• Nenhum resultado encontrado

5.4 A FICÇÃO DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

5.4.3 Arquitetônicas do encantado

―Alegremo-nos, suspensas ingentes lâmpadas. E: ―Sobe a luz sôbre o justo e dá-se ao teso coração alegria!‖ – desfere então o salmo. As pessoas não morrem, ficam encantadas‖. (ROSA apud ROSA, 2014, p. 622)

Edna Tarabori Calobrezi80, na introdução do seu livro Morte e Alteridade em Estas Estórias, fala de um problema que se estabelece de pronto quando se quer tratar do livro Estas Estórias. A organização póstuma do livro, mesmo que alguns dos textos tenham sido publicados em outros meios, coloca-se como um desafio a mais para a realização de uma leitura que se queira profícua ou ao menos que dê conta dos procedimentos dos textos do livro, inerentes ao restante da ficção de Guimarães Rosa.

Embora Guimarães Rosa seja bastante estudado, quase não há trabalhos sobre

Estas Estórias, obra algo esquecida pela crítica literária. Uma possível

explicação estaria nos sérios problemas que a envolvem, por se tratar de publicação póstuma de um escritor rigoroso e detalhista ao extremo. Ele sempre revia inúmeras vezes seus textos até considera-los satisfatórios para serem publicados, prática que, lamentavelmente, não pôde exercer neste caso. (p. 15)

A autora procurou uma saída para esse impasse através da teoria do manuscrito, que entende o texto como algo sempre inacabado. Ela frisa que, dadas as condições da publicação, os textos devem ser considerados prontos, mas ―respeitando a condição de inacabado ou inédito‖ (p. 17). Na nota introdutória que consta na edição do

80

livro, Paulo Rónai (in ROSA, 2001), organizador da publicação, explica as condições dessas estórias:

Nos papeis do escritor foram encontrados vários esboços dos índices deste volume, Estas estórias, que infelizmente hoje sai como livro póstumo. Ele devia abranger oito novelas longas e a entrevista-retrato ―Com o vaqueiro Mariano‖. Foram também encontradas as oito novelas constantes de um desses índices: quatro já publicadas em vida pelo autor e quatro inéditas. // Das publicadas, três o foram na revista Senhor, a saber: ―A simples e exata estória do burrinho do Comandante‖, no nº 14, de abril de 1960; ―Meu tio, o Iauaretê‖, no nº 25, de março de 1961, e ―A estória do Homem do Pinguelo‖, no nº 37, de março de 1962. A quarta novela, ―Os chapéus transeuntes‖, saiu como uma das sete narrativas, cada uma de autor diferente, que compõem o volume Os sete pecados capitais (Editora Civilização Brasileira S.A., 1964), e correspondia ao pecado da soberba. // ―Com o vaqueiro Mariano‖ foi publicado pela primeira vez no nº 25 de novembro de 1947 do Correio da Manhã, e pela segunda como volume das Edições Hipocampo, Niterói, 1952, ilustrado por Darel Valença Lins, numa edição fora do comércio, para assinantes, em 110 exemplares numerados e assinados pelo autor. // Os cinco escritos que acabamos de enumerar figuram em todos os índices esboçados. // As demais novelas que deviam completar o volume – ―Páramo‖, ―Bicho mau‖, ―Retábulo de São Nunca‖ e ―O dar das pedras brilhantes‖ – chegaram a ser datilografadas por ordem do autor; de uma só, a última, saiu um fragmento numa entrevista feita por Pedro Bloch para a revista Manchete. (p. 15-16)

Entre elas, ―Bicho Mau‖ parece ser a estória que foi cortada de Sagarana. Rosa havia mencionado, na carta a João Condé, a existência de uma estória com esse título, que teria sido retirada. ―Meu tio, o Iauaretê‖ ter sido escrita, conforme nota explicativa de Paulo Rónai neste mesmo texto, antes de Grande sertão: veredas faz-nos pensar sobre os procedimentos narrativos arquitetônicos que já seriam próprios à narrativa rosiana antes do romance. Essas informações são importantes para observarmos também alguns elementos de composição e preparação da forma narrativa em Guimarães Rosa.

