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MARIA DÉA POR RACHEL DE QUEIROZ: MULHER MACHO, SIM SENHOR!

1 DE MARIA DÉA A MARIA BONITA: UM ESTUDO DE PERSONAGEM NA PEÇA LAMPIÃO DE RACHEL DE QUEIROZ

1.7 De Maria Déa a Maria Bonita

1.7.1 MARIA DÉA POR RACHEL DE QUEIROZ: MULHER MACHO, SIM SENHOR!

Como já mencionado, na peça racheliana, no primeiro quadro, a futura companheira de Lampião é denominada Maria Déa. Nessa parte do texto, é uma personagem valente, destemida, insubmissa. Rachel vai retratar nessa personagem o estereótipo da mulher-macho nordestina.

Nessa primeira parte da peça, as falas de Maria Déa sugerem que os comportamentos esperados dos homens são mais nobres do que as atitudes e afazeres das mulheres. Além disso, a personagem tece comentários preconceituosos em relação à sua condição de mulher, conforme se observa nos trechos transcritos abaixo:

Maria Déa(brinca, fingindo que vai jogar a cobra em cima do marido):

- Você está com medo! Medroso!

[...]

Maria Déa – Você devia era ter vergonha. Nem parece homem – sei lá o que parece! Tem medo de tudo, até de cobra morta! Se te repugna agora, que dirá quando viva!

[...]

Maria Déa

– Você tem horror de tudo, não só de cobra. Bastou eu lhe chegar a cobra perto, está branco, tão branco! Se agora levasse uma navalhada, não pingava uma gota de

sangue, que não tinha. Você não é homem, Lauro.

[...]

Maria Déa

- Você não monta a cavalo, não enfia uma faca na cintura, não bota cachaça na boca, nunca deu um tiro na sua vida, não é capaz de fazer a menor estripulia, como qualquer outro homem. Vive aí, nessa banca, remendando sapato velho, ganhando um vintém miserável, trabalhando sentado feito mulher...

[...]

Maria Déa

- O pior de você é essa moleza, essa falta de ação. Podia ser de uma parte ou de outra, que eu não me importava. Ora, até na polícia tem homem. Mas você tem medo dos dois. Tem hora em que até me parece que não sou casada com um homem – que sou casada é com outra mulher que nem eu.

(QUEIROZ, 1954, p. 14-17).

Essa valorização do masculino em detrimento do feminino retratada no texto da autora cearense é algo presente no universo sertanejo nordestino nas primeiras décadas do século XX, como bem demonstra Durval de Albuquerque Júnior (2003) em seu livro Nordestino: Uma Invenção do Falo. Nessa obra, o autor vai mostrar, de uma perspectiva crítica, os vários discursos que subsidiaram a construção da figura do“machonordestino”. Na introdução do trabalho, ele explicita que:

A masculinidade é apenas um elemento constitutivo da identidade regional nordestina, mas é fundamental na construção de uma figura homogênea e característica que se chamará do nordestino. Por isso, as experiências e vidas de homens numa região onde “ser macho” é um imperativo pode ser excelente ponto de partida para fazer história dos homens, não mais como indivíduos ou partícipes de feitos coletivos, mas como gênero; não só a história de homens como agentes do processo histórico, mas como produtos desse mesmo processo; a história dos homens se construindo como tal; a história da produção de subjetividades masculinas, em suas várias formas. (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2003, p. 25-26).

O historiador mostra que, nessa região do país, o masculino era tão valorizado que até as mulheres assumiam características e comportamentos considerados masculinos, pois, de acordo com alguns discursos e teorias sobre a região, não haveria lugar para o feminino no território sertanejo, uma vez que as características masculinas, como a virilidade, seriam indispensáveis para lidar com as intempéries da natureza árida do sertão. “No Nordeste, até as mulheres seriam masculinas, macho, sim senhor!”(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003, p. 32).

As falas da personagem Maria Déa convergem com a ideia apresentada nos parágrafos anteriores a respeito dos aspectos masculinizantes presentes na sociedade do sertão nordestino. Identifica-se essa valoração da masculinidade nos seguintes aspecto:

1) o aborrecimento da personagem Maria Déa em relação ao comportamento de seu marido Lauro, considerado feminino e, portanto, discrepante do esperado para um homem sertanejo;

2) Nos seus comportamentos corajosos, como o de matar a cobra, considerada uma atitude viril; e

3) Na exaltação de sua valentia, coragem e destemor, consideradas qualidades masculinas. Em outras palavras, a coragem que falta ao seu marido Lauro, aparece em demasia em Maria Déa, uma mulher destemida e valente,mulher macho, sim senhor!”

A personagem de Lampião, por sua vez, ao contrário de Lauro, vai se apresentar como o cabra macho, corajoso e viril, referência da masculinidade, ou seja, um tipo estereotipado do homem sertanejo. Durval Muniz, ao falar da representação do cangaceiro na literatura de cordel, defende que essa figura retrata:

modelos de ser homem no Nordeste. Homens caracterizados pela valentia, pela defesa, a todo o custo, da honra; o homem pobre rebelado, que vinga, simbolicamente, a todos os desvalidos das atitudes discricionárias os poderosos [...] A figura de Lampião, tantas vezes descrita pelo discurso do cordel, em seus atributos físicos, morais, seus feitos e peripécias, ficaria definitivamente gravada como uma das formas de aparecer o nordestino.

(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003, p. 222).

Assim como nas páginas dos cordéis, percebe-se na peçaLampião, a ligação entre a figura do cangaceiro a comportamentos violentos, rudes e autoritários, atitudes consideradas próprias do homem e símbolos da “macheza nordestina”.

No final do primeiro quadro, ocorre o encontro de Maria Déa e Lampião. Ela, antes insubmissa e valente em relação ao seu marido Lauro, muda a sua postura ao encontrar o cangaceiro, conforme pode ser observado nas falas descritas abaixo:

Lampião(continuando a falar como se estivessem a sós, ele e Maria Déa):

- Entre ali e mude de roupa.

Maria Déa:

- Vou primeiro arrumar as minhas coisas.

Lampião:

- Não senhora, não arrume nada. Mulher de Lampião só usa o que lhe Lampião lhe dá. Vá mudar o vestido, ande.

[Maria Déa entra em casa, com a roupa nos braços]. (QUEIROZ, 1954, p.

28).

A partir deste encontro, temos uma mudança drástica na personagem Maria Déa/Maria Bonita que passa a sofrer inúmeras violências de seu companheiro, como será mostrado no tópico seguinte.

Importa também perceber que, para se realizar como “mulher” e legitimar sua vocação para a aventura, Maria Déa não age por conta própria, antes, precisa ir atrás de um homem. É corajosa e independente, mas, embora o engajamento no cangaço represente ato de rebeldia e força para uma mulher da época, sua autonomia é limitada pela subordinação às ordens autoritárias de um marido

“capitão”.

1.7.2 MARIA BONITA POR RACHEL DE QUEIROZ: RETRATOS DA