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3. A dança nacionalista e a sedução das massas 1 O bailado vermelho da U.R.S.S.

4.3. A contraposição aos totalitarismos de Martha Graham

Como visto anteriormente, com a implantação dos totalitarismos europeus, as tendências da dança americana convergiram para um protesto comum e é nesse âmbito que o caso de Martha Graham merece particular referência.

Na dança “à esquerda” americana, alguns artistas considerados “burgueses” foram acusados de frieza e formalismo, face a uma situação que exigia um comprometimento com o lado dos oprimidos. De entre todos os nomes destacar-se-ia o de Martha Graham que, a partir das experiências de Isadora Duncan e de Ruth St. Denis, (ex-aluna da Denishawn, de Ruth St. Denis e Ted Shawn), começou a construir o seu caminho coreográfico, distanciando-se dos seus mestres e abraçando uma nova via de movimento. Servindo-se de um simbolismo coreográfico próprio, Graham desenvolveu uma linguagem que levou a dança para caminhos de um experimentalismo e de uma configuração abstracta até então desconhecidos na América.

Quando em 1926 fundou a sua própria companhia, a Martha Graham Dance Company, as preocupações de Graham preteriram o aspecto político da sua arte em relação ao social. A América vivia a Grande Depressão e as suas consequências puseram em evidência a dor, a angústia do homem moderno e o problema da emigração, de que as peças Immigrant, de 1928 e Lamentation, de 1930, são exemplo. Immigrant continha duas secções, uma das quais, Strike, que chamava a atenção para o problema das condições laborais dos trabalhadores, enquanto Lamentation, um solo onde a bailarina utilizava um longo tubo de malha elástica, testava os limites da dor e da tragédia que assombram o corpo.

Paralela e pontualmente, a artista juntou-se ao NDG, ainda que as suas preocupações se encaminhassem num sentido distinto. Aliás, e segundo palavras da coreógrafa/bailarina, o que “nunca tolerara em estúdio era a menor discussão política ou religiosa”320, o que a distinguia do método de trabalho do NDG mas isso não significou que não se posicionasse perante a realidade política.

Em 1936, a sua atitude anti-fascista levá-la-ia a compor Chronicle, peça ilustradora do prelúdio de uma Guerra mundial e da consequente devastação do espírito

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que gerava. A obra apresentava-se dividida em três partes: Dances Before Catastrophe,

Dances After Catastrophe e Prelude to Action. O programa que acompanhava o espectáculo apresentava uma mensagem tão explícita, que não restava qualquer tipo de dúvidas quanto ao alinhamento político de Graham.

Afirmando a sua posição contra os regimes totalitários, Graham recusou-se a participar nos Jogos Olímpicos de Berlim, dizendo:

Presentemente é impraticável dançar na Alemanha embora haja lá muitos artistas que respeito e admiro mas que têm sido perseguidos e privados de trabalhar. É impossível identificar-me com um regime que consentiu em tais perseguições321.

À declaração de Graham associou-se a comunidade da dança americana: Doris Humphrey, Charles Weidman (1901-1975), Helen Tamiris, Anna Sokolow, Sol Hurok (1888-1974) e Lincoln Kirstein apoiaram o boicote e, no mesmo ano, a Escola Mary Wigman de Nova Iorque foi forçada a mudar de nome para Escola Hanya Holm, sua discípula. Esta alteração pretendia demarcar-se de qualquer equívoco que pudesse surgir da associação dos bailarinos que a frequentavam aos ideais do nazismo, pátria de Wigman.

Em 1937, no primeiro espectáculo de beneficência a favor da Espanha republicana, Graham apresentou as anteriormente enunciadas Immediat Tragedy e Deep

Song, tornando clara a sua posição. Henry Gilfond afirmaria sobre estas duas obras: “As

peças vão para além de Espanha. É a consciência de que a tragédia de Espanha é nossa, é de todo o mundo: a dedicatória não é à Espanha, é aos americanos. Graham tinha universalizado a tragédia”322. No seguimento da sua participação, Martha Graham foi

convidada a dançar na Casa Branca, sendo a primeira bailarina a fazê-lo; mas as suas preocupações artísticas encaminham-se numa nova direcção.

