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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

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Academic year: 2022

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CLARA OLIVEIRA DE MEDEIROS

A REPRESENTAÇÃO DA MULHER CANGACEIRA NOS TEXTOS ‘LAMPIÃO’, DE RACHEL DE QUEIROZ E

‘CANGACEIRAS’, DE CRISTINA SIQUEIRA

NATAL/RN 2021

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A REPRESENTAÇÃO DA MULHER CANGACEIRA NOS TEXTOS 'LAMPIÃO', DE RACHEL DE QUEIROZ E 'CANGACEIRAS', DE CRISTINA SIQUEIRA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós - Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para a obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas.

Orientador: Prof. Dr. André Carrico

NATAL, RN 2021

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Medeiros, Clara Oliveira de.

A representação da mulher cangaceira nos textos 'Lampião', de Rachel de Queiroz e 'Cangaceiras', de Cristina Siqueira / Clara Oliveira de Medeiros. - 2021.

141 f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Natal, 2021.

Orientador: Prof. Dr. André Carrico.

1. Teatro (Literatura) - Técnica. 2. Representação teatral.

3. Cangaceiras. 4. Mulheres no teatro. 5. Queiroz, Rachel de, 1910-2003 - Lampião. I. Carrico, André. II. Título.

RN/UF/BS-DEART CDU 792

Elaborado por Ively Barros Almeida - CRB-15/482

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A REPRESENTAÇÃO DA MULHER CANGACEIRA NOS TEXTOS 'LAMPIÃO', DE RACHEL DE QUEIROZ E 'CANGACEIRAS', DE CRISTINA SIQUEIRA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós - Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para a obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas.

Aprovado em __/______/__

___________________________________________________________________

Prof. Dr. André Carrico

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Orientador

___________________________________________________________________

Profa. Dra. Elen de Medeiros

Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG Membro

___________________________________________________________________

Profa. Dra.Melissa Lopes

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Membro

__________________________________________________________________

Profa. Dra. Ana Caldas Lewinsohn

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Suplente

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Aos meus pais, que me ajudaram materialmente e emocionalmente para o desenvolvimento desta pesquisa.

As minhas irmãs, que compõem a minha rede de apoio.

Adaécio Lopes, pelo amor e compreensão de sempre.

Ao meu orientador, André Carrico, por toda dedicação e comprometimento com essa pesquisa.

À banca, pelas contribuições e disponibilidade.

À minha segunda família, meus colegas da PROGRAD/UFRN, pelo suporte e incentivo, em especial ao Professor Josemar, Sandra, Andressa e Jussara.

À Maria Cristina Siqueira, pela disponibilidade e carinho.

Sem a sua colaboração, esse trabalho não seria possível.

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Sol na moleira Chuva danada Já tive medo Mãe, ai, que manhã Mata, ai, que mata Mato, oi, que mato Faca, facão Corta espinho Mão calejada Rompe caminho

Gonzaguinha

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escritos para o Teatro: Lampião (1953) de Rachel de Queiroz eCangaceiras (2018) de Maria Cristina Siqueira. Os dois trabalhos apresentam o cangaço como mote central de suas narrativas. Esse trabalho leva em consideração a diferença temporal entre as duas produções: São 65 anos que separam as duas escritas. Dessa forma, buscou-se evidenciar algumas características dos contextos sociais, políticos, acadêmicos e artísticos em que as obras foram elaboradas. Os textos são estudados sob três aspectos: análise dramatúrgica, referências norteadoras e modo de representação das personagens cangaceiras. Como referencial teórico são utilizados a(o)s seguintes autores: Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2003;

2017), Jean-Pierre Sarrazac (2002; 2012; 2018) e João Sanches (2016).

PALAVRAS-CHAVES: dramaturgia: representação da mulher: cangaceiras; teatro de mulheres; Rachel de Queiroz.

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escritos para el teatro: Lampião (1953) de Rachel de Queiroz y Cangaceiras (2018) de Maria Cristina Siqueira. Ambas obras presentan el cangaço como tema central de sus narrativas. Este trabajo tiene en cuenta la diferencia temporal entre las dos producciones: Son 65 años que separan los dos escritos. Así, buscamos resaltar algunas características de los contextos sociales, políticos, académicos y artísticos en los que se desarrollaron los trabajos. Los textos se estudian bajo tres vertientes:

análisis dramatúrgico, referencias orientadoras y modo de representación de los personajes de cangaceiras. Se utilizan como marco teórico los siguientes autores:

Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2003; 2017), Jean-Pierre Sarrazac (2002;

2012; 2018) y João Sanches (2016).

PALABRAS CLAVE: dramaturgia: representación de mujeres: cangaceiras; teatro de mujeres; Rachel de Queiroz.

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INTRODUÇÃO 10 1 DE MARIA DÉA A MARIA BONITA: UM ESTUDO DE PERSONAGEM NA PEÇA

LAMPIÃO DE RACHEL DE QUEIROZ 19

1.1 Maria Bonita: Imagem estereotipada do Nordeste_______________22 1.2 Sobre a Autora: Rachel de Queiroz e a sua Concepção de

Nordeste____________________________________________________24 1.3 A construção do texto Lampião: As referências 30 1.4 Sinopse do Texto__________________________________________33 1.5 As críticas publicadas sobre o texto Lampião__________________34 1.6 Rachel de Queiroz: Romancista em Lampião

(1953)_______________________________________________________36 1.7 De Maria Déa a Maria Bonita_________________________________39

1.7.1 MARIA DÉA POR RACHEL DE QUEIROZ: MULHER MACHO, SIM SENHOR!________________________________________________40

1.7.2 MARIA BONITA POR RACHEL DE QUEIROZ: RETRATOS DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER_________________________ _______43 1.8 Reflexões sobre a personagem Maria Déa/ Maria Bonita em Rachel de Queiroz __________________________________________________________52 2 CANGACEIRAS (2018): UM TEXTO DRAMATÚRGICO HÍBRIDO__________54

2.1 Algumas considerações sobre a autora: Maria Cristina Siqueira___61 2.2 Grupo Cínicas de Teatro Cia de Mulheres: Um teatro feito por mulheres em Pernambuco___________________________________________62 2.3 Sinopse do texto Cangaceiras (2018)_____________________ ____65 2.4 Cangaceiras (2018): um roteiro para encenação 66 2.5 A criação do texto Cangaceiras (2018): As referências 68

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sociedade sob a perspectiva de Maria Cristina Siqueira 79 3 ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE OS TEXTOS LAMPIÃO E CANGACEIRAS 91 3.1 Formas distintas de se escrever para o Teatro e representar a mulher

cangaceira 93

3.2 As referências historiográficas utilizadas pelas autoras e suas

implicações nas obras 101

3.3 A representação da mulher cangaceira nos textos Lampião (1953) e

Cangaceiras (2018) 104

3.4 Cangaceiras e a Violência contra a mulher 108

CONSIDERAÇÕES FINAIS 112

REFERÊNCIAS 117

ANEXO - Entrevista com Maria Cristina Siqueira 126

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INTRODUÇÃO

Por ser de lá Do sertão, lá do cerrado Lá do interior do mato Da caatinga do roçado Gilberto Gil e José Domingos A presente pesquisa se propõe a realizar um estudo acerca da representação da mulher cangaceira1 em textos escritos para o teatro de dois diferentes períodos. Para tanto, serão abordados dois textos: Lampião (1953)2 de Rachel de Queiroz eCangaceiras(2018) de Maria Cristina Siqueira.

É importante elucidar que a temática a respeito do feminino e do feminismo já faz parte do meu interesse de pesquisa desde a época da graduação em Licenciatura em Teatro. É difícil delinear em que momento surgiu essa vontade, mas identifico dois eventos que foram decisivos para consolidar o desejo de pesquisar a respeito desses assuntos. O primeiro foi meu ingresso no Curso de Teatro e o contato com novas vivências corporais nas aulas de Consciência Corporal,

21953 foi o ano em que Rachel de Queiroz escreveu o textoLampião.No entanto, para escrever essa dissertação, tive acesso à 2 ª edição da obra publicada em 1954. Dessa forma, quando me reportar às citações literais do texto, as referências serão de 1954.

