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3. A dança nacionalista e a sedução das massas 1 O bailado vermelho da U.R.S.S.

5.1. Os night-clubs, o teatro de revista e o culto do corpo

Os políticos em Portugal, meu Amigo, não sabem dançar!

Magalhães Pedroso

Na definição do caminho para uma dança nacional, o século XX português começou por se afirmar dentro de um cenário que vinha de Oitocentos e onde a presença de bailarinos estrangeiros se circunscrevia às exibições na ópera do S. Carlos.

Há a assinalar porém que, ao longo dos anos 1910 e 1920, Lisboa começou timidamente a figurar no mapa das digressões de algumas bailarinas e companhias estrangeiras. Em 1902 Loïe Fuller fazia a sua estreia portuguesa326 no teatro D. Amélia

com as suas Dança do Fogo e Dança da Serpentina, tendo ainda partilhado o cartaz com a Companhia Japonesa de Teatro de Tóquio onde a vedeta era Sada Yacco327. Mais tarde

assistiu-se às apresentações de Pastora Imperio, Cléo de Mérode (1875-1966), La Argentina, Rita Saccheto (1880-1959), Anna Pavlova, La Argentinita, Lea Niako (1908- ?), Maria Raspoutine (1899-1977), que dividiram os palcos com o Teatro Imperial Russo, os Bailados Russos Eltzoff, a Companhia de Sacha Morgowa e a trupe de Pannonia Rusckov.

Paralelamente, o início da década de 1920 fez surgir em Lisboa um novo divertimento nocturno, por via de influência francesa: os night-clubs e cabarets. Estes locais não só animaram as noites da capital portuguesa como impulsionaram a prática e o desenvolvimento da dança nacional, pois foi neles que se inscreveram aos primeiros apontamentos de dança, trazidos maioritariamente por artistas estrangeiros.

De acordo com o estudo de Júlia Leitão de Barros, Os Night Clubs de Lisboa nos

Anos 20, “estes novos e modernos locais de lazer reflectiram-se na sociedade lisboeta de

326 A companhia de Loïe Fuller apresentar-se-ia ainda em 1912 no D. Amélia e em 1930 no Coliseu, desta feita já sem a sua mentora que falecera em 1928.

327Fuller havia apresentado a japonesa no seu próprio teatro na Exposição Universal de Paris de 1900 e foi a partir daí que, sucessivamente, participariam juntas em diversas tournées, incluindo a lisboeta.

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então”328. Fruto de uma euforia que ficaria caracterizada pelos “anos loucos” que

espelhavam uma nova realidade do pós-guerra, os “années folles” parisienses rapidamente contagiaram o resto da Europa, vibrando à vontade entusiástica de celebrar a vida e fazendo “esquecer” as privações de uma Guerra como não se vira outra igual.

A gradual alteração dos hábitos e costumes, o incremento do consumo e o desenvolvimento de uma ideologia de bem-estar, contaminava progressivamente a sociedade lisboeta. O surto económico transformou o quotidiano e, consequentemente, a importância do divertimento, que foi redimensionada para uma vertente que contemplava o acessório e o lazer, ao qual a influência americana não foi alheia. Estes modernos espaços nocturnos simbolizaram uma nova época, como sinónimos de modernidade, numa renascença de prosperidade que logo foi abraçada por uma élite urbana e boémia.

A revolução provocada pela introdução do jazz, e de números de dança estrangeira nos palcos lisboetas revitalizou a clientela dos night-clubs, tornando estes espaços símbolos das novas tendências artísticas que proliferavam um pouco por toda a parte. Lentamente, a oferta de clubes cresceu329, e multiplicaram-se as salas de cinemas e de

teatros que abriam as suas portas nas principais avenidas lisboetas.

A jazz band fixava-se a um canto da sala, mas “eram as novas danças que atingiam maior popularidade”330 e não tardou a que o foxtrot, o shimmy e o charleston invadissem

os recintos de diversão da capital portuguesa. Os jornais apresentavam múltiplos anúncios de espectáculos, bem como uma oferta de aulas de dança que levaram a imprensa a escrever: “Estamos numa época em que se dança continuamente (…) tão curtas são as madrugadas para dormir, depois de um baile a que se segue outro e outro”331 e a fazer

comentários como: “Agora… é tão necessário frequentar as escolas de dança – como é preciso ir todos os dias ao emprego”332.

