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A CRONOTOPIA SÍNTESE DAS PRIMEIRAS E TERCEIRAS ESTÓRIAS

Ao tratarmos de Primeiras Estórias e de Tutameia: terceiras estórias, poderíamos contar 61 estórias neste ponto de nossa tese, se Guimarães Rosa não tivesse o cuidado em construir cada um dos dois livros como uma totalidade. Os 21 contos de Primeiras Estórias estão, como vimos no capítulo IV, numa organização causal na qual a primeira, a décima primeira (―O Espelho‖) e a última funcionam como linhas para a compreensão de todas elas. A cronotopia nesse livro se estabelece antes de sua leitura, ainda no sumário. Da mesma forma, as 40 estórias de Tutameia, em sua disposição em ordem QUASE alfabética traz a mesma noção de totalidade, com uma cronotopia semelhante ao outro livro. Se nos pusermos, entretanto, a verificar os motivos cronotópicos nos dois livros, observaremos que há uma proximidade entre eles. Nos dois, teremos os cronotopos da cidadezinha (e da fazenda), da praça pública, da estrada (e do encontro). Teremos, portanto, motivos tradicionais atualizados através, principalmente, da síntese da forma curta da narrativa. A potência cronotópica será garantida pela expressividade poética, condensada, portanto, das estórias que guardam uma unicidade e insubstituibilidade – cada uma com um peso axiológico centrado numa disposição ética diferente. Há apenas um conto em Primeiras Estórias que traz um cronotopo com as características que identificamos em Sagarana e em Corpo de baile: a terceira margem do rio.

Um conto, uma estória rápida de ser contada, mas profunda de não secar nunca. O narrador se encarrega de compartilhar sua própria angústia conosco, com suas dúvidas: ―Não adoecia?‖, ―Não queria saber de nós; não tinha afeto?‖, ―Sou doido?‖,

―Sou homem, depois desse falimento?‖. Essas questões surgem num crescendo que vai das necessidades físicas às sentimentais, às lógico-racionais e à ontologia mesma. Nós acompanhamos o filho do homem jacaré em sua canoa, do homem-margem, do homem, do pai. As relações psicológicas, filosóficas, artísticas que esse conto integra são mais que água de rio caudaloso, são achados fundamentais para se conhecer a origem do medo, a origem da angústia, a origem da culpa. Em A Terceira Margem do Rio, há uma questão fundamental: será possível conhecer a si mesmo? Como construir uma subjetividade através de uma série de conflitos, de sentimentos, de necessidades, de pensamentos? Como ser alguém pleno num mundo multifacetado, em constante transformação – mundo-rio, que não se atravessa duas vezes? ―A Terceira Margem do Rio‖ resolve encerrar de vez a busca por uma resposta, resolve mostrar que a resposta não existe, que o mundo é cíclico, que o mundo não é, sendo, que a vida é um baú de culpa e consequência amontoadas na memória servindo aqui e ali para a construção do caráter, para a tomada de decisões, para a realização de escolhas. ―A Terceira Margem do Rio‖, o pai ancestral, o senhor de sua vontade, o filho atormentado por culpas e falimentos, a família, os conhecidos e o desconhecimento total enterrado num silêncio eterno. Esse conto é dúvida, é pergunta sem resposta, é aporia, é a vida.

Há três temporalidades nessa estória: uma centrada no narrador – o filho; uma na família; outra, no pai. As duas primeiras associam-se a uma espacialidade estática: a casa. O pai na canoa mantém-se num espaço dinâmico, o rio, que está diretamente associado à imutabilidade do tempo, não sendo, nunca, o mesmo rio. Essas nuances de temporalidade e espacialidade, que se misturam, minam a estrutura lógico- racional, dotando o conto de uma metafísica que se deixa compreender apenas através do olhar do narrador, na evolução de seu desespero, de sua angústia. O espaço estático da casa deixa de ser o mesmo, assim como rio, desde que o pai fora para a canoa. O cronotopo é, ao mesmo tempo, estático e dinâmico. A travessia, a aprendizagem e o movimento estruturam o cronotopo num determinado eixo de ações – as ações do narrador e de sua família são percebidas em linha reta, enquanto a comunhão do pai com o rio e do narrador com a culpa estruturam o cronotopo num outro eixo – o tempo cíclico, espaço móvel do rio e imóvel do pai. Em apenas um momento da narrativa, o pai parece se levantar e acenar. A comida, as roupas que o filho deixa na margem não aparecem na ação, uma vez que a perspectiva do narrador impossibilita que vejamos as ações do pai. O eixo cíclico e o eixo linear dos cronotopos da comunhão e da travessia se deixam misturar num movimento elíptico, o que nos deixa perceber um terceiro eixo:

a terceira margem do rio, que transcende a temporalidade comum e faz o pai ser eterno sem sê-lo e nunca mais ser o mesmo, e o filho ser a sua imagem e semelhança, embora se mantenha num ponto fixo no espaço e no tempo, sem ação, sem coragem.