1 O historiador Wescley Dutra (2011) traz, em sua dissertação de mestrado, que a etimologia da palavra cangaço está vinculada a imagem dos cangaceiros conduzindo armas de fogo cruzadas ou atravessadas sobre o peito e as costas de forma que fazia lembrar a canga, um conjunto de arreios pelos quais se amarra o boi à carroça. O fenômeno do cangaço ocorreu no interior do Nordeste e o termo servia para designar dois grupos distintos: “O Cangaço Dependente” e “O Cangaço Independente”. O primeiro grupo diz respeito aos homens armados a serviço de um chefe político em troca de proteção e benefícios. O outro grupo era caracterizado pela liberdade e itinerância, além da não submissão a nenhum coronel ou homem de poder. A maior parte dos grupos de cangaceiros independentes surgiram em meados do século XIX, tendo seu apogeu nas quatro primeiras décadas do século XX e foram desarticulados totalmente no ano de 1940.

As cangaceiras, por sua vez, foram mulheres que adentraram no cangaço na década de 1930. Maria Bonita (Maria Gomes de Oliveira) foi a primeira mulher a ingressar no movimento, por escolha própria, em meados de 1930, para torna-se companheira do cangaceiro Lampião (Virgulino Ferreira da Silva). A historiadora Ana Paula Freitas (2005) aponta três formas de entrada das mulheres no referido movimento: o ato voluntário, rapto e fuga. A partir deste momento mais de 30 (trinta) mulheres participaram da vida nos bandos.

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Pedagogia do Corpo, Treinamento Pré-expressivo, Jogo e Cena e Encenações3, entre outras disciplinas, que me possibilitaram novas formas de perceber o meu corpo, as minhas ideias e atitudes e, consequentemente, enxergar com outros olhos o mundo ao meu redor. O outro acontecimento foi a minha segunda gestação (2011-2012), período em que entrei em contato com leituras sobre o parto humanizado e empoderamento feminino, além de ter tido mais acesso a informações desses temas nas redes sociais (postagens de pessoas conhecidas, grupos com esse perfil, matérias jornalísticas etc).

No intuito de dar vazão a esse desejo de pesquisar sobre feminino e feminismo nas artes cênicas, elaborei meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) intitulado O som que se faz... A voz da mulher na cena do RN orientado pela professora Doutora Melissa Lopes em 2017 na Graduação em Teatro (Licenciatura Plena em Teatro/UFRN) sobre essas temáticas. Minha mobilização inicial era investigar o motivo de tantas artistas potiguares, das artes cênicas, abordarem temáticas femininas e feministas em suas obras de arte. Ao longo da escrita do trabalho, percebi que essa tendência se dava não somente no Estado do Rio Grande do Norte, mas também em âmbito nacional. E mais, que esses trabalhos que envolviam o feminismo nas artes da cena não se restringiam apenas à esfera artística, mas também apareciam em inúmeras produções acadêmicas de graduação e pós-graduação.

Diante de tantas referências que perpassam por essa temática, comecei a me questionar o que me motivava a pesquisar tais assuntos. E na tentativa de entender as minhas motivações e por meio de apontamentos da minha orientadora, comecei a investigar a respeito da história, costumes e cultura da região onde nasci:

O Seridó Potiguar4. Mais especificamente, estudei sobre a história da mulher

4O Seridó é uma região interestadual localizada no sertão dos estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba, na Região Nordeste do Brasil. Oriunda da antiga região da "Ribeira do Seridó. Segundo o folclorista Luís da Câmara Cascudo, o vocábulo Seridó é originário do linguajar dos índios tapuias transcrito como "ceri-toh" e que quer dizer "pouca folhagem e pouca sombra", características presentes na região (Tribuna do Norte, 2011). Outra possível origem para o termo Seridó são os termos "sarid" e "serid", oriundos do hebraico que significaria "sobrevivente" ou "o que escapou". Ou ainda "she'erit" no sentido de "refúgio Dele" ou "refúgio de Deus" (Tribuna do Norte, 2011). Tal significação se torna mais relevante ao sabermos que alguns historiadores defendem que a região foi

3As disciplinas citadas acima foram todas cursadas ao longo da graduação em Licenciatura de Teatro (UFRN). Todos esses componentes curriculares enfocaram a exploração do corpo como processo criativo do intérprete. A disciplina de Consciência Corporal e Pedagogia do corpo foram ministradas pela Professora doutora Lara Rodrigues; Jogo e Cena e Treinamento Pré Expressivo foram ofertadas pelo Professor doutor Robson Haderchpek; E as aulas relativas às Encenações III e IV foram dadas por Rodrigo Nascimento e Naira Ciotti, respectivamente.

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seridoense e potiguar. Nesse movimento, surgiu o primeiro capítulo do meu TCC, no qual fiz uma “costura” entre a história da mulher seridoense e potiguar e os temas apresentados nos espetáculos cênicos que abordavam questões femininas e feministas na cidade de Natal-RN. No segundo capítulo, lancei mão de um estudo de caso: me debrucei sobre o espetáculo O som que se faz debaixo d´água (2016) encenado pelo Grupo Cores de Teatro e dirigido por Lina Bel Sena, investigando, principalmente, as temáticas femininas e os apontamentos feministas dessa obra cênica.

Em 2018, cursei, durante todo o ano letivo, componentes curriculares como aluna especial no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande Do Norte (PPGARC/UFRN). Dessas disciplinas, duas foram significativas na minha busca enquanto futura pesquisadora de pós-graduação.

A primeira delas foi o componente curricularPoética e Teatro, ministrado por Melissa Lopes e Karyne Dias Coutinho. Em meio a vários textos lidos durante a disciplina, encontro a referência de Audre Lord, escritora norte-americana negra, lésbica e feminista. Estudamos o textoOs Usos do Erótico: O Erótico como Poderno qual Lord apontava o recurso erótico como uma potência para trazer à tona questões relacionadas ao feminismo. Ao ler o texto, estabeleci inúmeras relações entre as palavras da autora e os espetáculos que eu havia estudado ou citado em meu TCC. A autora me fez refletir acerca das representações de feminilidade difundidas em nossa sociedade. Depois de cursar a disciplina, passei a me interessar ainda mais por obras das artes cênicas que retratassem a condição feminina de forma crítica. Comecei a buscar na região Nordeste espetáculos de teatro que atendessem a esse critério5.

Outra contribuição bastante significativa para a proposição desta pesquisa foram as aulas de Performance e Cultura ministradas pela professora Luciana Lyra em que ela se propõe a discutir a escrita performativa e as possibilidades e peculiaridades de se realizar e escrever uma pesquisa na área de artes. Durante toda a disciplina, Luciana provocou os alunos no intuito de que eles se questionassem e percebessem quais eram as suas motivações mais genuínas para

5 Me refiro a trabalhos como Violetas (2016) da Cia de Teatro Violeta(RN/PB), solo da atriz Mayra Montenegro eTravessia(2017) do grupo Graxa (João Pessoa, PB), solo da atriz Kassandra Brandão colonizada por cristãos novos conhecidos como “marranos” – judeus portugueses e espanhóis que foram convertidos à força para a religião cristã no final do século XV, em Portugal.

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desenvolverem suas pesquisas. A metodologia utilizada no referido componente curricular fez com que os alunos visitassem suas histórias pessoais e encontrassem ali as relações com o seu interesse de pesquisa. Foi ali que eu percebi que o fato de tratar sobre a mulher sertaneja me motivava de uma forma especial. Principalmente, pesquisar a respeito de mulheres sertanejas que romperam com padrões impostos socialmente e tiveram comportamentos e atitudes considerados transgressores para a sua época. Tal encantamento já aparecia nos meus escritos do TCC, ao citar figuras femininas como Júlia Medeiros, Generina Vale e Mãe Quininha6, ou ainda na admiração que sinto por minha bisavó paterna Ana Salvina de Medeiros7.

