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2. Ballets Russes: eixo e modelo

2.4. Ecos em Portugal

Quanto a Portugal, o cenário cultural-artístico encontrava-se a anos-luz do que se passava na Europa, uma vez que as forças que se destacavam na arte europeia só tardiamente ecoariam nos palcos lusitanos.

Não é, pois, de estranhar, que em Agosto de 1913 os Ballets Russes tenham passado por Portugal e pela Madeira, a caminho da primeira digressão transatlântica da companhia, pela América do Sul93, sem que ninguém a isso se referisse. No paquete Avon,

a trupe fez uma escala em Lisboa e outra no Funchal, mas dessa passagem apenas restam os testemunhos de Romola Nijinsky (1894-1978)94 e de Bronislava Nijinska95, que

narram as visitas a Sintra e à ilha madeirense, respectivamente. Nenhum jornal nacional registou a ocorrência e não se sabe quem os terá recebido nas visitas que efectuaram.

No território nacional, os pálidos reflexos das movimentações das vanguardas europeias foram sentidos, sobretudo, à custa do esforço de um grupo de artistas que havia formado o Orpheu e a Portugal Futurista. Se tiveram, grosso modo, a sua vigência na cultura europeia no período entre as Grandes Guerras, “apenas o Futurismo foi entre nós vanguarda”96 e, de todas as intervenções do grupo futurista, seria a de Almada Negreiros

(1893-1970) a que mais inflectiria no bailado, como comprova a sua produção pictórica e coreográfica da altura.

Para se compreender o interesse de Almada pela dança e pelos Ballets Russes, é necessário referir a amizade e protecção de Helena de Vasconcellos e Sousa97,

“espectadora assídua dos Ballets Russes nas suas prolongadas estadas em Paris”98.

Organizando frequentes festas na sua residência do Palácio da Rosa, em Lisboa, estas contaram com a participação de um grupo de amadores lisboetas que apresentavam

93 Foi nesta viagem, que Nijinsky se casou com Romola de Pulszky (1894-1978), em Buenos Aires,

provocando a consequente ruptura e despedimento por parte de Diaghilev.

94 Romola Nijinsky, Nijinsky, Livr. José Olympo, Rio Janeiro, 1940, pp.183-185 95 Bronislava Nijinska, Early Memoirs, Duke University Press, USA, 1992, p. 478

96 Osvaldo Manuel Silvestre, A vanguarda na literatura portuguesa – O Futurismo, Faculdade de Letras

da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1990, p. 109

97 De nome completo Helena Maria do Santíssimo Sacramento da Silveira de Vasconcellos e Sousa (1886-

1968), condessa de Castelo Melhor.

98 Vítor Pavão dos Santos, O escaparate de todas as artes ou Gil Vicente visto por Almada Negreiros,

Exposição Comemorativa do Centenário do Nascimento de Almada Negreiros, Museu Nacional do Teatro, Secretaria de Estado da Cultura, Lisboa, 1993, p. 10

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apontamentos de dança: a 6 de Abril de 1915, Almada teria dançado o primeiro de alguns bailados por si criados99 e, no ano seguinte, apresentaria, a 7 de Março de 1916, o

programa O Sonho da Princesa na Rosa, numa “Festa Elegante”100 aos quais se

seguiriam a Lenda d´Ines101.

A atenção de Almada Negreiros, face à dança, tinha vindo igualmente a ser sustentada não só pela informação recolhida nos relatos dos seus amigos, regressados de Paris e Berlim (Amadeo, Santa-Rita, Eduardo Viana, Rui Coelho e Raul Lino), e pelas críticas saídas em publicações estrangeiras – nomeadamente na Comœdie Illustré102 – que

Almada lera entretanto. Completando este cenário, a correspondência trocada com Sonia (1885-1979) e Robert Delaunay103 aumentara-lhe o interesse pela vinda dos russos. Numa

entrevista concedida ao Diário de Lisboa, Almada explicou que se inflamou de tal maneira com a vinda da companhia russa a Lisboa, anunciada nos jornais a 13 de Outubro de 1917, que, no dia seguinte, escreveu um “Manifesto” – Os Bailados Russos em Lisboa

