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O início do século XX, ao emancipar a dança e o bailado da ópera, determinou a sua utilização como veículo privilegiado das ideologias nacionais, uma vez que a dança pode transmitir ideias, veicular posições e instituir modelos de acordo (ou contra) as directivas preconizadas pelo próprio poder político; é nesse campo que se procurará pensar a sua acção nas páginas seguintes. O carácter “efémero” da dança fez com que esta arte, que começou por ser um rito e uma cerimónia, se transformasse, ao longo dos tempos, num divertimento sujeito à pauta e ao compasso dos tratados coreográficos, num jogo de elegâncias que reproduziu mensagens capazes de ser “lidas”, e isto porque o seu poder de atracção induz uma certa leitura do mundo.

Num pequeno ensaio, Giorgio Agamben enuncia o axioma de Stéphane Mallarmé (1842-1898), segundo o qual “a bailarina não dança mas escreve” 19, ou seja, para o autor,

a dança funciona como uma espécie de escrita corporal, que tem necessariamente uma leitura concreta. Quando a bailarina dança, usa o corpo, em simultâneo, como matéria- prima e obra, o que significa que ela é, ao mesmo tempo, sujeito e objecto de criação. A sua grafia do movimento traduz assim uma ideia subordinada a uma interpretação que a torna “apetecível” ao poder; daí se reconhecer que tenha sido um meio privilegiado do estudo da dinâmica colectiva, bem como uma via de análise dos fenómenos culturais e artísticos de uma nação.

Ao longo da História ocidental, se observarmos a génese e a evolução da dança, podemos notar que esta arte traduz as vicissitudes do processo histórico, e, consequentemente, do poder dominante. Esse papel advém-lhe do facto da sua especificidade: ao revelar-se através do movimento e de uma ideia, ela pode servir de instrumento à transmissão de um conceito, expressão ou estratégia política ou apolítica.

Se ancestralmente a dança desempenhara a função ritualista de promover uma relação entre o mundo do Homem e o mundo dos deuses, ela evoluiu de forma consistente no mundo helenístico. A ascensão do Cristianismo e o surgimento da Idade Média fez emergir o deus monoteísta e submergir as práticas politeístas. A dança foi exorcizada da

19 Giorgio Agamben, “Le corp à venir Lire ce qui n´a jamais été écrit”, Image et Mémoire Écrit sur l´Image,

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vida religiosa, deixando a esta uma margem ínfima na corte palaciana e na tradição popular. Confinada a sua amplitude a esses dois espaços, a dança reformular-se-ia no ideário humanista do Renascimento, repleta de códigos e artifícios, florescentes nas cortes aristocratas francesa e italiana do século XVI. Em 1573, na corte de Catarina de Médicis (1519-1589), Balthazar de Beaujoyeulx (c. 1535-1587) convocou um espectáculo de teatro e dança – o Ballet des Polonais – com o propósito político de impressionar os embaixadores e diplomatas de visita à corte20 e em 1581, por ocasião do casamento de

Margarida de Lorena (1564-1625) com Anne de Batarnay de Joyeuse (1560-1587), Beaujoyeulx criou o Ballet Comique de la Reine, um espectáculo que tinha em vista incrementar a glória de França e que representou, para muitos, o primeiro ballet de corte.

No século XVII, a apropriação da dança para fins políticos teve a sua “sagração oficial” durante o absolutismo de Luís XIV. Com efeito, o monarca seria o primeiro a usá-la com uma finalidade política específica; nos seus Ballets de Cour, o soberano misturava calculadamente arte, política e entretenimento, o que contribuiu para lhe garantir uma autoridade plena e prestigiada. Aliás, o epíteto de Rei-Sol, que adquiriu, deveu-se, em grande parte, ao facto de ter aparecido como se fosse o astro-rei num ballet