Após vivenciar a disciplina de Luciana Lyra, o desejo de pesquisar sobre a representação da mulher nordestina ficou mais evidente. E é nesse movimento de busca que propus, em meu projeto de pesquisa para a seleção de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN, um estudo acerca da representação da mulher cangaceira no teatro através de dois estudos de caso: O texto Lampião (1953) de Rachel de Queiroz e o espetáculo Cangaceiras (2018) do Grupo Cínicas de Teatro Cia de Mulheres.

Ao ingressar como aluna regular do programa de Pós-Graduação de Artes Cênicas (PPGArC) da UFRN, algumas questões foram clarificadas, o que contribuiu de forma decisiva para o delineamento mais nítido da pesquisa. Um dos eventos significativos para a estruturação deste trabalho foi o meu encontro, ou melhor, reencontro com a dramaturgia.

7 Como resultado da disciplina de Luciana Lyra, escrevi uma carta para a minha bisavó paterna.

Nesse texto, faço uma analogia entre os desafios encarados por ela enquanto mulher no início do século XX e desafios vivenciados por mim no século XXI. Eu escolhi essa minha bisavó por ela ter sido uma mulher que apresentou ideias e comportamentos considerados “inadequados” para época em que viveu, mas que guardam relações com os ideais feministas, mesmo ela não tendo conhecimento disso.

6Mãe Quininha, Generina Vale e Júlia Medeiros foram mulheres seridoenses que nasceram no final do século XIX. Três mulheres, que apresentam, em suas trajetórias de vida, conquistas e lutas relacionadas ao empoderamento feminino. Mãe Quininha, ao se tornar viúva, virou chefe da casa, tornando-se responsável pelo sustento financeiro de sua família, situação bastante incomum naquela época. É lembrada também por seu trabalho como parteira, em que salvou a vida de muitas mulheres e recém-nascidos seridoenses; Generina Vale foi à primeira mulher do Rio Grande do Norte a ser presidente de um banco; E a professora Júlia Medeiros foi a primeira mulher caicoense a votar, além de pioneira no exercício de uma função pública desempenhada por uma figura feminina no referido município, sendo vereadora por duas vezes na câmara legislativa de Caicó (ARAÚJO apud MEDEIROS 2017).

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Ao entrar em contato com a peça proposta como objeto de estudo -Lampião (1953) de Rachel de Queiroz - e ao assistir às aulas de Dramaturgia II ministradas pelo professor André Carrico, no primeiro semestre de 2019, me recordei que o contato com textos dramáticos me fez criar gosto pela leitura. No meu ensino fundamental II, a cada bimestre letivo, recebíamos um livro paradidático para lermos.

Grande era a minha alegria quando era um texto dramático. Dessa forma, entre a quinta e a oitava série, liRomeu e JulietaeSonho de uma Noite de Verãode William Shakespeare, Cyrano de Bergerac de Edmond Rostand eO Juiz de Paz na Roçade Martins Penna.

Anos depois, estudando para a seleção de pós-graduação, ao ler trabalhos que têm como mote central a análise de dramaturgias, percebo a potência do estudo desses textos e as possibilidades de leitura de mundo e entendimento nos mais variados aspectos: psicológicos, sociológicos e históricos por eles despertada.

Ainda no primeiro ano de mestrado, participei do II Colóquio Internacional de Dramaturgia Letra e Ato, organizado pelo grupo de pesquisa homônimo e realizado na Universidade Estadual de Campinas em outubro de 2019, onde ampliei ainda mais as percepções acerca das possibilidades e potencialidades de se estudar os textos dramáticos.

De maneira geral, os estudiosos sobre o cangaço são homens e os seus estudos são mais focados nos cangaceiros. No entanto, é importante ressaltar que, nas duas últimas décadas, algumas estudiosas das ciências humanas se debruçaram sobre alguns aspectos da vida das cangaceiras.

A cientista social Ilsa Queiróz (2005), em sua dissertação Mulheres no Cangaço: Amantes e Guerreiras, defende que as cangaceiras foram mulheres transgressoras para o seu tempo e faz uma analogia entre o modo de ser dessas mulheres e o arquétipo da mulher selvagem, conceituado pela psicanalista junguiana Clarisse Estes.8

Ana Paula Freitas (2005), em seu trabalho de mestrado intitulado A Presença Feminina no Cangaço: práticas e representações (1930 - 1940), discute as práticas e representações femininas dentro do cangaço. Ela faz uma análise do aspecto físico e estético das cangaceiras (das suas vestimentas, uso de joias, e

8 Para a psicanalista Clarisse Estés (1999) o arquétipo da mulher selvagem diz respeito à natureza íntima da alma feminina. A relação natural com o arquétipo da mulher selvagem possibilita que as mulheres entrem em contato com a sua psique de forma saudável.

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cuidados com o embelezamento do corpo); busca identificar e compreender os papéis atribuídos a essas mulheres nos bandos e a condição específica de ser mulher num espaço permeado pela violência. Para tanto, ela se utiliza de obras de memorialistas sobre o cangaço, depoimentos orais, entrevistas, documentários, fotografias, registros da imprensa e literatura de cordel.

A historiadora Nadja Claudino (2017) foca o seu trabalho dissertativo em Maria Bonita. Na sua pesquisa As escritas de uma vida: discursos sobre a cangaceira Maria Bonita (1930 -1938)é realizada uma análise acerca dos discursos sobre Maria Gomes de Oliveira na literatura de cordel, no meio jornalístico e nos registros dos memorialistas. Ela examina a cangaceira nos aspectos relacionados à sexualidade, criminalidade, beleza e valentia, características ressaltadas nas fontes estudadas pela pesquisadora. Para ela, os discursos sobre Maria Bonita corroboram com os lugares de subordinação para as mulheres, mesmo quando se refere à companheira de Lampião como forte e guerreira.

Na Bahia, existe um grupo de pesquisadoras que estudam a representatividade da mulher cangaceira no meio cinematográfico. Dentre elas, se destacam a professora universitária Caroline Lima9 e a doutoranda Dalila Carla.10 Nesses estudos, é mostrado que, apesar de abundantes os filmes sobre cangaço, principalmente no circuito Nordestern11, a representação e representatividade das mulheres cangaceiras é pouco expressiva nessa linguagem artística. Até mesmo em obras que deveriam se debruçar sobre a história dessas mulheres, como é o caso do documentário Feminino Cangaço(2013),dirigido porLucas Viana e Manoel Neto, elas perdem espaço para os cangaceiros. Como bem aponta Caroline Lima:

No Feminino Cangaço, o documentário inicia com algumas falas de pesquisadores(as) e, então, Dadá surge contando a violência sofrida por

11Os filmes de faroeste norte-americanos com os seus cowboys serviram de referência para os filmes brasileiros que retratavam o cangaço e os cangaceiros como temas centrais de suas narrativas. O Western se tornou oNordesternno cinema brasileiro (LEITE, 2005 apud SANTOS, 2012).

10 Dalila Carla dos Santos é docente auxiliar no Curso de Jornalismo da Universidade do Estado da Bahia. Graduada em Comunicação Social - Jornalismo em Multimeios pela Universidade do Estado da Bahia (2009). Mestre e doutora em estudos interdisciplinares sobre mulheres, gênero e feminismo.

9 Carolina Lima é graduada em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Jorge Amado (2007), Mestre em história regional e local pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atualmente, é professora assistente da UNEB. Pesquisa sobre mulheres no cangaço, representações das cangaceiras no cinema nacional, história das mulheres e teoria feminista do cinema. (LIMA, 2019).

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sua família após seu rapto; as volantes entendiam que seus familiares eram

“coiteiros” do bando de cangaceiros, a entrevistada faz uma denúncia à violência praticada pelas volantes. Na cena seguinte, surge Frederico Pernambucano Mello fazendo uma análise do cangaço, dos cangaceiros.

Sobre elas ou sobre a violência a que elas estavam expostas, nenhuma linha. Houve a opção inicialmente de se contar a história do cangaço. Sobre elas, ainda tardaria a ser contada. Foi uma opção consciente ou inconsciente? (LIMA, 2016, p. 16).

