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3. A dança nacionalista e a sedução das massas 1 O bailado vermelho da U.R.S.S.

3.2. A Itália fascista da Opera Nazionale Balilla

À semelhança da ditadura bolchevista, a Itália fascista usou as práticas físicas de forma a criar o novo tipo de cidadão que reabilitasse a imagem do país após o final da Primeira Guerra Mundial.

Durante duas décadas, Mussolini lideraria a Itália fascista, apontando na direcção de um destino nacional que só se extinguiria com o final da Segunda Guerra Mundial209.

O Duce definiria, com alguma solidez, uma política cultural para as artes, considerando a política como a arte máxima, segundo referiu durante a Mostra della Rivoluzione Fascista: “A política é a arte suprema, a arte das artes, porque trabalha sobre o material mais difícil: o homem”210. Porém, tal não significou que descurasse a produção cultural:

longe de ser marginal no seio do fascismo italiano, a cultura mostrou ser a expressão ideal vinculativa, através da qual esse próprio poder se justificou, tendo a ditadura de Mussolini desenvolvido um sistema eclético e complexo de patronato artístico. Através de um vasto programa de exposições, concursos, comissões e aquisições, um extenso desígnio artístico aglutinou numerosos artistas e um público que redesenharia a nova cultura nacional. Na realidade, o período fascista italiano registou uma associação entre Estado e Arte, que permitiu um reconhecimento e uma legitimação desta sob a tutela oficial, tendo Mussolini desempenhado um papel preponderante na forma como o poder e as artes se relacionaram dentro do fascismo. Na análise de Emily Braun, “ele foi sensível à necessidade premente de reforçar as questões políticas de um sofisticado discurso estético, e astuto o suficiente para reconhecer a função privilegiada da autonomia criativa e a importância do papel do artista na formação da nova Itália fascista”211.

Deste modo, o seu regime definiu uma política cultural baseada numa série de controlos administrativos, destinados a desencorajar a oposição graças a um compromisso entre coação e tolerância. Isto traduziu-se, por parte do governo, num consentimento que autorizava os artistas a trabalharem sem censura directa, desde que não se mostrassem explicitamente anti-fascistas. Com esta combinação e com um sistema arquitectado em diferentes níveis de incentivo, flexibilidade e coação, a ditadura italiana foi vista, aos

209 Sobre o assunto ver Robert O. Paxton, The Anatomy of Fascism, Penguin Books, London, 2004 210 Citado por Umberto Silva, Arte e ideologia, del fascismo, Cosmos, Valência, 1975, p. 216

211 Emily Braun, Mario Sironi, Arte e politica in Italia sotto il fascismo, Bollati Boringhieri, Torino, 2003,

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olhos dos criadores e aos olhos do público, como um patrão em busca de reconhecimento e, consequentemente, como um promotor nacional de cultura212.

Nos anos 30, a política de reforço das grandes instituições expositivas (Bienal de Veneza, Trienal de Milão) integraram-se dentro de uma política que recorreu às grandes mostras celebrativas, que estimulavam o encontro entre o grande público e o trabalho dos artistas, permitindo ainda adquirir uma certa notoriedade internacional. Promovendo o trabalho criativo de acordo com a cultura de propaganda do regime, “a arte fascista, como arte social era atenta à recuperação da tradição mas de uma forma capaz de interpretar uma nova realidade”213. Numa confluência de interesses, alguns dos artistas “alinhados”

foram particularmente relevantes como Gabriele d’Annunzio (1863-1938), Luigi Pirandello (1867-1936), Mario Sironi (1885-1961) e, principalmente, Tommaso Marinetti (1876-1944), pelo que vale a pena debruçarmo-nos sobre a política cultural dos modernos futuristas italianos, de que Marinetti foi o principal animador.

Os futuristas acreditavam na missão regenerativa de uma arte capaz de redefinir todos os aspectos da vida, logo, da política. Exaltavam o nacionalismo e o imperialismo, e professavam as mais radicais reformas sociais no âmbito do valor colectivo da nação. O futurismo de Marinetti reclamava a liderança de uma revolução cultural capaz de moldar os italianos modernos. O exemplo singular dos futuristas em relação às artes foi determinante para que se possa apreender, a posteriori, a linha seguida pelo Duce. Como sublinhou Leonetta Bentivoglio, “a pesquisa futurista no campo da dança facilmente se colou ao grande debate europeu que no início do século XX colocou em discussão não só a estética do bailado romântico (com o advento de Isadora Duncan), mas também à linguagem convencional e absoluta da dança académica”214. O Manifesto da Dança

Futurista de Marinetti, publicado em 1917, começa por criticar Diaghilev, Duncan e Emile Jaques-Dalcroze (1865-1950) e mesmo a futurista Valentine de Saint-Point (1875- 1953)215, exaltando apenas a “mecanicidade” de Loïe Fuller. Com a emergência da