– que diz ter sido mais tarde elogiado pelo próprio Diaghilev104. Segundo Almada, o texto

foi apenso ao primeiro e único número da revista Portugal Futurista105, apresentando-se

como uma declaração pública que exprimia uma atitude e uma posição política e, principalmente, estetico-cultural. Nas suas palavras, a trupe de Diaghilev “é uma das mais belas étapes da civilização da Europa moderna que está na nossa terra!”106 e é interessante

referir pouco depois da datação do seu “Manifesto” (14 de Outubro de 1917), se tenha dado, na Rússia dos Ballets Russes, a Revolução de Outubro107, e que o próprio Almada,

que, obviamente sem saber dela, tenha publicado na mesma data do seu “Manifesto” um

99 Supõe-se ter sido O Sonho da Rosa. Ver Vítor Pavão dos Santos, Obra Cit., p. 11 100 Título do artigo saído na Ilustração Portuguesa de 3.4.1916, p. 444

101 Anunciada pelo próprio Almada Negreiros numa nota apensa aos Bailados Russos em Lisboa e cuja

leitura teve lugar no Palácio da Anadia no final de 1916, preparando-se a execução para o Inverno de 1917. Ver José de Almada Negreiros, Manifestos e Conferências, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p. 38

102 Publicação fundada por Maurice de Brunhoff (1861-1937) em 1909, ano de estreia dos Ballets Russes

em Paris.

103 O casal Delaunay reataria amizade com os artistas portugueses que havia conhecido na capital francesa,

Amadeo e Eduardo Viana, conhecendo, através destes, outros artistas (José Pacheco e Almada Negreiros) com quem trocaram ideias e projectos. Sobre o assunto ver Sonia e Robert Delaunay em Portugal e os seus

amigos Eduardo Viana, Amadeo de Souza-Cardoso, José Pacheco, Almada Negreiros, Fundação Calouste

Gulbenkian, Lisboa, 1972 e Paulo Ferreira, Correspondance de quatre artistes portugais: Almada-

Negreiros, José Pacheco, Souza-Cardoso, Eduardo Vianna avec Robert et Sonia Delaunay, Presses Universitaires de France, Paris, 1981

104 Ver José de Almada Negreiros, “Almada responde à carta de Rui Coelho”, Diário de Lisboa de

27.5.1925

105 Apreendido pela polícia de Afonso Costa em Novembro de 1917 106 Almada Negreiros, Manifestos e Conferências, Obra Cit., p. 36

107 Segundo o calendário juliano em vigor na Rússia. Para o calendário ocidental corresponde o mês de

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artigo na Ilustração Portuguesa, intitulado As Tempestades de Guerra108. Nele celebrava

a própria acção de guerra e, em especial, o “Novo Homem” que iria sair dela, fazendo renascer um forte sentimento de fervor patriótico. Esta “coincidência” não é, pois, extemporânea, bem pelo contrário: ela revela uma sintonia ideológica com o Futurismo de Marinetti – que via na guerra uma espécie de purga dos males da sociedade – e manifesta a realidade vivida em Portugal com a recente entrada na Primeira Guerra Mundial, um ano antes109.

Nos cabeçalhos dos jornais nacionais figuravam as acções dos Aliados, o dia-a- dia na frente de batalha, a viagem presidencial de Bernardino Machado (1851-1944) à Europa, as aparições de Fátima (13 Outubro) e a sopa dos pobres. E era nesse Portugal fragilizado, que começavam a tomar forma, e que desembocaria pouco depois o golpe de Sidónio Pais (1872-1918)110. Estas notícias partilhavam as páginas lado a lado com o

anúncio da vinda dos “Bailados Russos” a Lisboa e que começaram a circular a 13 de Outubro de 1917: República, Vanguarda, Diário Nacional, Dia, Portugal, Lucta, O

Século, Manhã, Liberal e Diário de Noticias publicavam entusiásticas linhas da chegada da companhia à capital.