Caroline Lima (2016) ainda afirma que das 49 obras fílmicas levantadas durante projeto de iniciação científica na Universidade do Estado da Bahia, entre os anos de 2012 e 2015, identificou-se seis sobre as mulheres cangaceiras. Em dados percentuais, isso significa que apenas 12% desses filmes foram dedicados à história das mulheres que atuaram no movimento. Considerando esses números, torna-se evidente a marginalização do protagonismo das mulheres no cangaço no cinema nacional.

O Objetivo Principal desta dissertação é, portanto, pesquisar a respeito da representação das mulheres cangaceiras em dois textos escritos para o teatro:

Lampião (1953) de Rachel de Queiroz e Cangaceiras (2018) de Maria Cristina Siqueira.

Em relação ao objetivos específicos, destacamos: 1) Estudar o texto dramático Lampião de Rachel de Queiroz; 2) Analisar o texto Cangaceirasde Maria Cristina Siqueira; 3) Realizar um estudo comparativo entre os textosCangaceiras e o texto dramático racheliano Lampião; 4) Investigar a forma como cada uma das obras foi escrita, isto é, omodus operandidas propositoras dos textos e como essas formas de criação influenciaram na configuração dos escritos e 5) Investigar as referências bibliográficas que nortearam a escrita de cada uma das obras.

A escolha de textos produzidos por mulheres é importante e pertinente, pois privilegia o protagonismo das mulheres na escrita e na criação artística. O historiador Losandro Tadeschi (2016) defende que a escrita das mulheres foi, por muito tempo, negligenciada. Para ele, as mulheres participaram da produção histórica e literária pela “porta dos fundos” e tal produção não foi devidamente referenciada em virtude de um modelo de conhecimento histórico alicerçado nos tradicionais paradigmas culturais, que privilegia modelos hegemônicos masculinos.

Em suas próprias palavras, o autor afirma que:

Durante muito tempo, a escrita e o saber estiveram – e ainda, talvez, continuem – relacionados ao poder e foram usados como formas de dominação e de exclusão imposto para que se mantivesse a ordem social

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em uma sociedade de base falocêntrica, patriarcal, machista e sexista [...]

Durante muito tempo, foram negadas às mulheres a autonomia e a subjetividade necessárias à criação, consequência da manipulação, do controle da palavra e da escrita [...] Isso trouxe como consequência a legitimação de uma minoria social, que assegurou, determinou e confinou as ferramentas do pensar, vedando às mulheres o livre exercício da autonomia do narrar e do escrever. O patriarcado teve, como uma de suas funções na história, a construção e a reprodução de uma memória implacável, imóvel, endurecida e controladora do poder epistêmico. (TADESCHI, 2016, p.

155-156).

Ao contrário do que foi mostrado por Losandro Tadeschi no trecho acima, a presente pesquisa privilegia o protagonismo das mulheres na escrita e na criação artística, à medida que escolhe, como objetos de estudos, duas obras artísticas criadas por mulheres. Além disso, a pesquisa evidenciará narrativas relacionadas à participação das mulheres no cangaço, personagens negligenciadas na história brasileira.

Outro ponto importante é que, como vimos na parte destinada à revisão de literatura, há, em outros campos de conhecimento das ciências humanas, como na sociologia e história, estudos sobre a representação das cangaceiras. No entanto, até onde nossa pesquisa bibliográfica alcançou, não foi encontrado nenhum trabalho acadêmico em língua portuguesa que estudasse a representação da mulher cangaceira no teatro e nas artes cênicas. Dessa forma, a presente proposta e a tese de doutorado de Maria Cristina Siqueira parecem se apresentar como pioneiras nessa área.

E, por fim, esse trabalho se propõe a contribuir de forma significativa para os artistas e pesquisadores da área de artes que se interessem por poéticas femininas, que investiguem a respeito da representação de mulheres no teatro, nas artes cênicas e até mesmo nas artes de uma forma geral. Fora do âmbito das artes, a proposta de pesquisa, apresentada nesse trabalho, contribuirá para os estudiosos que tratam a respeito da história das mulheres no cangaço e também, de uma maneira mais ampla, poderá ser estudada por aqueles que se debruçam sobre a temática da invisibilidade de mulheres na história.

O presente trabalho se constitui em uma pesquisa teórica e lançará mão de dois estudos de caso para investigar a respeito da representação da mulher cangaceira em textos escritos para o teatro. Neste trabalho, foram escolhidos textos que apresentam diferenças significativas entre eles, que serão elencadas ao longo dos capítulos.

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No primeiro e segundo capítulo serão realizadas análises sobre os textos Lampião (1953) e Cangaceiras (2018), respectivamente. Ambos os capítulos apresentam estruturas semelhantes. Primeiramente, serão retratadas as autoras dos escritos - Rachel de Queiroz, no Capítulo 1, e Maria Cristina Siqueira, no Capítulo 2.

Posteriormente, serão elencadas as referências bibliográficas norteadoras dos textos e algumas considerações sobre determinados aspectos dramatúrgicos das obras. E, por fim, serão expostos os apontamentos sobre como o feminino e, mais especificamente, as cangaceiras, são mostradas em cada uma das obras.

O terceiro capítulo é uma análise comparativa entre as duas obras no que se refere aos aspectos listados acima e é, portanto, fortemente alicerçado nas análises desenvolvidas nos dois primeiros capítulos. Dessa forma, as considerações sobre as autoras e sobre os aspectos dramatúrgicos das obras proporcionaram o entendimento de como as atividades profissionais e artísticas de Rachel de Queiroz e Maria Cristina Siqueira influenciaram de maneira contundente a forma como se apresenta cada um dos textos estudados. Será mostrado também que as referências historiográficas utilizadas por cada uma delas na construção de seus textos inspiraram significativamente sua forma de representação da mulher cangaceira. Outro ponto ainda elucidado neste capítulo é que o contexto histórico, social e cultural também é um elemento preponderante para a criação das obras artísticas. O texto Cangaceiras, por exemplo, faz parte parte de uma onda feminista que influencia as produções das artes cênicas nos últimos anos.

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1 DE MARIA DÉA A MARIA BONITA: UM ESTUDO DE PERSONAGEM NA PEÇA LAMPIÃO DE RACHEL DE QUEIROZ.

Maria, Maria, é um dom, uma certa magia Uma força que nos alerta Uma mulher que merece viver e amar Como outra qualquer do planeta Maria, Maria, é o som, é a cor, é o suor É a dose mais forte e lenta De uma gente que rí quando deve chorar E não vive, apenas aguenta Mas é preciso ter força, é preciso ter raça É preciso ter gana sempre Quem traz no corpo a marca, Maria, Maria Mistura a dor e a alegria Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça É preciso ter sonho sempre Quem traz na pele essa marca possui A estranha mania de ter fé na vida

Milton Nascimento e Fernando Branti A canção Maria Maria, eternizada na voz de Milton Nascimento, é muitas vezes utilizada para se referir à força feminina. Nesse caso, utilizamos a letra da canção popular como epígrafe para apresentar a personagem que será o principal foco deste capítulo, que é literalmente uma Maria. A personagem feminina da peça Lampião (1953) de Rachel de Queiroz é inspirada na figura histórica Maria Gomes de Oliveira, que ficou conhecida como a cangaceira Maria Bonita, companheira do famoso Lampião. A personagem ficcional de Raquel de Queiroz por merecer “amar como outra (mulher) qualquer do planeta” abandona o marido, por quem não tinha respeito, nem admiração, e segue numa vida de incertezas ao lado de um homem que admirava: o cangaceiro Lampião. No entanto, ao entrar no cangaço e se tornar Maria Bonita, precisa de força, gana e resiliência para enfrentar as adversidades da

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vida na caatinga. Pior do que a vida no ecossistema desafiador do semiárido nordestino, é seu companheiro quem manda e desmanda em tudo e em todos e, frequentemente, lhe maltrata com palavras e atitudes agressivas e machistas. Mas, mesmo assim, a personagem resiste e apresenta uma força e coragem contra as adversidades.