212 Ver Matthew Affron, Mark Antliff, Fascist visions: art and ideology in France and Italy, Princeton

University Press, New Jersey, 1997

213 Vittorio Fagone, “Arte politica e propaganda”, Annitrenta, Arte e Cultura in Italia, Comune di Milano,

Mazzotta, Milano, 1983, p. 44

214 Leonetta Bentivoglio, “Danza e futurismo in Italia: 1913-1933”, La Danza Italiana, Vol. 1, Autunno

1984, Edizioni Theoria, Roma, 1984, p. 61

215 Poetisa, romancista, teórica da dança e teatro, modelo e musa de Rodin, Valentine de Saint-Point foi

uma das raras figuras femininas do futurismo francês. Autora do Manifesto da Luxúria (1913), publicado no Portugal Futurista, apresentou nesse mesmo ano, a sua Métachorie, novo género de expressão corporal, concebida como um jogo rítmico, inscrito no espaço segundo um tema geométrico. A sua concepção de autonomia da música e da dança encontraria eco anos depois com Mary Wigman, Merce Cunningham

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máquina/motor e a consequente automatização das técnicas produtivas, os futuristas apostavam num estatuto da representação do corpo na arte, como uma essência mecânica que os assemelhava ao movimento de corpos-máquina. Se a dança preconizada por Marinetti no seu texto aponta para a acuidade da vida moderna, reprodutora do movimento mecânico através da possibilidade muscular, e exibida através de um corpo ideal, esta só encontrará verdadeira expressão na bailarina Giannina Censi (1913- 1995)216. Insatisfeita com a dança clássica, Censi decidira dedicar-se à composição

coreográfica, efectuando várias experiências, das quais Oppio e Grottesco, de 1930, pode ser considerada a sua primeira dança futurista. Seguiu-se Sinfonia Aerea, de 1931, altura em que a italiana se torna na bailarina preferida de Marinetti. Ainda do mesmo ano, La

Danza dell´aviatrice – elogiada pelo próprio Marinetti – mostra a bailarina dançar

descalça e sem suporte musical. Mas seria Aerodanza e Simultanina, ambas de 1931 (e a última com texto do próprio Marinetti), que expressariam a concepção da dança caracterizada nos escritos do pai do futurismo. Giannina Censi usaria então todo um vocabulário autónomo de movimentos geométricos em que o dinamismo sintético era dado pela forma angulosa e concentrada que ocupava a acção total do corpo, levando Leonetta Bentivoglio a referir que em Simultanina, “Censi apresentou uma linguagem contemporânea que passou para a dança com uma nitidez prodigiosa”217.

Giannina Censi continuaria a ser protagonista de diversas coreografias futuristas, exibindo os pés descalços, uma expressividade própria em cada parte do corpo, a linha directa do movimento, numa dança sem música e onde o ritmo era marcado pela palavra. Porém, a tradição conservadora da sociedade italiana não conseguia digerir tais extravagâncias; antes pelo contrário, achava-as perturbadoras e capazes de corromper os bons costumes de toda uma geração, e, talvez por isso, a dança futurista de Censi tenha constituído apenas um caso isolado na história da dança italiana.

Também os Ballets Russes foram atraídos pelo futurismo de Marinetti, pelo que, em 1916, Diaghilev encomendou a Fortunato Depero (1892-1960) cenário, figurinos e

(1919-2009) e John Cage (1912-1992). Marinetti não apreciou a sua Métachorie, considerando-a “uma abstracção monótona, limitada, elementar, estática, fria e sem emoção”, que nada tinha a ver com a grande sensibilidade dinâmica da vida moderna”. Sobre o assunto ver F.T. Marinetti, “Manifesto della danza futurista”, L´Italia futurista, anno II, N.º 18, Firenze, 1917.

216 Bailarina, de formação clássica, trabalhou entre 1927 e 1928 em Paris com Lubov Egorova, bailarina de

Diaghilev que dançara em 1921 o papel de Aurora em Sleeping Princess, estudando depois dança indiana e espanhola.

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acessórios para o bailado Le Chant du Rossignol, de Stravinsky, obra em que o futurista italiano decidira substituir o tradicional cenário pintado por uma nova visão tridimensional, num revolucionário conceito técnico. Todavia o projecto não se concretizou218, e, em seu lugar, Diaghilev encarregou um outro pintor futurista, Giacomo

Balla, da cenografia de Feu d'artifice, uma peça com música de Stravinsky e em que os intérpretes eram as luzes e o cenário, tendo a obra sido apresentada como parte integrante do programa dos Ballets Russes, no teatro Costanzi em Roma219. Apesar de não ter sido

reposta, Feu d'artifice constituiu um apontamento singular na história da trupe diaghileviana, mostrando um bailado sem bailarinos ainda que não passasse “de um episódio clamoroso da vanguarda russa cénica, um momento de ruptura do pitoresco folclórico de Bakst”220.