Nessa Lisboa das salas nocturnas, e sob os modernos ritmos do jazz, foram introduzidos apontamentos de variedades que constituíram uma novidade importada de Espanha, como relata Mário Domingues na revista ABC: “Houve uma súbita mutação de

328 Júlia Leitão de Barros, Os Night Clubs de Lisboa nos Anos 20, Lucifer Edições, Lisboa, 1990, p. 11 329 Maxim´s, Bristol Club, Roma Club, Salão Alhambra, Clube Avenida Parque, Ritz Club, Club dos Patos,

Clube Internacional, Clube da Regaleira, Magestic-Club ou Club Monumental, Olimpia Club, Palace Club, Rocio Club, Club Montanha, Club das Avenidas, Club Moderno e o Palais Royal.

330 Júlia Leitão de Barros, Obra Cit., p. 66

331 Madame de Sourire, “Toilets de Baile”, ABC, de 4.2.1926, p. 11 332 Idem.

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luz, a sala mergulhou numa vaga penumbra que envolveu as pessoas (…) numa branda dose de mistério. São as espanholas que vão trabalhar”333. Aos nomes das sevilhanas

Amparito Medina, Adelita Adriano, Lola Branco, juntar-se-iam outros estrangeirados como Eloisa Yorter e Elsa Nori, publicitados em jornais e cartazes luminosos, espalhados pela cidade.

Acresce que, ao ambiente noctívago dos night-clubs, se juntaram sessões de dança erótica e exótica, com as quais Lisboa se entusiasmou, como refere o romance de João Ameal, Os Noctívagos: “O quarteto lançava os compassos banalíssimos (…) e, inesperada, uma mulher surgia detrás do biombo, ao fundo, toda coberta duma capa negra (…) que principiou uma dança lânguida, arrastada, sublinhada com quebraturas sensuais”334.

Muitos destes espectáculos eram promovidos através do mais variado tipo de publicações, como é o caso do turístico Album de Portugal onde se lê: “O Maxim´s contrata o que de melhor há no estrangeiro, sem olhar a dificuldades. Acontece, portanto, que no programa das suas diversões há constantemente números de variedades colossais, cantadoras ou bailarinas”335.

Conjuntamente, bailarinos a solo ou integrados nas suas companhias, continuavam a afluir às salas de espectáculo mais conhecidas da capital. Os anos 30 trariam nomes como Nyota Inyoka, Carmen Amaya, Clotilde von Derp (1892-1974) e Alexandre Sakharoff (1886-1963), e as companhias da Ópera Russa de Paris, a Companhia de Arte Popular Argentina Azucena Maizani.

Contudo, a relativa euforia era circunscrita à capital, encontrando-se delimitada dentro de salões exclusivos ou de salas de espectáculo pouco numerosas às quais só uma elite tinha acesso, uma vez que “toda esta actividade lúdica surgia como ilhas de cosmopolitismo numa sociedade ainda drasticamente marcada pelo conservadorismo, pela pobreza da maioria da população e por uma mentalidade pouco propensa a transformações de costumes”336. Entregue aos condicionalismos nacionais, a Lisboa

333 Mário Domingues, “O Combate dos Leões”, ABC, de 6.4.1922, p. 26 334 João Ameal, Os Noctívagos, Ed. Lvmen, Lisboa, 1924, pp. 48-50

335 Album de Portugal, Lisboa, Sintra, Estoril, Cascais, Tomo I, Ed. e propriedade da Revista Turismo,

Lisboa, 1929, p. 70

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tradicionalista não via com bons olhos estas ameaças à sua pacatez e talvez por essa razão, ou influenciada por ela, uma outra distracção, mais discreta e popular, granjeou, um maio

Ilustração Portuguesa, num artigo datado de 1921, e por si assinado enquanto director da revista:

Procurará mostrar Portugal aos portugueses e estilizar a raça (…) e que a linha do bailado português está ainda por descobrir e uma vez encontrada essa linha, Portugal pode ter a sua companhia de bailados (…) em danças populares, nos nossos trajes regionais, nos nossos costumes, temos matéria- prima para estilizações admiráveis, (…) a pôr no mundo337.

A companhia de Diaghilev teria sido a catalisadora das aspirações a um novo panorama da dança teatral portuguesa que, numa primeira fase, se revelou através da introdução de pequenos apontamentos de dança no teatro de revista e, numa segunda fase (já no decénio de 1940), viria a concretizar-se na criação da primeira Companhia de Bailados Portugueses, denominada Verde Gaio.