Este capítulo apresenta um estudo do texto dramático Lampião (1953) de Rachel de Queiroz. Inicialmente, antes de adentrarmos na análise do texto propriamente dito, serão apresentados dados a respeito da construção do mito de Maria Bonita, nome pelo qual ficou conhecida a personagem histórica de Maria Gomes de Oliveira e que também representa uma forma estereotipada de referência à imagem da mulher nordestina.

Para o entendimento da obra racheliana é importante, primeiramente, contextualizar o leitor em relação ao universo que envolve a construção desse escrito do início da década de 1950. O filósofo argentino Jorge Dubatti defende que as poéticas teatrais devem ser entendidas em sua territorialidade. De acordo com o autor:

Entende-se por territorialidade a consideração do teatro em contextos geográfico-histórico-culturais de relação e diferença quando contrastados a outros contextos [...] A territorialidade do comparatismo vincula-se ao pensamento da “geografia humana”, iniciado por Paul Vidal de La Blache. A territorialidade é construída através das práticas culturais do homem, sendo uma delas o teatro. O fato de considerar o teatro em contextos culturais não o exclui de ser parte deles: o teatro mesmo é gerador e construtor das variáveis desses contextos. (DUBATTI, 2008, p. 5-6, tradução nossa).1

Isto é, a identidade da obra vai estabelecer uma relação direta com o lugar em que ela é produzida. Nesse sentido, inicialmente, será apresentada a autora da peça em questão – Rachel de Queiroz – no intuito de se compreender qual é esse lugar (geográfico e literário) a partir do qual a autora elabora suas obras e que marca significativamente sua escrita.

Outro ponto que será destacado neste estudo diz respeito às referências bibliográficas utilizadas por Rachel de Queiroz na construção desse texto.

Entende-se que a pesquisa historiográfica empreendida por Rachel de Queiroz vai

1“se entiende por territorialidad la consideración del teatro en contextos geográfico-histórico-culturales de relación y diferencia cuando se los contrasta con otros contextos [...]. La territorialidad del comparatismo se vincula con el pensamiento de la “geografía humana”, iniciado por Paul Vidal de La Blache. La territorialidad se construye a través de las prácticas culturales del hombre, una de las cuales es el mismo teatro. El hecho de considerar al teatro en contextos culturales no lo excluye de ser parte de ellos: el teatro mismo e generador y constructor de las variables de esos contextos.”

(DUBATTI, 2008, p. 5-6).

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influenciar significativamente na escrita do texto e na construção da personagem Maria Bonita.

Posteriormente, serão realizadas algumas considerações sobre o texto dramático em si. Nessa parte, serão citadas as críticas encontradas sobre o texto e as marcas da romancista Rachel de Queiroz na dramaturgia deLampião. E, por fim, será realizada uma análise de como a personagem Maria Déa/Maria Bonita foi representada na obraLampiãode Rachel de Queiroz.

Em relação a dramaturgia racheliana, objeto de estudo deste capítulo, foi realizada uma pesquisa bibliográfica no intuito de se buscar trabalhos acadêmicos que tratam a respeito desse texto literário. Nesse sentido, foram encontradas algumas produções acadêmicas que citam essa publicação dentro do contexto da obra de Raquel de Queiroz, mas não aprofundam a análise do texto, como as teses de Angela Tamaru (2005), Laile Abreu (2016), as dissertações de Natália Guerellus (2011) e Taffarel Guedes (2017) .

É importante também destacar o artigo de Maria Edileuza Costa e Irio José do Nascimento Germano Júnior (2017) intitulado A Representação Literária de Lampião em Rachel de Queiroz : Nuances de Autoritarismo. Os autores centram a análise da obra na personagem de Lampião.

Merece destaque também a dissertação de Olinda Assmar, defendida em 1979 na Universidade Federal do Rio de Janeiro intitulada Uma Leitura de O Lampião de Rachel de Queiroz. Como o próprio título sugere, a pesquisadora em letras tem como objeto de estudo a peça de Rachel de Queiroz. Segunda a autora:

A dissertação procura mostrar o valor da peça como linguagem que instaura o processo dialético do drama. [...] Nessa busca, recorre ao nome e ao ser dos personagens, capazes de elucidar o processo mítico, e a outros dados que permitem mostrar as relações que subjazem ao mito. Para isso, a análise segue os ensinamentos de Greimas que propõe analisar a narrativa sintagmática e paradigmaticamente, juntando assim a perspectiva de análise de Propp e de Levi Strauss. (ASSMAR, 2006, p. 136).

Em relação a análise da personagem Maria Bonita no texto Lampião (1953), encontramos a comunicação oral apresentada por Michele Soares Santos e Caroline de Araújo Lima (2013) no XXVII Simpósio Nacional de História. O referido trabalho se propõe a estabelecer relações entre o texto de Rachel de Queiroz e o documentário de José Umberto A Musa do Cangaço (1982). Percebe-se, no texto resultante da comunicação, que a análise das historiadoras se aproxima mais da linguagem cinematográfica e nomeia o texto dramático como “roteiro”,

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esquivando-se de qualquer exame do ponto de vista dramatúrgico. Girlane Silva (2020) também faz considerações sobre a personagem feminina da peça em sua tese de doutorado.

1.1 Maria Bonita: Imagem estereotipada do Nordeste

[…] enquanto a mulher de Lampião viveu, a personagem nunca existiu. A cangaceira que teve a cabeça decepada em 28 de julho de 1938 era simplesmente Maria Déa: uma jovem de 28 anos que morreu sem jamais saber que, um dia, seria conhecida como Maria Bonita”. (NEGREIROS, 2018, p. 17).

A historiadora Nadja Claudino (2017) argumenta que Maria Gomes de Oliveira, a personagem histórica que deu origem ao mito de Maria Bonita, foi uma mulher de muitos epítetos e histórias. Inicialmente, era conhecida como Maria de Dona Déa, em referência à sua mãe Maria Joaquina Conceição Oliveira, (conhecida como dona Déa). Quando casou com o seu primo legítimo Zé de Neném, passou a ser chamada de Maria Neném. Ao adentrar no cangaço, Maria Déa passa ser chamada de Santinha por seu companheiro e tratada como Maria do Capitão pelas outras pessoas.

Adriana Negreiros (2018) defende em seu livro que, enquanto viva, Maria Gomes de Oliveira não era conhecida como Maria Bonita. O primeiro registro do epíteto Maria Bonita foi no telegrama do tenente João Bezerra endereçado ao coronel Teodureto Camargo do Nascimento, informando a morte de nove cangaceiros e duas cangaceiras após o Massacre de Angicos2, dentre eles, Lampião e Maria Bonita.

Logo depois de apresentar o registro mencionado no parágrafo anterior, Negreiros (2018) trata a respeito das versões para a origem do apelido Maria Bonita.

Ela apresenta as duas explicações históricas mais aceitas sobre o fato.

A primeira delas é defendida pelo historiador Frederico Pernambucano de Melo. Segundo ele, o epíteto surgiu antes do Massacre de Angicos nas redações

2 A Grota do Angico fica localizada no município de Poço Redondo no sertão de Sergipe (CHAVES, 2020). O Massacre de Angicos diz respeito ao encontro entre o bando de Lampião e Militares do Governo Getúlio Vargas, ocorrido na madrugada do dia 28 de julho de 1938, que resultou na morte de Lampião, Maria Déa e mais nove integrantes do bando que tiveram as suas cabeças decepadas.

(GIRON, 2019).

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dos jornais do Rio de Janeiro. Os jornalistas cariocas teriam estabelecido uma associação entre a companheira de Lampião e a personagem de Afrânio Peixoto3, pois ambas eram belas e naturais do sertão da Bahia. Dessa forma, os jornalistas já se referiam informalmente à cangaceira como Maria Bonita.

Já o estudioso do cangaço Luiz Rubens Bonfim apresenta outra versão sobre a origem da alcunha Maria Bonita. Ele afirma que o nome surgiu no dia 28 de julho de 1938, no mesmo dia da morte de Maria. Os soldados e autoridades presentes em Piranhas4, impressionados com a beleza da bandoleira morta, começaram a chamá-la pelo nome com que seria eternizada.

