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3. A dança nacionalista e a sedução das massas 1 O bailado vermelho da U.R.S.S.

3.4. A Espanha franquista dos Coros Y Danzas de la Sección Femenina

Em 1939 a vitória de Franco e o fim da Guerra Civil Espanhola permitiram a instauração de um regime ditatorial que, tal como os outros regimes totalitários europeus, não demorou a enunciar uma cultura oficial. Ao longo de mais de três décadas, o franquismo formulou uma política artística manifestamente influenciada pelo modelo alemão. Nessa vertente, os actos públicos, em que os cidadãos eram simultaneamente actores e espectadores, formaram uma montra do regime do Generalíssimo, numa reprodução da propaganda implantada na Alemanha hitleriana.

Na obra Arte y Estado268 o regime espanhol estruturou a política cultural a seguir

para as artes, enunciando-se as grandes linhas de acção da estética oficial franquista. Quando foi criado em 1938, a Regiduría de Cultura (no seu II Conselho Nacional), nunca os seus mentores pensaram em estruturar um departamento em que a dança ocupasse um lugar relevante. Essa posição estava destinada à música e foi através dela que a dança se foi revelando, mais precisamente a partir do Departamento de Música da Regiduría de Cultura. Durante algum tempo, as intenções relacionadas com uma política para o corpo, permanecem no Departamento de Música da Secção Feminina, e só quando a Guerra Civil acabou, em 1939, houve disponibilidade para se preparar uma estrutura coesa sob a alçada da vitória nacionalista.

A juventude feminina enquadrou-se primeiro na Frente de Juventude e em seguida passou para a tutela da Sección Femenina da Falange Espanhola. Os seus centros escolares promoveram actividades de educação física, educação feminina e formação moral, tendo o peso da religião católica sido constante ao longo da sua existência. No III Conselho Nacional da Secção Feminina, de 1939, a própria Pilar Primo de Rivera (1907- 1991)269 promoveu a cultura física, insistindo na necessidade de criar escolas de educação

268 Ernesto Gimérez Caballero afirmava em Arte y Estado, documento redigido em 1935, o desejo de se

tornar o Goebbels espanhol. Foi substituído em 1937 por Antonio Tovar e Dionisio Ridruejo no Serviço de Imprensa, Propaganda e Radio.

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física que difundissem a ginástica, a rítmica, a dança e o desporto, e que reflectissem a imagem da nova nação espanhola.

Em 1942, e depois de dois longos anos de preparação, teve lugar o I Concurso de Coros Y Danzas. O elevado número de participantes levou a que o regime propusesse, nesse mesmo ano, a ida dos Coros Y Danzas ao estrangeiro (Alemanha) numa acção de propaganda cultural calculada. Foi a partir daí que os Coros Y Danzas de la Sección Femenina passaram a ser utilizados de forma convicta pelo governo, constituindo uma espécie de embaixada espanhola.

Na consolidação desta política de propaganda cultural, a “delegação” viajou durante cinco meses pela América Latina, alcançando um relativo êxito. Entre 1948 e 1962, o grupo deslocar-se-ia à Europa, Médio Oriente, Ásia, América Central e E.U.A. e, apesar de os resultados terem sido desiguais, as actuações tiveram grande repercussão na imprensa espanhola.

A manipulação de uma imagem com fins propagandísticos definidos estendeu-se depois à televisão, ao cinema, aos cartazes e a espectáculos que celebravam o regime e as artes. Desse universo daria conta a obra de Estrella Casero, La España que bailó con Franco, coros y danzas de la sección femenina, destacando-se nela o “bailar para unir270”,

tão essencial a uma Espanha politicamente dividida e carecida de coesão interna.

A convergência com a diversidade cultural do país, sob o desígnio de unificação nacionalista, exportou uma dança espanhola reinventada à luz de uma nova ideologia. Uma vez que se perdera a memória histórica do próprio baile, foi fácil definir uma estilização do folclore como autêntica e tradicional. Reescreveram-se coreografias e músicas, recrearam-se trajes, não como haviam sido mas como se desejaria que fossem, “vendendo-se” essa imagem como genuinamente nacional. Debaixo dessa unificação, e como elemento de propaganda nacionalista, os Coros Y danzas de la Sección Femenina difundiram uma representação coreográfica que marcou a dança espanhola durante aproximadamente quarenta anos, mantendo as suas características idênticas ao longo desse período, embora contasse com falta de meios económicos e pessoal especializado. Por outro lado, cada mulher que se casava deixava o “serviço activo” dos Coros, obrigando constantemente o processo a reiniciar-se, impossibilitando um

270 Estrella Casero, La España que bailó con Franco, coros y danzas de la sección femenina, Editorial

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desenvolvimento técnico que lhe conferisse o grau de profissionalismo de outros grupos congéneres.

Para que a sua politização artística fosse bem-sucedida, foram reguladas directivas próprias. A proibição de participação dos homens – excepção feita aos músicos que acompanhavam o grupo – até 1957, foi disso exemplo. Enquanto a sua presença não era autorizada, as mulheres, trajadas com figurinos masculinos, dançavam em pares com as suas colegas. Esta mostra de puritanismo da Secção Feminina indica até que ponto a força da acção católica dominava a sociedade franquista, compondo mesmo um dos pilares da sua política.

