, percebe-se a ideia apresentada acerca dessa personagem histórica no livro Bonita Maria do Capitão (2011), organizado por Vera Ferreira (neta de Maria Gomes de Oliveira e Virgulino Ferreira da Silva) e Germana Araújo. Maria, a exemplo do livro de Vera e Germana, é apresentada no texto Cangaceiras (2018) como uma mulher brincalhona e descontraída. “Todos os sobreviventes do cangaço lembraram de uma Maria inquieta, cheia de vida, uma moleca!” (SIQUEIRA, 2018, p. 7).

Maria Cristina Siqueira, em entrevista, indica que também utilizou os livros Sila: Memórias de Guerra e Paz (1995) escrito pela ex-cangaceira Ilda Ribeiro de Souza - a própria Sila - e também Dadá (1989) de José Humberto Dias. Sobre essa última obra, a artista e pesquisadora revela que se concentrou nos relatos da ex-cangaceira Dadá. “Usei a biografia de Sila, Memórias de Guerra e Paz, as entrevistas com Dadá do livro de José Humberto”. (Informação verbal)21. Além dos livros, ela adotou também como fontes para a sua escrita fragmentos dos relatos das cangaceiras encontrados em documentários e no meio digital. Em relação aos documentários que contém relatos de ex-cangaceiras, todos os materiais encontrados, no decorrer da escrita desta dissertação, são posteriores à década de 1970.

Percebe-se então, que Cristina Siqueira, em sua produção artística, faz uma busca genuína das vozes dessas mulheres que tiveram suas vidas e histórias negligenciadas ao longo da história. Obviamente, que tal movimento de resgate é mérito pessoal da encenadora, mas não se restringe apenas a isso. A artista e pesquisadora está inserida num contexto artístico, acadêmico e cultural que, nos últimos anos, vem refletindo sobre a condição da mulher na sociedade, buscando a reformulação das narrativas sobre as mulheres, principalmente aquelas que foram invisibilizadas.

21Maria Cristina Siqueira em entrevista concedida em 9 de junho de 2020.

Além das referências mencionadas, há também falas resultantes dos experimentos cênicos propostos por Maria Cristina Siqueira para a criação do espetáculo. De acordo com a própria encenadora, após os laboratórios, havia sempre uma conversa a respeito das vivências das práticas propostas, para que as atrizes pudessem falar das suas impressões, sentimentos e pensamentos. Desses momentos, algumas falas das atrizes foram aproveitadas no texto.

[...] experimentos foram feitos com relatos das atrizes [...] e boa parte destes relatos, que eram gravados, foi para o roteiro.[...]. Há uma fala na cena de Maria Bonita, por exemplo, que foi extraída de um destes experimentos:

“Mãe sem filho é uma casinha abandonada de barro no meio do Sertão".

Olha a metáfora que a atriz usou. Até mesmo nas rodas de conversas, ao final dos ensaios, surgiram muitas falas bonitas que foram para o roteiro. [...]

eram rodas de conversa que são feitas em processos de teatro, comumente, sobre o que foi experimentado em cada encontro. E também sobre os temas abordados como feminicídio, estupro, assédios, etc. Temas que são comuns à condição do ser mulher. (Informação verbal)22.

A fala mencionada por Maria Cristina vai aparecer na cena 6 da peça, conforme pode ser observado no trecho transcrito a seguir:

Cena 6 – Maria Bonita

“Maria Bonita foi o povo que inventou, porque no tempo a gente tava tão falado, que nem má notícia. Eu era Maria Déa e no cangaço, Maria de Lampião, a Maria do Capitão.[...] . Mas Virgulino me batizou mermo foi de

“Santinha” [...]. A dureza da vida no cangaço não permitia que a gente criasse menino no bando e principalmente porque choro de criança atraía a volante aos coitos. Quando eu a entreguei, uma dor no peito me varou como espinho de coroa de frade na carne. Eu senti uma falta tão grande, mas tão grande... ficava procurando aquela parte que me fazia falta e que me causava tanta dor... o leite escorrendo no peito... buscando em mim, aquele meu pedaço que não estava mais lá”.Mãe sem filho é como uma casinha de barro abandonada no meio do Sertão. (SIQUEIRA, 2018, grifos nossos).

Ao estudar as referências que estruturam o texto Cangaceiras (2018), destacam-se dois pontos importantes: 1) Maria Cristina Siqueira, como demonstrado ao escrever o texto Cangaceiras, mescla relatos das cangaceiras, referências bibliográficas e pessoais das atrizes criadoras; 2) A maior parte das referências bibliográficas utilizadas pela encenadora pernambucana, pelo menos, as identificadas neste trabalho, são de autoras mulheres. Esse segundo ponto vai influenciar sobremaneira o modo como as mulheres são abordadas em sua obra.

22Maria Cristina Siqueira em entrevista concedida em 9 de junho de 2020.

Algumas ideias compartilhadas por Maria Cristina Siqueira acerca das mulheres cangaceiras e apresentadas deliberadamente no textoCangaceiras(2018) são defendidas por outras pesquisadoras que se debruçaram sobre essa temática.

Como mencionado na introdução deste trabalho, algumas pesquisadoras trouxeram as cangaceiras como figuras centrais em suas investigações acadêmicas a partir da primeira década do século XXI. Esses estudos são responsáveis por lançar um novo olhar sobre essas mulheres, trazendo novos discursos e concepções sobre a participação feminina no movimento do cangaço, revelando, portanto, que as cangaceiras foram muito além de meras companheiras ou amantes, elas tiveram participação ativa no movimento. Essa perspectiva vai ser adotada por Maria Cristina em seu texto. Embora alguns desses textos não estejam explícitos na construção de Cangaceiras (2018), eles vão compor os referenciais teóricos da pesquisadora em sua investigação. A ideia de que as cangaceiras foram mulheres transgressoras está presente na obra de Ana Paula Freitas (2005), por exemplo.