de cour, realizado a 23 de Fevereiro de 1653 e intitulado Le Ballet de la Nuit. Menos de uma década depois – em 1661 – o soberano estabeleceu a Academia Real de Dança, a primeira instituição a manter os artistas organizados sob o seu serviço e autoridade oficial. Luís XIV ajudou a estabelecer o bailado como uma arte profissional independente, catapultando a dança teatral da esfera cortesã francesa do século XVII para a esfera pública, o que logo foi reproduzido nas diferentes cortes europeias. Esta profissionalização encaminhou-se no sentido de um rigor que funcionou como metáfora do poder absolutista: olimpicamente distante, numa extensão vertical em direcção ao divino, marcando-lhe o destino primeiro de dança teatral.

Em 1760, Jean-Georges Noverre (1727-1810) publica Lettres sur la danse, um compêndio onde se destacou, pela primeira vez, o papel do coreógrafo como força criativa por detrás de cada peça. Na mesma obra, o autor critica o divertissement decorativo do bailado, e aspira a fazer do ballet uma arte “séria”, a fim de ter uma narrativa e de contar uma história que enfatize a ideia da educação moral secular, numa intenção bem de acordo

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com o espírito iluminista da Idade da Razão: era o poder do bailado imbuído de um carácter instrutivo, excluindo a sua função unívoca ornamental.

Com a Revolução Industrial e a consequente ascensão da burguesia, o bailado passaria a expressar a estética da época, “vestindo-se” de tutus e dançando-se em pontas, o que destacava o carácter etéreo e espiritual da época romântica.

Estes aspectos documentam o clima em que se vivia e apontam para outras mudanças verificadas pouco depois. No final século XVIII, durante a Revolução Francesa, dançou-se freneticamente: dir-se-ia que, receando a guilhotina, a população se refugiava nos compassos rítmicos das danças. La Fille mal Gardée, obra nascida no próprio ano da Revolução, 1789, constituiu uma criação de Jean Bercher Dauberval (1742-1806), e é um exemplo do bailado-drama de inspiração revolucionária, motivada pela queda do regime absolutista francês21. Por seu turno, e entre o reinado de Luís XVI

(1754-1793) e o II Império de Napoleão III (1808-1873), Pierre-Gabriel Gardel (1758- 1840), maître de ballet da Ópera de Paris, produziu variadas obras que retratam a sociedade saída da Revolução Francesa da qual Le Dêserteur (1788) e La Dansomanie (1800) – peça inspirada no Antigo Regime e interpretada por Auguste Vestris (1760- 1842) – se apresentam dos mais representativos exemplos. Isto foi bastante importante, pois desde que o bailado fora codificado, os acontecimentos políticos reflectiam-se directamente nos palcos franceses, influenciando, a partir daí, os palcos do mundo inteiro. Desse modo, a capital gaulesa, desejosa talvez de esquecer os exageros da Revolução, entrou numa vertigem coreográfica onde todos dançavam, desde os fidalgos aos plebeus e, enquanto Napoleão Bonaparte (1769-1821) fazia abalar a Europa ao som estrepitoso da sua artilharia, não só se bailou freneticamente nas Tulherias como os próprios militares do imperador se serviram da dança para expurgar os excessos da guerra, como foi o caso de Jean-Andoche Junot (1771-1813), ao organizar memoráveis bailes em Lisboa22.

O início do século XX trouxe consigo as vanguardas históricas e com elas se assistiu ao fim da fórmula académica, ainda que resistissem alguns exemplos, como é o caso dos bailados imperiais na Rússia czarista de Marius Petipa (1818-1910) e de onde

21 O bailado narra uma história comum, o desejo de uma viúva de ver a sua filha “bem casada” com um

pretendente rico. Porém, e no decorrer do drama, a primogénita apaixona-se por um jovem humilde, o que, à época, contribuiu para o seu enorme sucesso junto da massa popular saída da Revolução Francesa.

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saíram os Ballets Russes de Serge Diaghilev (1872-1929), a pintura dançada que inscreveria a arte de Terpsícore numa estética distinta, tornando-a numa arte autónoma.