Para se compreender a sua base de fundamentação há que referir que, em 1925, Ferro criara o seu Teatro Novo338 e num outro registo, em 1936, o Teatro do Povo339; o

primeiro foi importante como fonte de experimentalismo e por ter dado a conhecer Francis Graça340; o segundo pelo plano de divulgação da cultura popular. Ambos

constituíram marcos na abordagem da arte teatral. Seria esse mesmo Francis Graça que a Companhia de Luísa Satanela iria buscar a partir de meados dos anos 20, para ajudar a modernizar a sua empresa teatral. Convidando jovens artistas para desenhar cortinas, figurinos e cenários, e depois compositores, Satanela queria também dançar e estender a

337 Citado por Vítor Pavão dos Santos, Verde Gaio, Uma Companhia Portuguesa de Bailado (1940-1950),

Museu Nacional do Teatro, Lisboa, 2000, p. 15

338 Sob a influência do Teatro de Arte de Luigi Pirandello, António Ferro criou o Teatro Novo que pretendia

romper com o teatro tradicional e criar um teatro de vanguarda, onde se elogiava a performance moderna e onde se chamariam pintores, decoradores e figurinistas para colaborar com os autores e empresários.

339 O Teatro do Povo foi criado em 1936, por António Ferro, e pretendeu levar o espectáculo teatral às mais

remotas zonas do país, numa espécie de teatro ambulante. Ao longo dos seus quase vinte anos de existência, sofreu algumas adaptações de reportório e direcção artística. Sobre o assunto ver Graça dos Santos, O

espectáculo desvirtuado, o teatro português sob o reino de Salazar (1933 – 1968), Caminho, Lisboa, 2004

340 De seu nome Francisco Florêncio Graça (1902-1980), Francis Graça cursou música no Conservatório

Nacional, onde foi companheiro de estudos de Frederico de Freitas (1902-1980). Em diversas entrevistas disse ter começado a dançar por intuição e mais tarde teria estudado com uma professora russa, indo depois para Paris. Depois do Teatro Novo, logo no ano seguinte em 1926, Francis Graça estreou-se no Éden Teatro a revista Cabaz de Morangos de cujo elenco fazia parte.

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dança “às coristas que, até aí, apenas se movimentavam incipientemente em cena”341. A

primeira revista que concretizou essa realidade foi Água-Pé, de 1927. Nela, Satanela e Francis Graça dançam Bonecos Russos, numa nítida ascendência do que se vira da companhia de Diaghilev em Lisboa, tendo a revista ficado mais de um ano em cartaz, façanha que nunca foi repetida.

Ao longo das décadas de 1920 e 1930, e para ajudar a estimular toda esta actividade bailatória, os bailarinos estrangeiros radicados em Lisboa foram convidados a participar nos espectáculos da revista. Aos nomes de Luísa Satanela e Ruth Walden342,

juntaram-se os de Piero Bénardon, Piero d´Evandauns, Eva Stachino, Mafalda Reiner e Ivette Beller.

O Curso de Formação de Bailarinas do Conservatório Nacional, que havia sido criado em 1911 (e que só abriria a alunos do sexo masculino nos anos 50), possibilitou que algumas das suas alunas integrassem os números de dança do teatro de revista e o corpo de baile das óperas realizadas no Coliseu, ainda que as mais ambiciosas tivessem que procurar no estrangeiro um complemento à sua aprendizagem e técnica nacional. Com dançarinas a participarem mais frequentemente nas revistas, as apresentações das

girls passaram a ser marcadas e coreografadas pelos realizadores de cena. Os apontamentos de dança foram-se tornando populares e o público e a crítica entusiasmaram-se: os números dançados deixaram de ser residuais e passaram a ser algo de fundamental, inserindo-se impreterivelmente dentro de cada nova encenação.

Francis Graça rapidamente se destacou, tornando-se o principal “coreógrafo” de cena de que as revistas Sete e Meio (1927), A Rambóia (1928), Chá da Parreira (1929),

Feira da Luz (1930)343, Ai-Ló (1931), Mexilhão (1931)344 e Areias de Portugal (1932),

são disso exemplo.

Na década de 1930, a actriz Corina Freire (1897-1957) juntar-se-ia a Francis Graça e Ruth Walden, quando o trio foi convidado por António Ferro a participar numa récita

341 Vítor Pavão dos Santos, Obra Cit., p. 18

342 Ruth Walden (1910-1990?) nome artístico da bailarina alemã Hildegard Engelmann e futura parceira de

Francis Graça.

343 Inseridas na Grande Companhia de Revistas Hortense Luz, Chá da Parreira e Feira da Luz fazem

digressão pelo Porto e pelo Brasil, onde Francis Graça teve pela primeira vez contacto com um público estrangeiro.

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em Paris e depois em Genebra345. Seguiu-se o Brasil e a Argentina, onde obtiveram

grande êxito, fazendo rarear as suas apresentações em Portugal; só depois de uma longa ausência dos palcos nacionais, já em 1939, o par voltou a actuar em Lisboa, no Teatro da Trindade. No início de 1940, Francis Graça e Ruth Walden apareceriam ainda na revista

A Feira das Mercês, e é neste ponto que interessa voltar um pouco atrás e perfilar como a política cultural do Estado Novo se havia definido.