Depois da gorada experiência de Le Chant du Rossignol para os Ballets Russes, Depero retornaria à dança futurista logo em 1924, com Anihccam 3000, um bailado que assumiria, na concepção coreográfica, os movimentos e os ruídos das máquinas, como enunciado no Manifesto de Marinetti. Seguindo esta linha futurista, encontramos ainda o

Ballo Meccanico de Ivo Pannaggi (1901-1981) e Vinicio Paladini (1902-1971), e Cabaret

Epilettico de Anton Giulio Bragaglia (1890-1960) e Marinetti, ambos de 1922. Apresentadas em Paris, estas obras não esgotaram a proposta teórica do Manifesto, e mostraram-se incapazes de inventar uma técnica de movimento longe das referências tradicionais; daí que tenham constituído episódios isolados, uma vez que a dança oficial do fascismo não assentou no discurso futurista de Marinetti, de Censi ou de Depero, definindo-se a partir de pressupostos mais moderados.

Assim, e no que respeita à dança teatral, o bailado virtuoso italiano foi sistematicamente convidado a participar nos espectáculos vocacionados para as massas, havendo uma vontade notória de continuar a realizá-lo dentro da tradição lirico- coreográfica de Oitocentos. Paralelamente, promoveu-se o folclore de cada província italiana, à imagem do que vinha acontecendo na U.R.S.S., copiando-se a fórmula de chamar os grupos populares, a fim de “colorir” de movimento os eventos oficiais, os verdadeiros cartazes de propaganda da Itália fascista.

218 O bailado viria a realizar-se só em 1920, com cenários e figurinos de Henri Matisse. 219 Estreado a 17 de Abril de 1917

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Em 1925, Arturo Toscanini (1867-1957), director do Scala, convidava Enrico Cecchetti a reformar a escola de bailado do teatro, tendo a sua sucessora (e nora de Toscanini) – Cia Fornaroli (1888-1954) – sido substituída por uma bailarina formada em dança dalcroziana e dança livre, de pseudónimo Jia Ruskaia221. Bem relacionada com os

círculos fascistas italianos, Ruskaia tornou-se, de certa forma, a “verdadeira bailarina oficial” do regime, coreografando de acordo com a noção que o fascismo pretendia fazer passar da autêntica mulher italiana: harmoniosa, dócil e sem qualquer toque de violência e foi essa característica que explicou o seu sucesso durante toda a ditadura italiana. Ascendendo na escala artística fascista, Ruskaia tornou-se directora da Academia Real de Dança, instituição que deteve o monopólio da formação oficial de professores de dança em Itália até 1960. As suas coreografias pautavam-se por uma doçura de gestos e uma resignação de movimento, que não eram mais do que a a promoção de um ideal da natureza feminina de submissão a uma vontade superior inquestionável, metáfora do próprio Estado mussoliniano que convinha consolidar.

Todavia, na empreitada ideológica fascista, que contemplava uma política para a dança, e para o corpo, o governo do Duce teve de contornar a oposição da sociedade tradicional italiana, assente numa fortíssima religiosidade secular. A doutrima católica recusava uma exibição do corpo enquanto objecto possuidor de uma força estética própria, impedindo qualquer expressionismo sensualista ou erótico. A tomada de posição da Igreja Católica chegara mesmo a denunciar a dança como “bacilli di immoralitá” e era fácil perceber porquê: a sua tradicional e ancestral posição protegia uma integridade moral assente na cobertura do corpo, face a uma ausência de decoro, fazendo com que o

ballo – e a dança em geral –, fossem algo a evitar. Porém, o regime fascista conseguiu

“rodear” a posição conservadora do Vaticano através da promessa de que asseguraria a moralidade cristã, enquandrando a dança em exibições de massas que permitissem “diluir” o corpo singular num enquadramento colectivo.

Em 1926, o Partido Nacional Fascista criou a Opera Nazionale Balilla (ONB), a primeira organização juvenil fascista, que tinha a seu cargo a educação física e moral dos jovens italianos. O seu programa consistia na educação e formação de uma consciência na juventude italiana, que estivesse em conformidade com os valores fascistas do seu

221 Nascida Eugénie Borisenko (1902-1970), Ruskaia era de origem russa, formada na rítmica dalcrozeana

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governo, como daria conta o Diário da Manhã de 25 de Abril de 1936, ao escrever nas suas páginas: “Os ´Balillas` são os melhores alicerces do movimento fascista”.