Maria Bonita entrou para a história de maneira dúbia, como é exposto por Adriana Negreiros:

Por um lado, como se tivesse permanecido à sombra de seu Marido, despertou pouco interesse por parte dos contadores da história do cangaço […] Os jornais de 1930, apressados em narrar as crueldades e ações espetaculares do Jaguar do Nordeste, não consideram a existência de sua esposa digna de pauta. A memória da rainha do cangaço na imprensa da época é imprecisa, precária e fantasiosa. […] Esse obscurecimento não impediu, que, por outro lado, Maria Bonita fosse ganhando ares de mito depois de sua morte. As lacunas de informação sobre a vida não apenas dela, mas também outras cerca de quarenta jovens do bando (…) contribui para que se criasse a fantasia de uma impetuosa guerreira, hábil amazona do sertão, uma joana d´Arc da Caatinga […] Maria Bonita virou nome de grife de moda, música, centenas de pousadas e restaurantes espalhados pelo Nordeste, salões de beleza, academias de ginástica, cerveja, pizza, assentamento rural, bandas de forró e coletivos feministas. Transformou-se numa marca poderosa. (NEGREIROS, 2018, p. 13-16).

Após a leitura do trabalho de Adriana Negreiros, torna-se claro que a famosa Maria Bonita tão evidenciada na cultura nordestina (literatura de cordel, quadrilhas juninas, peças de teatro, e representações imagéticas dos mais variados tipos) é uma personagem ficcional, inventada, e que não necessariamente retrata a mulher que viveu entre 1911 e 1938. O nome Maria Bonita evoca imagens características e bem definidas pela cultura nordestina. Desde a caracterização dos trajes de cangaceira com o seu bornal, lenços, alpercatas e tranças até a sua imagem de mulher-macho ou amante devotada de Lampião. Essa forma cristalizada de se apresentar Maria Bonita vem a contribuir para uma forma estereotipada de se pensar o Nordeste.

4 Município localizado no estado de Alagoas para onde foram levados os corpos das cangaceiras e cangaceiros mortos no Massacre de Angicos. As cabeças degoladas foram expostas na escadaria da Prefeitura da cidade.(REVISTA AVENTURAS NA HISTÓRIA, 2019).

3 Afrânio Peixoto foi um médico legista, político, professor, crítico, ensaísta, romancista e historiador literário. Em 1914 escreveu o livro Maria Bonita, primeiro romance regionalista do autor. (ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, 2019).

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O historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2017, p. 30-31) na parte introdutória de sua obra A Invenção do Nordeste e Outras Artes trata a respeito da estratégia de estereotipização do Nordeste. Segundo o autor:

O discurso da esteriotipia é um discurso assertivo, repetitivo, é uma fala arrogante, uma linguagem que leva à estabilidade acrítica, é o fruto de uma voz segura e autossuficiente que se arroga o direito de dizer o que é o outro em poucas palavras. o estereótipo nasce de uma caracterização grosseira e indiscriminada do grupo estranho, em que as multiplicidades e diferenças individuais são apagadas, em nome de semelhanças superficiais do grupo [...] Tentar superar esse discurso, estes estereótipos imagéticos e discursivos acerca do Nordeste, passa pela procura das relações de poder e de saber que produziram essas imagens e estes enunciados clichês que inventaram este Nordeste e estes nordestinos.

As representações de Maria Bonita, muitas vezes, se encontram nesse modelo da estereotipia. Maria Bonita, para além da personagem histórica, se tornou um mito e um estereótipo, uma forma de se pensar e ver o Nordeste de modo estanque.Desse modo, frequentemente, o estereótipo, muitas vezes, é utilizado para representar tanto o Nordeste quanto o nordestino. A figura estereotipada de Maria Bonita, assim como de outras cangaceiras e cangaceiros, também contribui para essa imagem inventada do Nordeste.

Durval Albuquerque Júnior (2017) trata em seu trabalho sobre uma certa dizibilidade e visibilidade acerca do Nordeste. Isto é, a região, tal qual é concebida, seria fruto de discursos e imagens construídos das mais diversas práticas, desde as produções acadêmicas até as linguagens artísticas. O Nordeste, para além de seus limites geográficos, fatos históricos e contexto sociológico, seria uma elaboração imagética e discursiva de ordem cultural representada nas mais diversas artes:

literatura, poesia, artes plásticas e artes cênicas.

1.2 Sobre a Autora: Rachel de Queiroz e a sua Concepção de Nordeste Rachel de Queiroz foi a primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras em 1977. De acordo com Laile Abreu (2016), que em sua tese de doutorado se dedicou a estudar a representação feminina na obra ficcional de

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Rachel, a autora publicou sete romances5, duas peças de teatro6, três obras infanto-juvenis7e mais de três mil crônicas.

Raquel de Queiroz nasceu em 17 de novembro de 1910 em Fortaleza, Ceará, numa família de intelectuais. Foi a primogênita do casal Clotilde Franklin e Daniel de Queiroz (GUERELLUS, 2011).

Dona Clotilde era uma leitora voraz, sintonizada com as tendências estrangeiras e também com a literatura brasileira. Era grande admiradora, por exemplo, de Machado de Assis. Além do encantamento pelo escritor carioca, Rachel herdou de sua mãe uma biblioteca com milhares de volumes (GUERELLUS, 2011).

Daniel de Queiroz seguiu, como era esperado para os jovens da elite naquela época, a carreira jurídica. Em virtude de sua profissão, morou, juntamente com a família, em vários estados do país como o Ceará, Rio de Janeiro e Pará.

Entretanto, abandonou essa carreira e se comprometeu com a docência. Por fim, dedicou-se à sua paixão: a terra. Durante parte significativa de sua vida, cuidou de sua propriedade no Ceará. (GUERELLUS, 2011).

Pelo lado materno, Rachel era da família Alencar, conhecida na região por sua tradição política, revolucionária e libertária. A escritora era parente de figuras ilustres como Bárbara de Alencar (1760 - 1832)8 e o escritor José de Alencar (1829-1883) 9. Pela parte paterna, a escritora descendia dos Queiroz, antiga família

9 José de Alencar é considerado uma das maiores referências literárias do romantismo brasileiro (GUERELLUS, 2011). É autor de romances como Cinco Minutos (1856), A Viuvinha (1857), O Guarani (1857), Lucíola (1862), Diva (1864), Iracema (1865), O Gaúcho (1870), O Tronco do Ipê (1871), Sonhos D'ouro (1872), Alfarrábios (1873), Ubirajara (1874), O Sertanejo (1875), Senhora (1875),Encarnação (1877). Escreveu também algumas peças de teatro, tais comoVerso e Reverso (1857), O Demônio Familiar (1857), As Asas de um Anjo (1858), Mãe (1860), O Jesuíta (1875).

(DIANA, 2021).

8Bárbara de Alencar tornou-se famosa por sua participação na Revolução Pernambucana de 1817 e na Confederação do Equador de 1824. Sofreu perseguições e prisões por sua proximidade com esses movimentos.(GUERELLUS, 2011).

7O Menino Mágico(1971), vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura Infantil da Câmara Brasileira do Livro,Cafute & Pena-de-Prata(1986) eAndira(1992).

6 Rachel de Queiroz escreveu, além da peça Lampião (1953), A beata Maria do Egito (1957).

(TAMARU, 2004; ABREU, 2016).

5Os romances de Rachel de Queiroz são:O quinze(1930),João Miguel(1932),Caminho das Pedras (1937), As três marias (1939), Galo de Ouro (1950), Dora, Doralina (1975) e Memorial de Maria Moura (1992). (TAMARU, 2004).

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do Sertão que se estabeleceu nos estados do Pernambuco, Bahia, Ceará e no Rio Grande do Norte. (GUERELLUS, 2011).