Para além do que se apresentava nas salas de espectáculo, nos salões dos night- clubs, no teatro de revista e nos recitais independentes, a ditadura portuguesa – a par das europeias – outorgava o ideário classicista de mens sana en corpore sano, exibindo a sua “juventude” em desfiles e acções que promoviam uma cultura física comum, pretendendo indiciar a saúde do próprio regime.

Em 1936 foi criada a organização nacional da Mocidade Portuguesa346, um mês

depois do Teatro do Povo, de António Ferro. Dirigida às camadas mais jovens da população, tencionava ajudar na formação do carácter e na devoção à pátria, no sentimento da ordem, no gosto da disciplina, no culto dos deveres morais, cívicos e militares, bem como estimular o desenvolvimento integral das capacidades físicas.

Desde os primeiros tempos, a educação física esteve inerente às práticas levadas a cabo na Mocidade Portuguesa masculina, justificada pelo facto de o exercício físico a que os seus filiados estavam sujeitos, ajudar a preservar a saúde, bem como a constituir uma população forte e robusta, capaz de levar a bom termo os desígnios da nação. Os desportos foram mesmo a imagem de marca que fez com que os jovens a procurassem, tendo sido através destes que a organização se tornou mais atractiva. Graças à disciplina que a sua prática implicava, cedo se tornou num manancial propagandístico de grande fulgor, que o regime soube condignamente aproveitar. Na perspectiva de Joaquim Vieira, “as razões do sucesso inicial da Mocidade Portuguesa junto da juventude ficaram a dever- se às portas que abriu aos rapazes para o desenvolvimento de actividades físicas, fossem

345 Por ocasião da Exposição Internacional de Paris de 1937. Ver IAN/TT, AOS/CO/PC-12A, pasta 8: Suite

Portugaise, rapsódia portuguesa que se repete em Genebra mais tarde. Conferência dialogada por Fernanda de Castro e António Ferro e com apresentações e danças pelos bailarinos Francis Graça e Ruth Walden. As peças foram musicadas por maestros como Frederico de Freitas e Rui Coelho, tendo os trajes regionais sido confeccionados segundo maqueta de Maria Adelaide Lima Cruz (1908-1985) e Bernardo Marques (1898- 1962).

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elas competições desportivas, exercícios de ginástica, desfiles ou paradas”347. A

justificação da educação física residia no facto de ela não só valorizar física e psicologicamente os seus membros, como constituir um símbolo do “fortalecimento da nação”348.

Aproveitando uma lacuna do sistema do ensino português, no que se referia à inexistência de métodos e programas de educação física que fossem cumpridos pelas escolas, a Mocidade promoveu a ginástica juvenil, responsável pela introdução de novos hábitos em relação à manutenção de um corpo sadio e atlético, num país pouco dado ao culto do corpo. Essa ausência de uma cultura física efectiva ter-se-á devido à grande influência da Igreja Católica e ao ascetismo do próprio líder, Salazar, que, ao contrário dos seus homólogos estrangeiros, não gostava de se exibir em paradas e desfiles, lugares onde o corpo era acção e instrumento da própria imagem da ditadura.

A organização editou brochuras com lições de ginástica e um completo manual de educação física349, exibindo-se frequentemente em grandes espaços,

cinematograficamente escolhidos para o efeito, e onde milhares de jovens se mostraram em exercícios cautelosamente coreografados e de grande impacto visual.

O diversificado leque de modalidades desportivas permitiu a escolha da actividade mais adequada a cada um: tiro, pugilismo, vela, remo, canoagem, esgrima, natação, pentatlo, hipismo, ténis, futebol, voleibol, basquetebol, hóquei em patins, atletismo, práticas mais divulgadas dentro de uma atmosfera despolitizada. Outras acções, como o voo sem motor, beneficiaram do apoio do próprio III Reich, que, em 1937, ofereceu à organização quatro planadores. O “proteccionismo” da Alemanha contemplou a oferta de diverso material desportivo para os vários centros da Mocidade Portuguesa, bem como o envio de instrutores alemães para habilitar os portugueses nas diferentes áreas desportivas.