Recebidos oito anos após a sua estreia parisiense, os seus principais elementos chegaram a Lisboa a 2 de Dezembro111, em vésperas do golpe militar, que os obrigou a

adiar o primeiro espectáculo para 13 de Dezembro. A temporada nacional que começara com grandes esperanças foi protelada devido à revolução sidonista; mas quando finalmente estreou, deu a conhecer ao público e à crítica lisboeta todo um universo artístico: um corpo de baile brilhante, cenários e figurinos de grande beleza e dimensão, que integravam bailados amplamente consagrados nos palcos europeus.

108 Ilustração Portuguesa de 15.10.1917, pp. 304-305

109A entrada oficial de Portugal na Primeira Guerra Mundial efectivou-se no dia 9 de Março de 1916, em

consequência da declaração de guerra da Alemanha a Portugal. Era uma resposta à requisição dos navios mercantes alemães, ancorados em portos portugueses desde que se iniciara o conflito, e requisitados pelo governo da República, que tinha preparado juridicamente o acto com a publicação dos decretos 2229 e 2236.

110 Golpe militar levado a cabo por Sidónio Pais a 5 de Dezembro de 1917, em Lisboa. A 9 de Dezembro,

a capital regressou à normalidade, nomeando-se uma junta revolucionária e decretando-se a prisão de Afonso Costa. No dia seguinte, 10 Dezembro, assistiu-se à dissolução do Congresso. A 12 de Dezembro dá-se a destituição do Presidente da República e a 16 Dezembro Bernardino Machado partiu para o exílio, em Paris.

111 Conforme jornais: Lucta, Portugal, Monarquia, O Século, República, Capital e Diário Nacional de

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O facto de a sua estreia ter acontecido no Coliseu dos Recreios indica as condições em que se vivia na Lisboa do final de 1917. Como refere o regisseur da companhia russa, Serge Grigoriev, “o teatro onde teríamos de actuar em Lisboa era enorme e parecia um circo. Chamava-se mesmo Coliseu dos Recreios. Diaghilev logo mostrou o seu desagrado por ser obrigado a apresentar o seu grupo naquele local, que detestou, mas não existia outra sala disponível, já que o antigo teatro real (S. Carlos) estava fechado”112. Se é

verdade que o local não se parecia o mais adequado, não é menos certo que a trupe conseguiu apresentar-se no S. Carlos; porém, o encerramento prolongado da sala lisboeta113 em nada contribuiu para melhorar a apresentação da companhia diaghileviana.

Também aí as condições se mostraram aquém das expectativas, como relata a bailarina Lydia Sokolova nas suas memórias: “O espaço encontrava-se tão sujo e degradado que quase arruinámos os nossos fatos e sapatilhas. Penso que essas actuações no Teatro Real tenham sido as piores que alguma vez demos: felizmente foram só duas”114. O próprio

Sidónio Pais assistiu ao espectáculo como dá conta o testemunho de Carlota de Serpa Pinto nas suas Cartas à prima, Crónicas de Lisboa: “Em São Carlos as senhoras ensaiavam timidamente os vestidos da noite, e entreviam-se entre os ombros nus. No primeiro intervalo, Sidónio Pais entrou no camarote real – o da direita. Na sala houve um frémito de curiosidade”115.