Os Balillas inspirar-se-iam sobretudo na obediência, patriotismo, actividades paramilitares e desporto. A forma principal de difusão da cultura fascista fez-se através de eventos desportivos que se converteram num instrumento de unificação social, alcançando um grande prestígio internacional. Por toda a Itália se construíram numerosos estádios, promovendo-se o desporto através do qual toda a juventude fascista se exibiu. A temática recorrente nestas grandes demonstrações copiaria a linha preconizada por todos os regimes totalitários: a busca de uma unidade visual que, sob a influência do nacionalismo, se compunha num marcante efeito cénico.

A educação física e a ginástica rítmica foram adoptadas em coreografias colectivas onde os movimentos rítmicos desenhavam variados motivos em constante mutação. Protagonistas na vasta geometria do espectáculo destino às massas, os jovens italianos ajudavam a construir uma imagem colectiva semelhante a uma máquina funcionando na perfeição, veiculando uma mensagem simbólica: a de que o rigor da engrenagem dos corpos, funcionando em uníssono, pretendia ser o espelho de uma Itália moderna e industrializada, a laborar na perfeição. Assim fica claro que o corpo se tenha tornado sinónimo de máquina que precisa de ser purificada, lubrificada e melhorada: para tanto, foram formulados conjuntos de exercícios adequados, não só ao aumento da eficiência no trabalho e na guerra, mas, sobretudo, succeptíveis de ser mostrados nos grandes eventos populares, em coreografias politizadas que enaltecessem a governo do

Duce.

Em 1929, a ONB estende-se às adolescentes, desafiando a autoridade da Igreja que pretendia confinar o universo feminino ao resguardo do lar e da oração; foi através da nova visibilidade dada ao corpo, pela juventude mista dos Balilla, que se tornou possível fazer desaparecer muitos dos obstáculos morais ainda vigentes. Nas apresentações públicas, a rapariga e o rapaz mostravam-se numa actividade gímnica delineada segundo posições geométricas complexas, que enfatizavam o corpo enquanto instrumento e objecto mecânico.

Em 1937, a adesão à ONB torna-se obrigatória para todos os jovens italianos, sendo posteriormente rebaptizada de Gioventú Italiana del Littorio. Ponto central do discurso e da prática sob as ordens de Mussolini, a ginástica estruturada a partir dos

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grandes desfiles de massas instituiu-se como “a” verdadeira religião da política do fascismo italiano. Por outro lado, o Duce nunca escondeu a sua simpatia pela dança, chegando mesmo a proferir: “La parola d´ordine è ballare”222.

Se a dança moderna se confinara ao círculo futurista da elite política, a dança clássica, por seu turno, mantinha uma particularidade: até 1938 encontrava-se confinada ao universo feminino, e, embora numerosos bailarinos russos tivessem aberto estúdios em Itália ao longo da década de 1920 e de 1930223, o universo da dança clássica

permanecia vedado aos homens, suspeitando-se de que os podia “feminizá-los”. Só em 1938, quando Aurel Milloss (1902-1989), formado por Enrico Cecchetti e Laban, foi convidado a dirigir no Teatro da Ópera de Roma um corpo de baile, que misturava dança expressionista e técnica clássica, é que se assistiu, pela primeira vez, à participação de bailarinos nas obras encenadas. Contudo, as tentativas de modernização de Milloss conheceram, de igual modo, um sucesso limitado, e seria só depois do final da Segunda Guerra Mundial que se implantaria, com êxito, a veia modernista do seu talento.

Importa mencionar que, a partir do decénio de 30, o regime fascista financiou a encenação de numerosas tragédias gregas que frequentemente chamavam a si coros de bailarinos com vista a colorirem o seu enredo. Foi nessa linha que, em 1932, se inseriu a coreografia de Giannina Censi, Alceste, uma tragédia de Euripideu, que demostrou mais uma vez a simpatia do Duce para para com a vanguarda futurista, sobrepondo-se à posição redutora da Igreja.

O que importa sublinhar é que a vitalidade criativa, sobre a qual assentou a política cultural de Mussolini, nega por completo a teoria de que este período tenha sido apenas um parêntesis infeliz na história da dança italiana, uma vez que a atracção que exerceu em numerosos artistas e bailarinos nacionais foi comum a toda uma nova geração de criadores. Isso significou que os artistas politicamente comprometidos com o regime se viram à luz desse élan, aceitando orientar as suas obras de acordo com as instruções politico-artísticas emanadas pelo Partido Nacional Fascista.

222 “A palavra de ordem é dançar” frase de Mussolini, “Il Popolo di Romagna” de 28.7.1929, citado por

Anna Tonelli, E Ballando ballando, la storia d´Italia a passi di danza (1881-1996), FrancoAngeli Storia, Milano, 1998, p. 198

223 Como Ileana Leonidoff (1893-1965) em Roma, Raia Markman em Turim e Maroussia Yartsev em

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