Em 1938 coreografou American Document, um tributo à herança e identidade americanas, uma vez que a ameaça vinda do estrangeiro fomentara um novo nacionalismo e muitos artistas responderam ao apelo, criando obras que exaltavam os temas nacionais,

321 Dance Observer, April 1936, p. 38 citado por Ellen Graff, Stepping Left, Dance and Politics in New

York City 1928 -1942, Duke University Press, USA, 1999, p. 116

322 Henry Gilfond, “Martha Graham”, Dance Observer, January 1938, p. 8, citado por Ellen Graff, “Dancing

Red: Art and Politics” in Studies in Dance History, Of, By, and For the People: Dancing on the Left in the

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reflectindo o seu patriotismo. American Document tornou-se desse modo símbolo da identidade americana, levando Ellen Graff a afirmar que “num tempo em que a solidariedade americana era essencial, Graham foi uma propagandista”323. Graham

coreografara a obra a partir de factos históricos, como a Declaração de Independência dos E.U.A., documento que acreditava conter a essência da nação. O New Masses caracterizou a obra como “um testemunho da maior tradição americana – a democracia”324 enquanto o Dance Observer concluía que a dança “era o testemunho do

amor e lealdade para com a democracia nesses dias ameaçados de 1938”325. A obra

recebeu numerosos elogios pelo carácter político e deu à bailarina a sua primeira grande audiência, levando-a depois a uma digressão pelo país que repetiu o êxito alcançado na estreia.

Em 1939, na Feira Mundial de Nova Iorque, Martha Graham representou a dança americana participando nas cerimónias de abertura do evento. Perante o Presidente dos E.U.A. e uma plateia de sessenta mil pessoas, a companhia de Graham apresentou Tribut

to Peace, mostrando que a coreógrafa se encontrava na vanguarda da dança política, actuando como a porta-voz de uma nação democrática.

Em 1941, Martha Graham criou War Theme sobre um poema de William Carlos Williams (1883-1963): uma improvisação onde a bailarina chamava a atenção para os direitos humanos, numa linguagem claramente politizada. Nesta obra, foram aprofundadas as preocupações politico-sociais já tocadas em peças anteriores, como

American Document. Com War Theme encerrou-se o ciclo espanhol, uma vez que as preocupações dos artistas se haviam voltado para uma causa distinta: a entrada, nesse ano de 1941, dos E.U.A. na Guerra, fez com que as inquietações criadoras se direccionassem no sentido de um nacionalismo que apoiasse a causa americana.

É nessa vertente que se insere, em 1944, Appalachian Spring, dança estreada na Biblioteca do Congresso Nacional e que teve o apoio da Coolidge Foundation. A música é de Aaron Copland (1900-1990) e os cenários de Isamu Noguchi (1904-1988); nesta dança Graham apresentava um dos símbolos da cultura americana: os pioneiros que estabeleceram as fronteiras na expansão para oeste. Appalachian Spring trazia à memória

323 Ellen Graff, “Dancing Red: Art and Politics”, Obra Cit., p. 10

324 Owen Burke, New Masses, 18.10.1938, p. 29 citado por Ellen Graff , Obra Cit., p. 9

325 Henry Gilfond “Bennington Festival”, Dance Observer, August-September, 1938, p. 101 citado por

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um passado mítico, criado a partir do reavivar de uma história que fortalecia a identidade nacional, numa época em que o envolvimento da América na Segunda Guerra era uma realidade. O herói de Appalachian Spring fazia ressurgir o arquétipo do poder dos pioneiros do Novo Mundo, numa procura de formas de legitimar a sua ancestralidade face ao “Velho” continente.

As criações de Graham assumiram um papel claramente político e o seu prestígio ultrapassou o círculo americano. Se no início da década de 1930 Martha Graham evitara a colagem à propaganda da esquerda nova-iorquina, o rumo que a política internacional havia tomado, no final dos anos 30, obrigara a bailarina a posicionar-se na linha do nacionalismo americano, orientação que levaria a que, em 1955, o Departamento de Estado a recrutasse como embaixadora da cultura dos E.U.A., mas tal acção seria já fruto de um outro momento da História.

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5. A dança como veículo de propaganda salazarista