Quanto às reacções do público, houve uma recepção diferenciada consoante os autores dos textos; se alguns críticos destacaram a afluência à sala do Coliseu, outros ressaltaram a ausência de uma cultura balética nacional; outros ainda não se inibiram de culpabilizar a própria trupe de Diaghilev. Do grupo dos entusiastas da plateia lisboeta fizeram parte o jornalista que escreveu na Capital de 14 de Dezembro de 1917, onde se lia que “a enorme enchente no Coliseu (…) consagrou definitivamente em Lisboa a célebre companhia dos bailes russos” e a República do mesmo dia afirmava que “a estreia dos russos constituiu um grande êxito como há muito outro igual não se registava em Portugal”. Diferentes opiniões parecem ter tido outros jornalistas quanto ao que se viu no Coliseu, culpando o público pela falta de um reconhecimento à altura da trupe russa. Como escreveu João Neiva, no Liberal de 26 de Dezembro de 1917, “Lisboa, mal

112 S.L. Grigoriev, The Diaghilev Ballet 1909-1929, Penguin Books, Great Britain, 1960, pp. 142-143 113Desde 1910 havia reaberto apenas para algumas representações esporádicas.

114 Lydia Sokolova, Dancing for Diaghilev, the memoirs of Lydia Sokolova, The Lively Arts, London, 1960,

p. 116

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preparada, meio atarantada não entendeu os bailes russos. A falta de cultura artística indispensável ao apreço deste género de espectáculos, um grande frio pairava na sala (…). Entretanto a Lisboa elegante, a Lisboa que vive em francês, tinha tomado assinaturas e resistiu”. Também Armando Costa escreveria na Crítica de 31 Dezembro que “os bailados russos tiveram, entre nós, uma aceitação vulgar no grande público (…), mas exagerado seria querer que o grande público compreendesse e sentisse até, essa moderna e fenomenal maravilha de ouvir com os olhos”. O autor avançava ainda explicações que assentavam em certos condicionalismos de cultura e educação portuguesas que explicavam essas idiossincrasias. Numa vertente mais pessimista, alguns críticos extremaram as suas posições, culpabilizando a própria companhia russa pelo sucedido. Caetano Beirão escreveu no Monarquia de 2 de Janeiro de 1918: “O Coliseu encheu-se na primeira noite (…) mas que decepção! Tudo pesado, exótico, uniforme, sem originalidade e sem graça! Francamente os tais bailes russos eram uma borracheira! Houve piadas e o público desceu a escada furioso (…) e na segunda noite, o Coliseu, é claro, não tinha quase ninguém”. Certamente que as contingências da Guerra que assolava a Europa dificultavam a Diaghilev o estabelecimento de novos contratos, daí que tivesse aceitado trazer a sua companhia para uma capital onde as condições das salas e do público estavam longe do que o empresário se habituara pelo resto da Europa.

As reacções por parte da crítica, pouco especializada, também se mostraram longe da unanimidade, produzindo os mais díspares testemunhos. Uma entrevista realizada pela

República a Diaghilev, a 14 de Dezembro de 1917, não foi além de uma superficialidade jornalística, fruto do pouco fulgor informativo que pautava a maioria dos críticos nacionais. Foi essa a opinião de Rodrigues Alves, no artigo que escreveu para a Lucta, de 17 de Dezembro de 1917 e onde se podia ler: “O Sol da Noite é uma fantasia de manicómio, indescritivelmente caricatural. Espécie de ode futurista, concebida por farsantes e dançada por malucos (…) e nesta peça de baile o cenário não vale nada”. A ausência de uma crítica esclarecida foi evidenciada por João Neiva num artigo publicado no Liberal de 26 de Dezembro: “E pus-me a esperar que a crítica acorresse – explicita e ela veio. Andou pelas gazetas... mas reproduzindo na maioria a desilusão do bom lojista, meu vizinho da plateia”. Manuel de Sousa Pinto, um dos poucos críticos esclarecidos, publicou na revista Atlântida116 artigos sólidos sobre as apresentações de Lisboa,