A partir dos anos 40, a organização concentrou em si a tutela de toda a prática desportiva, criando os primeiros centros de medicina desportiva existentes em Portugal, além de fomentar a criação de campeonatos internos para cada uma das modalidades. Promoveram-se saídas para campo que, juntamente com as paradas, as marchas e as

347 Joaquim Vieira, Mocidade Portuguesa, Homens para um Estado Novo, A esfera dos livros, Lisboa,

2008, p. 159

348 “As conclusões e os votos do Congresso Nacional da MP”, O Jornal da MP, 28 de Maio de 1939, p. 8 349 Da autoria de A.F. Marques Pereira e com ilustrações de Eduardo Teixeira Coelho (1919-2005).

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excursões pelo país e estrangeiro, motivaram grande número de jovens a aderir à instituição.

A estrutura interna da Mocidade Portuguesa modelou-se a partir de congéneres estrangeiras como os Balilas italianos ou a Hitlerjugend, a juventude hitleriana. Daí que o seu primeiro comissário nacional, Francisco José Nobre Guedes (1893-1969), simpatizante do III Reich, tivesse procurado criar uma organização de juventude nacional, inspirada no modelo alemão da juventude hitleriana. Em 1936, o próprio ministro da Educação Nacional, António Carneiro Pacheco (1887-1957), deslocou-se a Itália e à Alemanha para estudar o funcionamento das organizações juvenis aí sediadas. A convite da organização, muitas delegações da Hitlerjugend visitaram Portugal e, embora o intercâmbio fosse real, pretendia-se que a organização nacional “não fosse nem hitleriana nem balila. Portuguesa, portuguesa!”350. Houve por isso o cuidado de esclarecer que havia

diferenças entre o “equilibrado nacionalismo” do Estado Novo e os nacionalismos totalitários e expansionistas da Itália e da Alemanha, bem como entre a organização feminina de juventude lusitana e os movimentos congéneres fascista e nacional-socialista, segundo se pode ler no Boletim da Mocidade Portuguesa de Dezembro de 1937. Neste intercâmbio político-ideológico, a visita do representante da juventude hitleriana a Portugal, em 1938, Hartmann Lauterbacher (1909-1988), reforçaria a “colagem” à Hitlerjugend do Führer, disso sendo exemplo o discurso que proferiu:

Só os Estados autoritários têm um futuro à sua frente e as juventudes são a melhor garantia desse futuro e de um renascimento que todos preconizam351.

Um intercâmbio durável iniciou-se então. Os primeiros dirigentes da organização portuguesa deslocaram-se bastantes vezes à Alemanha, a Itália e a Espanha, a fim de recolherem experiências e ensinamentos, e assiduamente a imprensa nacional deu conta dessas viagens. Por outro lado, foi frequente o envio de delegações estrangeiras a Portugal para participarem em provas desportivas e desfiles. Até o acto inaugural da Mocidade Portuguesa se revestiu de singulares contornos propagandísticos, tal como a apresentação de uma delegação nos Jogos Olímpicos de Berlim, no ano da sua criação, em 1936.

350 Frase inserida num texto ficcional intitulado “Três Mocidades”, do Boletim da MPF, de Setembro de

1939.

351 “O sr. Hartmann Lauterbacher, da Juventude Alemã, visitou oficialmente a Mocidade Portuguesa”, O

Jornal da MP de 2.3.1939, p. 2, citado por Joaquim Vieira, Mocidade Portuguesa, Homens para um Estado

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Embora as três dezenas de filiados que aí se deslocaram não fossem competir nos Jogos, pretendeu-se veicular uma imagem da estrutura sólida da instituição que ainda não saíra do papel352. Já em Lisboa, Pinto Coelho (1912-1995), secretário-inspector da

organização, e que fora o delegado nacional que conduzira o grupo português ao encontro internacional de organizações de juventude alemã, referia que “se tanto for necessário imitaremos as heróicas juventudes da Itália, da Alemanha e da Espanha”353. Apesar da

dos Balilla e da Hitlerjugend terem tido núcleos em Portugal, as relações entre essas organizações mantiveram “afinidades sim, decalque não”354.

Em 1940, o comissário da Mocidade Portuguesa, Nobre Guedes cedeu lugar a Marcello Caetano (1906-1980), tido como mais distante das juventudes hitleriana e italiana e, consoante a Guerra se encaminhava para a vitória aliada, gradualmente a organização nacional de juventude se afastou das suas congéneres europeias, aproximando-se de uma organização de escuteiros.

Quanto à Mocidade Portuguesa Feminina, a sua criação em 1937355 revestiu-se,

segundo o Boletim da MPF, “de características absolutamente nacionais”356 e, por isso

mesmo, havia diferenças entre esta e os movimentos fascistas e nacional-socialistas. Num número da revista M&M dedicada à organização feminina, podia ler-se: “Atenção Raparigas: o desporto revela o carácter”357.