Calobrezi faz a análise de Estas Estórias com um enfoque a partir da psicanálise freudiana, buscando os índices de alteridade e morte nas estórias. A presença do outro, a relação com o outro, um dos pontos que se reiteram na ficção rosiana, é marcada de forma enriquecedora para pensarmos as vozes em cada uma das estórias e como as consciências equipolentes de narrador e personagem se apresentam, como na ―História do Homem do Pinguelo‖, por exemplo, que tem dois narradores.

*

Ave, Palavra, além do mesmo problema de Estas Estórias, apresenta uma peculiaridade que foge ao ―recorte‖ deste trabalho. Há, no livro, poemas líricos e outros tipos de texto. Mesmo levando em conta a ―impureza‖ dos gêneros, como nos alerta

Anatol Rosenfeld, ou a condição de ―romancização‖ das formas literárias modernas, como nos diz Bakhtin, limitaremo-nos a analisar apenas os contos desse volume a partir do conceito de narrativa arquitetônica. Sobre os tipos textuais constantes no livro, Paulo Rónai (in ROSA, 2009) escreve:

Guimarães Rosa definiu o Ave, Palavra como uma ―miscelânea‖, querendo caracterizar com isto a despretensão com que apresentava estas notas de viagem, diários, poesias, contos, flagrantes, reportagens poéticas e meditações, tudo o que, aliado à variedade temática de alguns poemas dramáticos e textos filosóficos, constituíra sua colaboração de vinte anos, descontínua e esporádica, em jornais e revistas brasileiros, durante o período de 1947 a 1967. (p. 903)

Ao vermos, por exemplo, a reportagem poética ―Pé-duro, chapéu-de-couro‖, observamos diferenças significativas entre o autor-criador e o autor-homem. Enquanto o primeiro é categoria interna da narrativa literária, que se articula com as outras categorias de forma inextrincável, o autor-homem, que mais aparece na linguagem da reportagem, surge como um observador. Mesmo com uma linguagem que se aproxima do estilo que caracteriza sua produção ficcional, o objetivo maior é apresentar o vaqueiro sertanejo a partir de várias perspectivas desenvolvidas ao longo do texto. O autor-homem reproduz, contra a nossa vontade, termos e expressões sobre o sertão e o sertanejo que criticamos ao longo do nosso trabalho, mesmo que sua visão destoe drasticamente das ―visões centrípetas‖ das quais falamos mais acima. André Tessaro Pelinser e Letícia Malloy (2014) entendem que essa reportagem, sendo de 1952, serve como uma fonte fundamental para a produção ficcional de Rosa

Considerando-se que a referida ―reportagem poética‖, na falta de outra definição, é de 1952, percebe-se como essas reflexões orientarão a visão de mundo rosiana projetada nas obras posteriores. O tom epopeico da vida

sertaneja surgirá marcado, a um só tempo, pelas particularidades locais, pela historicidade de certos temas e pela pretensa a-historicidade de elementos míticos. Aglutinando-os todos, Guimarães Rosa fará suas personagens girarem em torno de problemas altamente regionalizados, ao mesmo tempo em que as conduz a reflexões que adquirem sentido num largo espectro imaginário por conta da não hierarquização de temas, valores e referências. (p. 131)

Embora não concordemos com autores quando dizem que as reflexões sobre experiência na Bahia ―orientarão‖ a visão de mundo rosiana – basta pensarmos que Sagarana, escrito em 1937, já contém o que eles chamam na citação de ―visão de mundo rosiana‖ (no trecho grifado) –, entendemos que essa vivência terá acrescido sim material fundamental para a produção de Guimarães Rosa, não apenas em gêneros primários,

como alguns causos, mas em matéria-vertente, de vida, de realidade para representação literária.