116 Manuel de Sousa Pinto, Bailados Russos, Edição da “Atlântida”, Imprensa Libanio da Silva, Lisboa

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ilustrados com desenhos de Almada Negreiros117. A 31 de Dezembro, o mesmo autor

glorifica todo o universo diaghileviano (que lhe era familiar e que ele já conhecera de Paris), registando que, no público, “há quem entenda que o efeito produzido é o de ter havido ali um terramoto. Querem outros que a irregularidade do cenário reforce a impressão de teatro de fantoches que a viveza do bailado sugere às vezes. Seja como for, (…) temos de dominar a surpresa que à primeira vista provocam, para reconhecer, através do seu propositado exagero, o esforço reformador da companhia russa”. Subsistem outros depoimentos não menos incisivos. O pintor António Soares (1894-1978), nas suas impressões n´O Século, na edição da noite de 18 de Dezembro de 1917, escrevia nos seguintes moldes: “Os Bailados Russos são, para os artistas plásticos, grandes desenhos, cheios de expressão, de movimento e de cor, cuidadosamente postos na ordem de maravilhosa composição onde, a mais insignificante nota de cor, qualquer transparência luminosa é, sabiamente ponderada e, como nesta arte os recursos são numerosos, o que não se pode obter pintado, resolve-se, pondo lá um bailarino tão seguro dos seus movimentos como um pensador das suas ideias”.

As opiniões díspares entre a crítica e o público118, relativamente às apresentações

dos Ballets Russes, não esconderam a importância da sua vinda, ainda que devam ter influenciado a escolha do reportório apresentado em Lisboa. Diaghilev certamente soubera antever o tradicionalismo e a falta de preparação do público português, daí que tenha optado por exibir os bailados clássico-exóticos, excluindo as peças mais modernas, como Parade, estreada pouco antes, em Maio de 1917 em Paris, ou as peças revolucionárias coreografadas por Nijinsky como L'après-midi d'un faune (1912) e Le

Sacre du Printemps (1913). No reportório apresentado em Lisboa – Les Sylphides,

Shéhérazade, Le Spectre de la rose, Danses du Prince Igor, Soleil de Nuit, Le Carnaval, Thamar, Les Papillons, Sadko, Cléopâtre, Le donne di buon umore, Le Festin e Narcisse – reconhece-se uma escolha que prima por divulgar maioritariamente as suas obras clássicas e “orientalizantes”, reiterando a ideia que se queria fazer passar da trupe russa, que era a de uma companhia de bailado na melhor tradição da virtuosa Escola Imperial czarista. O reportório “classicizante”, prévia e confortavelmente aplaudido nos palcos da

117 Shéhérazade, Le Spectre de la rose, Le Carnaval, Soleil de Nuit.

118 Ver Maria João Castro, “Ballets Russes; a dança, o público e a crítica lisboeta”, Lisboa e os Ballets

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Europa, omitiu a ousadia das criações mais recentes, quer fossem elas coreografias mais arrojadas ou as composições musicais mais modernas.

O grupo, que tinha iniciado 1917 em plena actividade119, acabou por finalizar o

ano na incerteza da sua sobrevivência. O facto de encontrar sérias dificuldades de firmamento de contratos circunscrevia-a a um futuro vago nesse início de 1918. Nos três meses que permaneceram em Lisboa, os Ballets Russes não deixaram de ensaiar o seu reportório, apesar do pouco proveito que daí retiraram, como relata Lydia Sokolova (1896-1974): “Os ensaios eram uma ilusão, uma vez que Massine tinha partido com Diaghilev, não se apresentando nada de novo para aprendermos (...) mas o nosso tempo não foi de todo perdido, pois aproveitámos para aprofundar conhecimentos de dança espanhola com Félix”120.

Sem dinheiro e sem saber o seu futuro, o grupo sobreviveu em Lisboa, pouco se sabendo o que fez ou com quem conviveram os bailarinos russos. Resta o depoimento de Raul Lino (1879-1974) que os terá recebido em sua casa: “O meu interesse pelos espectáculos teatrais e baléticos acresceu por essa época com a revelação do Bailado Russo do Diaghilev no teatro do Ocidente em Berlim. (…) Mais tarde, quando a companhia veio a Lisboa, organizámos em nosso modesto terceiro andar uma demonstração de bailaricos portugueses e uma pequena exposição de trajos populares, numa tarde dedicada a Massine, à Lopukova e a outras figuras do Bailado Russo. Isso deu então bastante escândalo em Lisboa e foi tido como grande atrevimento nosso, pelos bons burgueses da cidade! Essas mesmas figuras hoje seriam aqui recebidas pelos próceres mais ricos, apenas“121.