Rachel de Queiroz presenciou, nas primeiras décadas do século XX, os processos de modernização e urbanização no Brasil. A imprensa daquela época focava frequentemente nas relações entre os processos políticos, econômicos e sociais da República e nas mudanças causadas por eles no comportamento das mulheres. A emancipação feminina estava relacionada à liberdade individual das mulheres, que poderia ser propiciada, dentre outras coisas, por meio da aquisição dos direitos civis e eleitorais. (GUERELLUS, 2011). No entanto, mesmo com esta nova perspectiva de enxergar o papel feminino na sociedade, ainda havia um forte discurso, principalmente por parte dos homens, de que as mulheres deveriam ficar circunscritas à esfera doméstica, como esposa e mãe. (SILVA, 2001 apud GUERELLUS, 2011).

Para Maria de Lourdes Barbosa (1999 apud GUERELLUS, 2011) as protagonistas de Rachel de Queiroz, em sua maioria, rompem com a instituição tradicional do casamento e se distanciam da esfera privada do lar.

Mesmo pressionadas, as protagonistas tentam encontrar maneiras alternativas de realização, além das permitidas. Maneiras que vão desde a profissionalização, até a busca por aventuras, viagens a outras paisagens, o deslocamento físico e passional. É uma negação que vai desde a conscientização e a não aceitação dos limites impostos, até a ruptura total:

a transgressão. (BARBOSA, 1999, p.33-34 apud GUERELLUS, 2011, p. 23).

As personagens femininas dos romances de Rachel de Queiroz já foram estudadas por alguns pesquisadores na área de letras e é uma unanimidade entre esses estudiosos que elas rompem com os padrões da cultura ocidental e os preceitos da sociedade patriarcal numa época em que as mulheres eram condicionadas à submissão masculina. (ABREU, 2016; OLIVEIRA; ANDRADE, 2017; OLIVEIRA; FREIRE; CHAVES, 2012; TAMARU, 2004; TORRES, 2014).

Tanto nos romances quanto nas dramaturgias, encontramos na escrita de Rachel os temas que povoam o imaginário do sertanejo de sua época: a seca, o cangaço e o fanatismo religioso. De acordo com Ângela Tamaru (2004)10, a escritora vai utilizar as personagens femininas para adentrar no universo nordestino. As

10 Angela Tamaru em sua tese de doutorado intituladaA Construção Literária da Mulher Nordestina em Rachel de Queiroz, a pesquisadora estudou as personagens Maria Moura e Beata Maria do Egito, protagonistas de romances de Rachel de Queiroz, baseando-se em diversas matrizes e também se reportando a outras personagens de Rachel de Queiroz.

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personagens femininas são tomadas para acionar a ficção que versa sobre temáticas mencionadas anteriormente. Esses temas, de acordo com o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2017), são elementos fundantes da ideia de Nordeste veiculada nacionalmente.

Durval Albuquerque (2017) aponta que Rachel de Queiroz é um dos expoentes literários do regionalismo de 1930. O Romance de 30 é a vertente literária desse movimento. Ele tem como representantes, além de Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e José Américo de Almeida. Esses autores trazem em suas páginas temas como a decadência da sociedade açucareira; o beatismo contraposto ao cangaço; o coronelismo e o seu complemento – o jagunço, a seca e a epopeia da retirada. O Romance de 1930 vem contribuir para a construção imagética e discursiva vinculada à região nordestina. Em suas próprias palavras, o estudioso, ao se referir ao supracitado movimento literário, entende que:

Vamos tratar aqui de uma maquinaria literária que aparece fundada na representação de um referente tido como fixo: a realidade da região Nordeste. Este é tomado como objeto preexistente, como uma especialidade natural, sobre a qual se constitui essa camada de discurso literário. Na verdade, essa literatura, longe de representar apenas esse objeto, participa de sua invenção, de sua instituição. (ALBUQUERQUE, 2017, p. 123).

Para o historiador, os romancistas de 1930 inventaram um Nordeste tradicional, baseado em escolhas de lembranças, experiências, imagens, enunciados e fatos considerados específicos e próprios dessa região, reforçando a imagem de um tipo regional.

Eles fazem na verdade uma seleção de imagens e enunciados, de formas e materiais de expressão que se coadunam com uma dada visibilidade do Nordeste, as do Nordeste como um lugar da conservação de uma identidade ameaçada de se perder. O valor, a eficácia, a força e veracidade do que dizem sobre a região, baseiam-se muito pouco no próprio Nordeste e não podem instrumentalmente depender dele. O que importa é a técnica de representação que utilizam [...]. Para produzir seu efeito de instituição, esse discurso literário lança mão de tradições formais, convenções imagético- discursiva e não de um amorfo Nordeste. […] O Romance de 30 opera pela elaboração de personagens típicos, do tipo que falem do que consideram experiências sociais fundamentais, que constituíam identidades típicas do regional. São personagens exemplares que devem promover a própria identificação do leitor com os seus comportamentos.

(ALBUQUERQUE JUNIOR, 1994, p. 170).

Após realizar uma análise mais generalista sobre o Romance de 1930, Durval Albuquerque Júnior ressalta que esse movimento literário não pode ser

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entendido como um bloco monolítico, pois há diferenças significativas entre os autores na forma como retratam o Nordeste. Ele cita as figuras de José Lins, José Américo e Rachel de Queiroz como autores que instituíram a imagem do Nordeste como um espaço de saudade e de tradição e dedica algumas páginas de seu trabalho para tratar da obra desses escritores dentro dessa perspectiva. Os romancistas de 30 também se diferenciam pelo espaço que elegem como referente para representar a região. Enquanto José Lins entende o Nordeste tradicional como o da cana-de-açúcar, da sociedade patriarcal e escravista, Rachel de Queiroz e José Américo elegem o sertão como lugar tradicional por excelência, isto é, como espaço de preservação dos costumes do passado, distante das modernidades e comodidades da vida urbana.

O historiador, ao se referir à literatura de Rachel de Queiroz, defende que a escritora apresenta uma concepção idealizada do sertanejo. Ela evidencia a ação e valentia desse povo, ao mesmo tempo em que trata a respeito da reação ao urbano e das mudanças tecnológicas, queixando-se das alterações sociais trazidas pelo capitalismo e sua ética mercantil. A sua escrita reflete a utopia de uma nova sociedade, no entanto, paradoxalmente, faz menção ao resgate da pureza e dos vínculos comunitários e paternalistas da sociedade tradicional.

O seu socialismo se aproxima mais de uma visão paternalista de fundo cristão e exprime a revolta de uma filha de famílias tradicionais da região que vê a vida dos seus degradada pelo avanço das relações mercantis e pelo predomínio das cidades. Seus personagens são subversivos a medida que contestam a ordem capitalista, mas sua visão de sociedade futura mistura-se com uma enorme saudade de um sertão onde existia liberdade, pureza, sinceridade e autenticidade. Seus personagens se debatem mais contra o social do que pela mudança social. São seres sempre em busca dessa verdade irredutível do homem contra as mentiras e o artifício do mundo moderno. (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2017, p. 161).

Durval Albuquerque Júnior sublinha que o Romance de 1930 apresenta uma associação com os estudos sociológicos de Gilberto Freyre. Ângela Tamaru (2004) por sua vez, evidencia, em sua tese de doutorado, a relação existente entre Rachel de Queiroz e esse intelectual. Segundo a pesquisadora, Rachel de Queiroz era integrante atuante do ciclo de cultura regionalista da terceira década do século XX. A escritora colaborou com a concepção e disseminação de uma das mais bem sucedidas “identidades culturais”, a “brasilidade nordestina”, que tem Gilberto Freyre como criador da expressão.

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Em 9 de outubro de 1999, Rachel de Queiroz publica a crônica O Incrível Centenário no jornal A Folha de São Paulo em homenagem aos cem anos do nascimento de Gilberto Freyre. Nesse texto, ela escreve:

Para nós, nordestinos, principalmente os que tínhamos maior contato com Pernambuco, Gilberto Freyre era uma espécie de orago. O homem que tinha descoberto o processo com que se fizera a civilização daquela região, baseado em informações locais, em documentação ainda não utilizada. A publicação de seu Casa Grande & Senzala foi praticamente um escândalo.