Paralelamente, e nas primeiras duas décadas do século XX, os elementos inovadores que as danças de Loïe Fuller23, Isadora Duncan24 e Ruth St. Denis25 trouxeram

aos palcos euro-americanos, ajudaram a diversificar a forma e o conteúdo de uma dança que se afastara do distante do bailado clássico, abraçando o novo tempo.

Há ainda a acrescentar que o aparecimento da dança moderna americana, a par da divulgação das danças nacionais dos regimes totalitários e das culturas emergentes do mundo oriental e africano, favoreceram uma multiplicidade de inspirações que se reflectiram na dança, fazendo com que se transformasse num barómetro das sociedades onde se inscreveu.

No final do milénio, as certezas e os dogmas da dança teatral vacilaram, retrocederam e progrediram a ritmos diferentes, ainda que se mostre uma arte de difícil investigação, devido à sua natureza volátil e ao seu carácter efémero; não existem mecanismos que a reproduzam tal e qual é mostrada, não há nenhuma notação universal; apesar das peças coreográficas poderem ser gravadas em vídeo, perde-se a perspectiva do palco, a consciência do movimento desenhado, e isso significa que, de certo modo, e uma vez abandonado o palco, a forma e conteúdo intrínseco, a essência, evanescente, se evapora para sempre.

Porém, no estudo proposto interessa averiguar se poderá a dança, como arte não- verbal, expressar efectivamente opiniões políticas em plena época contemporânea.

23 Loïe Fuller (1862-1928), bailarina americana que veio para a Europa, tendo as suas criações reflectido

as mais recentes pesquisas científicas do seu tempo, nomeadamente no que concerne à luz e à óptica. O corpo da bailarina era o suporte sob o qual longos fatos com estruturas de madeira reflectiam a luminosidade, sendo o motor da sua criação coreográfica. A combinação desses elementos contribuiu para criar uma nova mensagem visual da dança e a relação por si construída entre o corpo e o espaço serviu depois de modelo e de referência a algumas das vanguardas do século XX.

24 Isadora Duncan (1877-1927), bailarina americana precursora da dança moderna, Duncan rejeitou todo o

academismo do bailado clássico, procurando inspiração nos movimentos improvisados e livres, retirados aos movimentos da natureza. A sua proposta foi reconhecida e bem-sucedida na Europa, quer por artistas, quer por intelectuais. Duncan utilizou nas suas criações músicas que jamais haviam sido aproveitadas para a dança, tais como peças de Frédéric Chopin (1810-1849) e Richard Wagner (1813-1883), e, apesar de não ter tido a preocupação em teorizar e sistematizar o seu trabalho, a artista usufruiu de um reputado reconhecimento internacional, que lhe permitiu abrir diversas escolas na Alemanha e na Rússia.

25 Ruth St. Denis (1879-1968), bailarina igualmente americana, St. Denis viu Fuller e Duncan e desenvolveu

um tipo de dança em que procurou inspiração, não na luz nem na natureza – como as suas congéneres – mas sim numa aproximação às culturas orientais. A sua extensa carreira permitiu-lhe criar uma abordagem à temática do movimento, marcadamente de influência exotico-oriental, dominando toda uma geração de bailarinos saídos da escola que fundou juntamente com Ted Shawn (1891-1972): a Denishawn.

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Preocupações de género e raça, bem como posições políticas têm vindo a ser abordadas com insistência ao longo do último século, por bailarinos e coreógrafos. Muitos deles modificaram o propósito meramente estético da sua arte, para lhe incutir um cunho marcadamente intervencionista e político, quer de alinhamento quer de contestação.