A relação entre tempo e espaço também deve ser compreendida a partir das outras categorias narrativas. A posição do autor-criador diante das personagens e seu tom emotivo-volitivo se caracterizam como fundamentais para a definição do cronotopo. Na novela ―Buriti‖, por exemplo, do volume Noites do Sertão, de Corpo de Baile, há duas noções internas de tempo e de espaço que rivalizam de acordo com o tom emotivo-volitivo da personagem da qual o narrador está ―mais próximo‖. Nesse sentido, o tempo deixa de ser histórico para ser social e o espaço deixa de ser social para ser histórico. Quando o narrador observa os eventos sob o tom emotivo-volitivo de Lalinha, na segunda parte da novela, além de a linguagem ser construída sob uma estrutura discursiva tradicional, o tempo é percebido a partir do ponto de vista de uma personagem urbana ―levada‖ para um ambiente rural, ou seja, os eventos são valorados sob uma perspectiva negativa, morosa, lenta, imóvel – apartada do espaço. Quando o narrador observa o mundo sob o tom emotivo-volitivo de Miguel ou de Glória ou de Nhô Gualberto, a linguagem incorpora elementos que a caracterizam como um discurso coloquial, oralizado ou ―estilizado‖, e a percepção do tempo e do espaço é dada através de um olhar diferente do de Lalinha. O tempo, então, é valorado a partir de sua relação com o espaço, com o mundo, e recebe um olhar positivo, natural. Ainda uma terceira percepção, diferente, do tempo e do espaço é apresentada quando o tom emotivo- volitivo do narrador acompanha o Chefe Zequiel83: o tempo e o espaço são valorados

sob a perspectiva do mal, do assombro, dos detalhes da noite – passa a ser mítico, desvinculado da realidade e, ao mesmo tempo, vinculado ao destino das personagens ou, mais propriamente, da personagem Maria Behú (quando ela morre, o Chefe se vê ―curado‖). A partir dessa leitura de ―Buriti‖, última novela do Corpo de Baile, é possível perceber como o cronotopo, a relação entre tempo e espaço, é estruturado na narrativa rosiana. Há uma relação que se determina através do narrador, da personagem, do ambiente e do enredo e, conjuntamente, através da linguagem, do estilo. Cada uma das estórias de Guimarães Rosa, nos sete livros a serem analisados aqui, estabelece uma cronotopia única atrelada à unicidade e à eventicidade de cada estória. Pois, o cronotopo da travessia e da comunhão em ―A terceira margem do rio‖ é marca da unicidade e

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Uma análise do tom emotivo-volitvo e da palavra aqrquitetônica a partir da linguagem do Chefe Ezequiel pode ser encontrada no capítulo VIII.

irrepetibilidade das percepções do tempo e do espaço nessas narrativas. A seguir, veremos narrativas de Primeiras Estórias e Tutameia e a maneira como o cronotopo, mesmo tradicional, é percebido ou construído junto às outras categorias narrativas. Nessas estórias, temos um peso axiológico que transforma as ações narradas de acordo com o narrador, e o herói e redefine o cronotopo de forma única, singular sob a ótica de um ou de outro.

Em ―A benfazeja‖, conto de Primeiras Estórias, a estória da Mula-Marmela é contada por uma pessoa ―de fora‖ que fala às pessoas de um lugar, lugarejo. O observador interpela os cidadãos ao tempo em que conta a estória da mulher, assassina e guia-de-cego, sob sua perspectiva, que é diferente da dos moradores do lugarejo. O narrador chama a atenção dos moradores do lugar para os acontecimentos que todos parecem conhecer, mas, a partir de um ponto de vista positivo do comportamento da mulher, suas ações tremendas sendo todas para o bem dos outros. A ação de contar, de reconstruir os acontecimentos aos outros, se coloca em primeiro plano no conto. As ações da Mula-Marmela estão num passado distante e num passado recente, quando ela vai embora do lugarejo. O cronotopo nesse conto é articulado nestes dois planos: no plano do contar, da conversa, o tempo é agora. A conversa está acontecendo entre essa pessoa de fora – que se tornou moradora do lugar e passou a observar o que acontecia à Mula-Marmela, ao cego Retrupé, e ouvia dos moradores as estórias sobre o Mumbungo –, e os demais moradores – pessoas que enxergavam o pior naqueles três pobres; no plano do contado, a trajetória da Mula-Marmela e os dois homens, o tempo vai de um passado distante – ―O que foi há tantos anos‖ (p. 178) –, quando o Mumbungo aterrorizava o lugar, e um passado recente até a morte do Retrupé e a partida da Mula- Marmela. O espaço da ação é o próprio lugarejo, a rua. O cronotopo de ―A Benfazeja‖ se articula num tempo que se torna sempre presente a partir da reconstrução do passado por aquele que narra e num espaço coletivo, público. Aqui há uma aparência de espaço idílico, mas na realidade é um espaço e tempo históricos nos quais, em segundo plano, se desenvolvem os eventos que particularizam a vida e a trajetória de Mula-Marmela aos olhos do lugarejo, dos seus moradores e daquele ―de fora‖ que narra os eventos sob sua ótica – buscando chamar a atenção dos moradores para as boas ações, não reconhecidas, da mulher.

