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3. A dança nacionalista e a sedução das massas 1 O bailado vermelho da U.R.S.S.

3.5. O pavilhão francês das Danças Populares da Europa

3.5. O pavilhão francês das Danças Populares da Europa

Como se viu até aqui, a Europa dos anos 30 era uma Europa profundamente nacionalista, que procurava, nas raízes ancestrais, uma identidade que lhe permitisse afirmar-se enquanto cultura identitária agregadora de um ideal comum e é segundo esse ângulo que se podem entender os acontecimentos franceses de 1937.

Foi numa França não totalitária que decorreu um dos mais importantes eventos culturais da década de 1930: a Exposição Internacional de Paris de 1937. Lugar onde se expressou o progresso técnico mas, acima de tudo, o poder de cada nação, a Exposição de 1937 foi o palco do face-a-face dos pavilhões da Alemanha e da U.R.S.S., confrontando-se numa demonstração de força do seu regime e da sua ideologia. Através da sua arquitectura colossal – pretensa metáfora do poder de cada um dos regimes – impôs-se uma imagem totalitária que foi complementada e reforçada por um programa de actividades de propaganda278.

Quanto ao discurso do pavilhão francês, este assentava na solidariedade nacional reinventada na tradição, no sentido em que se destacava o seu “centro regional”, reactualizando a arquitectura das províncias francesas, numa expressão de ideal colectivo. É dentro desse registo que se percebe o Pavilhão das Danças Populares da Europa, no qual se exibiu a exposição “Les vieilles danses de France”, anteriormente organizada (finais de 1935 e início de 1936) pelos Archives Internationales de la Danse (AID). A mostra reunia gravuras, fotografias, figurinos regionais, partituras musicais e coreográficas, tendo como objectivo cartografar os registos folclóricos das províncias de França, “dando conta da sua regressão ou mesmo desaparecimento”279, mostrando uma

preocupação crescente pela progressiva perda da memória das danças regionais. Como observou Inge Baxmann, “os mais de quinhentos artigos na imprensa nacional e internacional atestaram que os AID haviam tocado no tema do momento”280, tendo sido

considerados como um elemento preponderante na estruturação de uma identidade

278 Importa salientar que a França, face ao gigantismo da arte fascista e soviética, procurou destacar-se

através de um programa de arte colectiva subsidiária da arte moderna defendida pela Frente Popular.

279 Jacqueline Christophe, (Coord.), Du Folklore à l'ethnologie, Éditions de la Maison des sciences de

l´homme, Paris, 2009, p. 106

280 Inge Baxmann (Dir.), Les Archives Internationales de la Danse 1931-1952, Centre National de la Danse,

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nacional que se associava à consolidação de uma imagem, sedimentada pelo novo estilo de vida de entre Guerras.

Podemos mesmo considerar esta exposição como a primeira etapa de um projecto mais vasto que incluía a criação de uma instituição museográfica dedicada ao folclore, lançando o repto para a criação de uma estrutura vocacionada para a dança popular: o Museu de Artes e Tradições Populares, que inauguraria ainda no ano de 1937.

Curiosamente, esta exposição teve lugar dois anos antes de, em 1939, na U.R.S.S., o partido ter estabelecido o Comité da União Soviética para as Questões Artísticas, que regulava as produções da dança teatral, valorizando as danças regionais e folclóricas de cada província, mostrando que as preocupações de representação nacional através do folclore abrangiam tanto os regimes totalitários como os governos europeus não ditatoriais.

Inserida na temática da exposição “Arte e Técnica”, mostrou-se em Paris o panorama do progresso e a herança nacional enriquecida pelo folclore, exibindo-se as características étnicas e raciais de cada região, e promovendo uma forte identidade de forte cunho nacionalista. Diversas nações europeias e sul-americanas tinham as suas próprias secções e muitas colónias francesas (do Levante ao Norte de África e à África Negra, passando pela Indochina) exibiram documentos e apresentaram espectáculos, sob a direcção do ministro das Colónias. Não é por isso de estranhar que o pavilhão tivesse um grande sucesso junto do público, ajudando a promover a ideia da necessidade da criação de um museu de raízes populares, e que seria mais tarde copiada por alguns países do Velho Continente.

Segundo os promotores da exposição, a “redescoberta” do folclore e a emergência de um fascínio pelo exótico e pelas culturas primitivas mostravam até que ponto o “espírito moderno” da Europa do final da década de 1930 necessitava de reavivar as suas raízes populares, como forma de expressão autêntica, como dá conta o testemunho de Serge Lifar, maître de ballet do Teatro Nacional da Ópera e antigo bailarino dos Ballets Russes, quando visitou a exposição:

O século XIX com as suas vias férreas e o seu desenvolvimento urbano desferiu um golpe mortal no folclore. Uma corrente moderna precipitou-se sobre tudo

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o que era antigo (…) e o fruto dos séculos de um museu vivo – o folclore – foi votado a uma morte certa e irremediável281.