A situação precária da trupe foi referida por alguns bailarinos que acharam a sua temporada em Lisboa “um fiasco”122 e os espectáculos “os piores apresentados numa

capital”123, não se falando deste período “sem tristeza, naquela que foi um das épocas

119 Tinham começado o ano em Itália, para depois estrearem a nova temporada em Paris, seguindo-se a

digressão pela América e por fim alguns espectáculos entre Madrid e Barcelona.

120 Lydia Sokolova, Obra Cit., p. 116

121 Sobre o assunto ver Catálogo de Raul Lino, Exposição Retrospectiva, Fundação Calouste Gulbenkian,

Lisboa, 1970, p. 11. Em 1918, Raul Lino colaboraria, como arquitecto de cena, nos bailados de Helena de Castelo Melhor, no S. Carlos, juntamente com Almada Negreiros, José Pacheco (1885-1934), Rui Coelho (1889-1986), Reis Santos (1898-1967) e Cottinelli Telmo (1897-1948).

122 Léonide Massine, My Life in Ballet, Macmillan, London, 1968, p. 122 123 Richard Buckle, Diaghilev, Atheneum, New York, 1984, p. 341

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mais desastrosas da vida da companhia”124 mas fora o contrato possível numa Europa em

Guerra e que lhes permitiu assegurar, ainda que temporariamente, a sua sobrevivência. A 28 de Março os Ballets Russes deixaram finalmente Lisboa125, seguindo a

caminho de Espanha, onde Diaghilev arranjara mais uma digressão. Para trás deixaram três dos mais difíceis e infrutíferos meses da sua existência e só Lydia Sokolova regressaria poucos meses depois para buscar a sua filha126. No livro de Richard Buckle In

Search of Diaghilev, o autor publica uma carta de Diaghilev onde o director fala da hipótese de um regresso a Portugal, mas isso nunca viria a efectivar-se127.

Depois da partida de Portugal e do regresso a Espanha, os Ballets Russes estabeleceram-se em Londres, e, em Novembro de 1918, com o armistício que colocou fim à Primeira Guerra Mundial, a trupe de Diaghilev relançar-se-ia de novo nos palcos europeus e americanos com o sucesso obtido no passado.

Da estada em Portugal, não houve tempo nem condições para que Diaghilev e Massine conhecessem o folclore português de modo a poderem criar bailados de inspiração nacional, como acontecera em Espanha. No país vizinho, Diaghilev e Massine juntaram-se aos artistas nacionais (nomeadamente a Manuel de Falla e a Picasso) e com eles encetaram uma colaboração proveitosa, da qual resultaram bailados únicos, de vertente marcadamente hispânica, como é o caso de Las Meninas (1916), O Le Tricorne (1919) e Cuadro Flamenco (1921). Como já Diaghilev havia feito na sua Rússia natal, onde retirara do folclore russo a matéria para as suas primeiras criações baléticas, o director da trupe russa não podia deixar de se sentir tentado a continuar essa experiência, inspirando-se, desta vez, no que tinha ao seu dispor: Espanha. Na leitura de Vicente García-Márquez, “não se tratava de copiar directamente o folclore mas sim de utilizá-lo como trampolim”128, ainda que a ausência de uma inspiração efectiva no folclore

português se tenha devido sobretudo à época da estada da companhia em solo nacional,

124 Serge Lifar, Serge de Diaghilev, sa vie, son œuvre, sa légende, Editions du Rocher, Monaco, 1954, p.