―Nada e a nossa condição‖ de Primeiras Estórias é narrada por um sobrinho de Man‘Antônio, fazendeiro que decide dividir suas terras entre ―seus muitos, descalços servos, pretos, brancos, mulatos, pardos, leguelhés‖ (p. 137). O tom emotivo-volitivo do

sobrinho, narrador, é construído sob um respeito e certa reverência às atitudes do tio, mesmo que às vezes titubeie entre a reverência e a ideia de o tio ser louco. O tempo da narrativa recupera desde quando o tio herda as terras de sua família, passa pela morte de sua esposa, o casamento das filhas, o trabalho do tio – aumentando sempre o lucro das terras até a decisão tomada e a morte do tio, sozinho na casa grande. Há uma reflexão sobre a reforma agrária, sobre as ideias de justiça social e favor (que requer a obrigação do agradecimento). Há uma redução estrutural (elementos externos se tornam internos) de um contexto histórico brasileiro na estória de Tio Man‘Antônio. Essa redução estrutural analisada sob a perspectiva do sobrinho, que não entrou na herança, mas, mesmo assim, tenta ser um analista dos eventos que se sucederam até a morte do tio. A cronotopia nesse conto se estabelece em dois níveis: a partir da perspectiva do sobrinho e da própria estória narrada – a sucessão dos eventos; e, de um tempo-espaço externo, Histórico, real, numa perspectiva política, econômica e social em que se colocam de forma conflituosa a ação do tio (em dividir as terras) e o tom do sobrinho em destacar a ―ingratidão‖ dos beneficiados. Há duas visões de mundo em oposição na configuração entre tempo e espaço.

Em ―Faraó e a água do rio‖, a relação entre o tempo e o espaço é colocada sob dois pontos de vista (ou duas visões de mundo): a do fazendeiro, proprietário de terras e a dos ciganos, a quem a decisão do faraó ainda pesava – e pesaria para sempre – de ―o descanso nenhum, em nenhuma parte‖ (p. 99). O tom emotivo-volitivo do observador recai positivamente para o fazendeiro; já os ciganos recebem a alcunha em tom pejorativo de ―gitanos‖. Eram eles os principais suspeitos depois que acontece um roubo nos arredores da fazenda. Entretanto, o fazendeiro Senhozório intercedeu em favor dos ciganos – e sua palavra, diferente daqueles, tinha peso de lei e era respeitada. A condição de nômade em oposição à condição de permanência estabelece dois tipos de relação com o mundo, e, portanto, de relação com o tempo – da tradição – e com o espaço. É por conta da tradição (a ordem do faraó) que os ciganos continuam nômades e sujeitos à desconfiança e à marginalidade; também por conta da tradição a palavra do dono da Fazenda Crispins é respeitada como lei. Mesmo assim, Siantônia, mulher de Senhozório, dizia: ―Aqui todos juntos estamos...‖ (p. 100).

Em ―Melim-Meloso (sua apresentação)‖, há um narrador observador que nos conta a sucessão de eventos no tempo e no espaço em primeira pessoa, mas não participa deles. O narrador parte de cantigas populares para desenvolvê-las como estórias ou causos referentes às ações de Melim-Meloso. A cronotopia é configurada, a