Houve quem defendesse, numa óptica de certa forma redutora, que “não há dança num regime totalitário”26; mas esta ideia parece bastante limitativa, uma vez que remete

para a quase absoluta impossibilidade artística num regime ditatorial, por quanto não subsiste independência criativa diante do seu governo. Ora isto não é de todo verdade, como se verá no desenvolvimento desta investigação, de que são exemplos muitas das danças de Rudolf Laban (1879-1958) ou de Mary Wigman (1886-1973) na Alemanha nazi. Assim, e baseado na concepção de que a dança “não se reduz a uma entidade estética uma vez que incorpora e expressa valores, envolve-se e relaciona-se com práticas políticas”27, bailarinos, coreógrafos, atletas, ginastas e grupos folclóricos, constituíram

veículos a favor ou contra os regimes que integraram, apresentando-se como artistas empenhados num ideal e que, usando a sua arte, intervieram na sociedade do seu tempo. Desde cedo que a interacção entre a dança e a política se mostrou uma aliança profícua, e foi, sem dúvida, por induzir a uma “leitura” do mundo, que se tornou num emblema ditatorial. Fingida ou real, ela foi a força motriz que catapultou os grandes encontros de massas para o êxito, não somente pela apresentação de centenas de bailarinos movimentando-se em uníssono, mas ainda pela própria linguagem corporal usada por cada um dos líderes nos seus discursos, também ela ensaiada de forma a criar um maior efeito visual. Como Randy Martin escreveu, “a dança não pode, por si só, provocar mudanças sociais (…) mas ela pode exprimir valores de carácter político”28 que

influenciem o pensamento da plateia que lhe assiste e isso explica e justifica a sua utilização como veículo de propaganda.

Numa leitura complementar, o antropólogo Miguel Vale de Almeida afirma que “não existe propriamente algo a que se possa chamar ´a política do corpo` no sentido activo de fazer política sobre/para/do corpo. Existem sim possibilidades de analisar o

26 Jean-Marc Adolphe, “Un fragile qui résiste”, Dossier Danse et Politique, N. º 30, hiver 1997, p. 29 27 Maria José Fazenda, Elementos para uma reflexão antropológica sobre a dança, FCSH, UNL, Lisboa,

1991, p. 194

28 Randy Martin, Critical Moves, Dance Studies in Theory and Politics, Duke University Press, London,

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político no sentido lato através da definição, manipulação, controlo e revoltas do(s) corpo(s)”29. Esta asserção não invalida que se tenham criado ao longo dos tempos

mecanismos que regulem ou proíbam determinadas práticas coreográficas, justificando- se tais medidas por impedirem acções “politicamente ameaçadoras”. Foi o caso dos impérios coloniais e da actividade missionária que haviam já, séculos antes, levado a cabo, a partir da metrópole, proibições de apresentações de danças indígenas, não só pela sua natureza pagã ou imoral mas principalmente por representarem um perigoso incitamento à rebelião ou a uma resistência política, uma vez que eram formas de treino e de preparação física para a guerra. E não se pense que este receio pertence ao passado: mesmo nos regimes democratico-liberais da sociedade global do século XXI, a dança continua a seduzir o poder político, pois a força da sua expressão simbolico-teatral pode orientar o pensamento do espectador.

Desde sempre os artistas olharam o mundo, criando propostas de acordo com as suas próprias experiências da realidade política e artística. É a partir daqui que todo um conjunto de questões se abre, apontando direcções de múltiplos significados. Na secular relação da dança com o poder político, vários rostos surgiram conforme os modelos politico-narrativos se foram construindo, e o modo como as peças coreográficas desempenharam esse papel – quaisquer que sejam as intenções que lhes presidiram –, é determinado pelo posicionamento dos artistas face à sociedade onde se inserem. A partir dos modelos contemporâneos podemos pensar as suas intervenções artistico-políticas, numa eterna dicotomia entre a autonomia da arte ou uma arte engagé com o poder político. É desse universo que tratarão os capítulos seguintes.

29 Miguel Vale de Almeida, “O manifesto do corpo”, Manifesto, 5, pp-17-35, 2004 citado por Maria José

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