O fascínio pelo folclore que transparece na interpretação de Lifar é representativo de um certo sentimento nostálgico da sociedade francesa das primeiras décadas do século XX. As tradições populares eram invocadas como portadoras dos fundamentos comunitários que faltavam no mundo moderno, qual antídoto à uniformização da sociedade industrial. Esta paixão pelo folclore foi acompanhada pelo desenvolvimento de movimentos regionais, bem como do turismo, de entre um conjunto de acções que pretendiam revitalizar o património cultural específico de cada nação.

Mise-en-scène das tradições locais, o folclore respondia à exigência de um público que desejava ser testemunha dos modos de vida rurais e é neste contexto que se pode enquadrar o sucesso do Pavilhão das Danças Populares da Europa: inaugurado a 15 de Abril de 1937, dentro do espírito da Exposição de “Artes e Técnicas de Paris”, exibiu variados objectos e documentação reagrupados em duas secções distintas: a de arte e a de técnica. Na primeira, exibiam-se peças de arte populares, maquetas e mais de quatrocentas bonecas em posturas de danças regionais; na segunda, mostrava-se documentação fotográfica, iconográfica e mapas relativos aos centros de danças folclóricas da Europa. As duas partes da exposição apresentavam uma história regional, que servia a necessidade emergente da utilização de uma heterogeneidade das fontes coreográficas, que foram aproveitadas consoante as necessidades dos discursos nacionalistas de uma Europa às portas da Guerra.

Ainda no quadro da Exposição Internacional de Paris, ocorreu o I Congresso Internacional de Folclore282, que reuniu etnólogos e “folcloristas do antigo e do novo

mundo”, como se transcreveu da alocução de George-Henri Rivière (1897-1985), secretário-geral do Congresso283. Numerosas delegações europeias, do México, E.U.A.,

Brasil entre outras, afluíram ao evento com o propósito de “redefinir o popular e de dar vida ao colectivo”284, já que “se assistia a uma unificação dos povos operada a uma

281 Serge Lifar, “Le Folklore dansé”, Les Nouvelles Littéraires de 25.1.1936, citado por Inge Baxmann,

Obra Cit., pp. 130-131

282 O Congresso teve lugar entre 23 a 28 de Agosto de 1937. Ver Inge Baxmann, Obra Cit., p. 149 283 George-Henri Rivière, “Travaux du 1er Congrés International de Folklore”, Arrault et Cie, Tours, 1938,

p. 3, citado por Inge Baxmann, Obra Cit., p. 149

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velocidade vertiginosa (…), que tendia a fazer desaparecer todas as diferenças e singularidades de cada povo”285.

Não por acaso, os alemães formaram a maior delegação presente no congresso. Adolf Helbok (1883-1968), o seu comissário e editor do Atlas do Folclore Alemão, foi convidado a apresentar os objectivos dessa investigação. Tais trabalhos tinham sido encorajados pela política cultural nacional-socialista, apesar dos seus propósitos terem sido formulados com alguma ambiguidade. Como visto anteriormente, Fritz Böhme e outros investigadores haviam já mostrado a sua atracção pelas características étnicas e raciais, como fonte da criatividade folclórica nacional.

O congresso mostrou, acima de tudo, até que ponto as tentações políticas de encenar as tradições etnográficas de cada povo haviam reconfigurado uma nova realidade: a da “folclorização” ao serviço da ideologia. Contudo, a mais-valia do encontro assentou, não na elaboração de algumas “ficções nacionais”286, que restabeleceram um folclore que

servia às ditaduras europeias, mas, acima de tudo, no desenvolvimento de novos vocábulos como “autenticidade”, “pureza” e “tradição folclórica”, abundantemente usados nos discursos nacionalistas da Europa das ditaduras.

A par da dança nacionalista dos regimes totalitários europeus, alguns artistas “não- alinhados”, com as políticas para as artes das ditaduras, fizeram questão de criar obras que expressassem a sua revolta perante as visões unilaterais dos partidos únicos, a maior parte das quais vindas do outro lado do Atlântico.

285 Paul Rivet “Travaux du 1er Congrés International de Folklore”, Arrault et Cie, Tours, 1938, p. 26, citado

por Inge Baxmann, Obra Cit., p. 149

286 Porque muitas vezes não se foi buscar o folclore tradicional; antes foi esse folclore reinventado, para

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4. Contradanças: a dança como “revolta”