Porém, não foram apenas os Coros Y danzas de la Sección Femenina a servir de “embaixada” cultural da Espanha franquista. O regime reforçou a sua política de propaganda, promovendo espectáculos de dança flamenca e popular que ajudaram a legitimar a imagem de uma Espanha heterogénea que valia a pena mostrar, e de que foi exemplo a vinda a Lisboa de Carmen Salazar, em 1941271, de Mariemma, em 1942, 1943,

1945 e 1950272, de Vicente Escudero, em 1943 e 1951273, de Manuela del Rio, em 1946274,

de Pilar Lopez, em 1947275, de Carmen Amaya276, e de Rosario e Antonio277, todos em

1951.

Por fim, é necessário afirmar que esta relevância da dança popular, foi uma constante ma maior parte dos países europeus ao longo do período entre Guerras, devido,

271 Carmen Salazar foi apresentada pelos jornais de Lisboa como a “Anna Pavlova de Espanha”. Primeira

bailarina do Teatro Real de Madrid, revelou-se como a digna sucessora de La Argentinita (Encarnación Lopez – 1895-1945). Os críticos consideraram-na a maior intérprete de Manuel de Falla, Henrique Granados (1867-1916) e Isaac Albeniz (1860-1909). Ver Diário de Notícias de 23.1.1941

272 Mariemma, (1917-2008), de seu nome Guillermina Cabrejas, estudou bailado e dança espanhola em

Paris, tendo-se especializado na chamada “escuela bolera”. Ver Diário de Notícias de 24.6.1942, de 23.6.1943 e de 24.4.1945

273 (1885-1980) Considerado um defensor da genuidade e da virilidade do baile flamenco, Vicente Escudero

dançou com La Argentina (Antonia Mercé) (1890-1936) e com Pastora Imperio (1887-1979). A sua versão de El Amor Brujo foi estreada em Paris, em 1926, por recomendação expressa de Manuel de Falla. Ver Fernando Lopes-Graça na Seara Nova de 26.7.1943 e Diário Popular de 19.7.1943

274 Num espectáculo único de homenagem a Manuel de Falla, Manuela del Rio dançou obras por si

coreografadas, tendo como maestro Pedro de Freitas Branco (1896-1963) e a participação de vários artistas portugueses, além do Verde Gaio e de Ruy Coelho, num artigo do Diário de Notícias de 17.5.1945 e outro de Fernando Lopes-Graça na Seara Nova de 26.5.1945

275 (1912-2008) O Ballet Espanhol de Pilar Lopez foi herdeiro da companhia de La Argentinita

(Encarnación Lopez), sua irmã, tendo a maioria das coreografias apresentadas incorporado os dferentes aspectos do baile espanhol: o clássico, o popular e o flamenco. Ver José Blanc de Portugal, Diário da

Manhã de 16.5.1947

276 Carmen Amaya (1918-1963) já tinha dançado em Lisboa em 1936. Ver Diário de Notícias de 24.9.1936

e de 13.1.1951

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em grande parte, à mostra levada a cabo no pavilhão francês das Danças Populares e do I Congresso Internacional de Folclore, integrados na Exposição de Paris de 1937 e de que se falará em seguida.

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3.5. O pavilhão francês das Danças Populares da Europa

Como se viu até aqui, a Europa dos anos 30 era uma Europa profundamente nacionalista, que procurava, nas raízes ancestrais, uma identidade que lhe permitisse afirmar-se enquanto cultura identitária agregadora de um ideal comum e é segundo esse ângulo que se podem entender os acontecimentos franceses de 1937.

Foi numa França não totalitária que decorreu um dos mais importantes eventos culturais da década de 1930: a Exposição Internacional de Paris de 1937. Lugar onde se expressou o progresso técnico mas, acima de tudo, o poder de cada nação, a Exposição de 1937 foi o palco do face-a-face dos pavilhões da Alemanha e da U.R.S.S., confrontando-se numa demonstração de força do seu regime e da sua ideologia. Através da sua arquitectura colossal – pretensa metáfora do poder de cada um dos regimes – impôs-se uma imagem totalitária que foi complementada e reforçada por um programa de actividades de propaganda278.

Quanto ao discurso do pavilhão francês, este assentava na solidariedade nacional reinventada na tradição, no sentido em que se destacava o seu “centro regional”, reactualizando a arquitectura das províncias francesas, numa expressão de ideal colectivo. É dentro desse registo que se percebe o Pavilhão das Danças Populares da Europa, no qual se exibiu a exposição “Les vieilles danses de France”, anteriormente organizada (finais de 1935 e início de 1936) pelos Archives Internationales de la Danse (AID). A mostra reunia gravuras, fotografias, figurinos regionais, partituras musicais e coreográficas, tendo como objectivo cartografar os registos folclóricos das províncias de França, “dando conta da sua regressão ou mesmo desaparecimento”279, mostrando uma

preocupação crescente pela progressiva perda da memória das danças regionais. Como observou Inge Baxmann, “os mais de quinhentos artigos na imprensa nacional e internacional atestaram que os AID haviam tocado no tema do momento”280, tendo sido

considerados como um elemento preponderante na estruturação de uma identidade

278 Importa salientar que a França, face ao gigantismo da arte fascista e soviética, procurou destacar-se

através de um programa de arte colectiva subsidiária da arte moderna defendida pela Frente Popular.

279 Jacqueline Christophe, (Coord.), Du Folklore à l'ethnologie, Éditions de la Maison des sciences de

l´homme, Paris, 2009, p. 106

280 Inge Baxmann (Dir.), Les Archives Internationales de la Danse 1931-1952, Centre National de la Danse,