As relações dos patriciados com os escravos africanos e a população local eram vistos sob ângulo inédito. Quando o conheci, Gilberto já estava em sua plena glória. Só tive que reverenciá-lo como os demais da minha geração: ele era o mestre. (QUEIROZ, 1999 apud TAMARU, 2004).

Nessa crônica, Rachel de Queiroz ressalta a aclamação imediata do estudioso ao publicar Casa Grande & Senzala. De acordo com a escritora, o intelectual eleva a estima do nordestino ao expor o sertanejo nas suas vulnerabilidades, sem menosprezá-lo. Nas restrições da pobreza e do atraso, o homem do sertão demonstra sua resistência à miséria e ao coronelismo. (TAMARU, 2004).

Ângela Tamaru evidencia ainda que, mesmo as personagens de Rachel de Queiroz rompendo com determinados padrões sociais, a autora é considerada uma escritora que defende a manutenção dostatus quo.Nas palavras da estudiosa:

[...] embora rompa com a convenção do feminino em todo o conjunto de sua obra ficcional, ela mesma põe limites a essas conquistas, ou seja, respeita a tradição da qual faz parte, mantendo ainda sua identidade original de dama senhorial. […] Vista assim, Rachel de Queiroz pode ser definida como uma escritora dostatus quo. (TAMARU, 2004, p. 139-140).

No entanto, Tamaru também enfatiza que a obra de Rachel de Queiroz não deve ser analisada somente por esse prisma e defende que é pertinente reconhecer o seu pioneirismo, singularidade e importância na história da literatura brasileira. Ela introduziu o discurso da mulher escritora em um contexto histórico em que a literatura era, predominantemente, feita por homens, e também, através do conjunto de sua obra ficcional, salientou um tipo específico de protagonista: “a mulher nordestina emancipada, com todas as suas contradições.” (TAMARU, 2004, p. 141).

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1.3 A construção do texto Lampião: as referências

Nesse intuito de retratar o Nordeste por meio de figuras femininas, Rachel de Queiroz empreende o projeto de escrever uma peça de teatro sobre a companheira do “rei do cangaço”, Maria Bonita. No entanto, no transcorrer de sua pesquisa sobre o cangaço, a autora se encanta pela figura de Lampião e muda o rumo de sua escrita. (TAMARU, 2004). Inicialmente, o texto era para tratar da trajetória de Maria Gomes de Oliveira (popularmente conhecida como Maria Bonita), mas acabou centrado na figura de Lampião.

A minha hipótese para essa mudança se relaciona com as referências encontradas por Rachel de Queiroz sobre o cangaço. Na segunda edição do livro Lampião, publicado em 1954, antes de se iniciar a peça propriamente dita, encontramos a seguinte apresentação:

Esta peça não se pode presumir de "histórica"; contudo, procurou acompanhar o mais perto possível a lenda, o anedotário, o noticiário de jornal - a tradição oral e a escrita relativa ao mais famoso dos nossos cangaceiros.

A autora agradece especialmente o grande auxílio que lhe prestaram os livros Lampiãode Ranulpho Prata,Bandoleiro das Caatingasde Melquíades da Rocha, eComo dei cabo de Lampiãodo capitão João Bezerra.

Agradece o Coronel José Abílio, do Bom Conselho, que narrou muitas reminiscências de Virgulino e Maria Bonita, a quem conhecera pessoalmente.

E, mais que a todos, agradece ao seu finado amigo e mestre Leonardo Mota, cujo livro No tempo de Lampião, pela riqueza e autenticidade da contribuição folclórica, foi como colaborador inestimável no trabalho de Reconstruir a figura, os incidentes de vida, os companheiros e até a linguagem, de Virgulino Ferreira, o Lampião. (QUEIROZ, 1954, p. 5).

Nessa parte do livro, são mostradas as referências historiográficas que embasam a escrita da peçaLampião(1953). Os títulos dos livros já apontam indícios de que essas fontes tratam de Lampião. Ao que tudo indica, Rachel de Queiroz pretendia escrever a respeito de Maria Gomes de Oliveira, mas encontrou bibliografias e relatos que sublinharam os feitos e bravatas de Lampião e pouco falavam a respeito de sua companheira.

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No intuito de se aproximar das fontes historiográficas utilizadas por Rachel de Queiroz na escrita da peça Lampião (1953), foram lidos os livros No Tempo de Lampiãode Leonardo Mota (1976)11eLampiãode Ranulfo Prata (1980)12.

Leonardo Mota (1976), na primeira parte do seu livro, seleciona alguns dos feitos de Lampião e dos seus companheiros e os apresenta aos leitores. Além das narrativas, em alguns momentos do texto, são transcritas partes de entrevistas realizadas com sertanejos, que além de contar as histórias, comentam e expressam suas opiniões a respeito dos cangaceiros. O autor também faz referência a outras figuras históricas relacionadas ao cangaço e ao Banditismo Nordestino, como Antônio Silvino13 e Lucas da Feira14. Nessa obra, em nenhum momento é feita alusão às mulheres que adentraram no cangaço.

Ranulfo Prata (1980) também enfoca os crimes e peripécias cometidos por Lampião e seu bando. O autor inicia o livro tratando a respeito do nascimento e de familiares do cangaceiro, enfocando o motivo pelo qual essa figura histórica

14Lucas Evangelista dos Santos, mais conhecido comoLucas da Feira, nasceuem outubro de 1807 como escravo na fazenda Saco de Limão (no que seria hoje o bairro Pedra do Descanso, do Munícipio de Feira de Santana - BA). Era filho de negros jejes (oriundos da região de Daomé, na África) e trabalhou desde da primeira infância na lavoura e na carpintaria.Aos 21 anos de idade, ele se rebela e foge, tornando-se bandoleiro e líder de um bando de ex-cativos armado. (UZÊDA, 2019;

(NEVES; NOVAES, 2019).“Há quem afirme que Lucas da Feira foi uma espécie de Hobin Wood (SIC), que indignado com sua realidade, tirava dos fazendeiros ricos para dar aos pobres, que lutava pela causa da abolição ajudando outros escravos. Outros afirmam que nosso personagem não fazia distinção de classes e roubava de quem achava que deveria roubar. No livro Lucas da Feira de Inocêncio Marques são apresentadas as fases dos inquéritos policial e judicial, onde Lucas é acusado de crimes como roubo, latrocínio e tortura.” (NEVES; NOVAES, 2019).

13Antônio Silvino (Manoel Baptista de Morais) foi um dos mais conhecidos cangaceiros da história do Brasil. Inúmeras vezes, é referenciado como o rei do cangaço que antecedeu Lampião. Nasceu Afogados de Ingazeira-PE em 02 de novembro de 1975 e ingressou no cangaço aos 21 anos de idade. O seu pai, o senhor Batistão de Pajeú, foi assassinado no sertão pernambucano, numa disputa por terras. Esse evento levou os filhos Manoel e Zeferino a buscar vingança e adentrar no mundo do crime. Manoel mudou o nome para Antônio Silvino em homenagem ao tio Silvino Aires Cavalcanti de Albuquerque que também era cangaceiro. Esse parente acolheu e auxiliou Antônio Silvino e seu irmão após a morte de Batistão.

12 O livro Lampião de Ranulfo Prato foi publicado em 1934. Essa edição serviu como referência bibliográfica para Rachel de Queiroz elaborar o textoLampião(1953), uma vez que a segunda edição da obra foi lançada, somente, em 1972, ou seja, posteriormente à publicação em questão de Rachel de Queiroz. A exemplo do que foi realizado com o livro No tempo de Lampiãode Leonardo Mota, buscou-se também a primeira edição do livroLampiãode Ranulfo Prata. No entanto, foi encontrada a terceira edição da obra, publicada em 1980.

11 A primeira edição do livro No tempo de Lampiãode Leonardo Mota foi publicada em 1930. Essa edição foi a consultada por Rachel de Queiroz para escrever a peça Lampião (1953), visto que a segunda edição do livro foi publicada em 1967, posteriormente à publicação da dramaturgia em tela.

Ao procurar essa referência para consulta, buscou-se a edição de 1930, no entanto, foi encontrada a terceira edição da obra, publicada em 1976.

Referências

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