partir dos versos, em pequenas ―explicações narrativas‖ que atribuem um lugar e um tempo em que se sucederam os eventos que justificariam os versos imortalizados nas cantigas. Um tempo que se mantém eterno, pois ―a vida de Melim-Meloso nunca se acaba‖. Em ―Fatalidade‖, o narrador é amigo de uma das personagens, um homem ―de vasto saber e pensar, poeta, professor, ex-sargento de cavalaria e delegado de polícia‖, e narra um evento que se deu por conta da perseguição de um Herculinão, conhecido valentão, à mulher de Zé Centeralfe, um pacato trabalhador. A sucessão dos eventos se desenrola rapidamente na estória contada pelo narrador, que enfatiza sempre a condição de ―pensador‖ de seu amigo. A cronotopia aqui tem duas dimensões: a dimensão do narrado, do desenrolar dos acontecimentos até a ―fatalidade‖ e o desfecho; e a dimensão da narrativa, que se desloca entre a conversa de Zé Centeralfe com o Amigo e sua própria narrativa – desde que começou a ser perseguido pelo valentão. Há uma suspensão do tempo e do espaço históricos reais e um retorno a ele, quando a estória termina.

Um narrador que fala como um dos olhos de uma multidão que compõe determinado lugar é o que determina a especificidade do cronotopo nos contos ―João Porém, o criador de perus‖84 de Tutameia e ―Sorôco, sua mãe, sua filha‖ de Primeiras

Estórias. No primeiro conto, o povo do lugar invejava o desempenho de João Porém com os perus que criava, seu negócio prosperando. O tom do narrador acompanha o tom do povo que contava a história de João Porém com desdém. O espaço é construído sobre os eventos que se desencadeiam depois que o povo inventou que, longe dali, uma moça – Lindalice – estava apaixonada por João Porém. O homem, em vez de ir ao encontro da ―mulher‖, desenvolve mais seu negócio e sempre pergunta por novidades da moça. ―De dó ou cansaço‖, o povo diz que Lindalice morreu. João Porém, triste, continua apenas no seu trabalho até morrer, sem que tivesse ninguém para deixar o terreno e os perus. Assim, o espaço móvel da narrativa dá mobilidade também ao tempo que se desenvolve a partir da relação entre o povo do lugar e o que acontecia a João Porém até a sua morte. Em ―Sorôco, sua mãe, sua filha‖, temos o mesmo olhar coletivo sobre a personagem. O povo acompanha o sofrimento de Sorôco com respeito, tristeza. O homem deixaria sua única família – sua mãe e sua filha, ambas loucas – no trem para serem levadas ao manicômio. A construção do tom da narrativa é dada pelo sentimento do povo em relação a Sorôco e, em certos momentos, temos o sentimento do próprio

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Sorôco, de tristeza, de solidão. O tempo e o espaço são fluidos, os minutos custam a passar, o vagão que estava ali oprime a todos que devem deixar parentes seus para serem levados daquele lugar. Diferente do conto de Tutameia, entretanto, o povo tem ampla simpatia, empatia com Sorôco, que, ao ver sua família partindo, começa a entoar a mesma canção que a mãe e a filha entoavam e que, por isso, eram tachadas de loucas. Um a um, o povo e o narrador, começam a cantar a mesma canção. A opressão que todos sentiam, num movimento coletivo de dor, é expressa através de um movimento catártico que suspende o tempo e o espaço.

Em ―Lá, nas campinas‖, temos um narrador observador em primeira pessoa

que narra uma estória que lhe foi contada por um terceiro. Há uma atemporalidade que se deixa perceber no parágrafo final do conto: ―Então, ao narrador foge o fio. Toda estória pode resumir-se nisto: – Era uma vez uma vez, e nessa vez um homem. Súbito, sem sofrer, diz, afirma: – ―Lá...‖ Mas não acho as palavras‖ (p. 134). Os eventos da narrativa de Drijimiro, contadas por outra pessoa, numa tentativa de reconstituir um passado que não pode ser alcançado, uma vez que a personagem não sabia onde ficavam as ―campinas‖ – podendo ser em qualquer lugar –, se misturam ao presente no qual Drijimiro se vê cercado por três mulheres e acaba fugindo da sobrinha do padre e sendo perseguido pelo próprio padre. A saudade, o amor e a mistura de gêneros e a metalinguagem configuram tanto a atemporalidade dos dois textos, como uma especialidade confusa, que não se deixa perceber.

O estabelecimento do novo gênero de Guimarães Rosa, como o entendemos, nos livros Primeiras Estórias e Tutameia, se realiza através da relativização do cronotopo que se movimenta de acordo com a relação entre autor e herói. Cada estória constrói a percepção do tempo e do espaço de acordo com o tema, a estrutura e o ethos do herói e do narrador, mesmo quando é observador ou personagem. Essas relações podem ser percebidas também no que chamamos de cronotopia do encantado, nos livros que não receberam acabamento final pelo autor, mas que têm as características do novo gênero.