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O nosso interesse no conceito de arquitetônica recai, principalmente, na sua aplicação feita por Bakhtin nos seus textos iniciais. Entretanto, uma vez que temos em mente uma formulação nova do conceito de arquitetônica, mais propriamente como um novo tipo de forma narrativa, vislumbramos a necessidade de um sumário digressivo dos usos do conceito de arquitetônica na História da Filosofia. Assim, iniciamos nosso percurso ainda em Aristóteles, passando por Leibniz, Kant, C. S. Pierce, até chegarmos a Bakhtin e, por fim, delinearmos a nossa própria abordagem, para posterior desenvolvimento. O percurso que hora apresentamos parte do verbete ―arquitetônica‖ constante nos dicionários de filosofia de Abbagnano (2007) e de José Ferrater-Mora (2004), que, embora tenham uma ideia geral dos empregos do verbete, não fazem referência alguma ao uso do termo pelo filósofo russo Mikhail Bakhtin – vazio esse que ficamos felizes em tentar preencher.

Aristóteles utiliza o termo αρχιτεκτοηικαι tanto na Ética a Nicômaco (1985) como na Metafísica (2002). Tal uso surge como uma metáfora (tomada de empréstimo da arquitetura) para empregar a ideia de algo último, superior, para o qual todas as atividades (meios) se direcionam (fins) assim como os fins menores para os maiores. O estagirita escreve (Et. Nic. I, 1, 1094a):

Toda a arte e toda investigação, e, igualmente, cada ação e livre escolha parecem tender a algum bem; para isso se manifesta, com razão, que o bem é aquilo para o que todas as coisas tendem. No entanto, é evidente que há algumas diferenças entre os fins, pois uns são atividades e outros produtos à parte das atividades; onde existe alguma outra finalidade que não as ações, os produtos são naturalmente preferíveis à essas atividades. Mas, como há muitas ações, artes e ciências, muitos são também os fins; Com efeito, o fim da medicina é a saúde; da construção naval, o navio; o da estratégia, a vitória; o da economia, a riqueza. Mas poucos deles estão subordinadas a uma única faculdade (como o fabrico de freio e todas os outros arreios dos cavalos estão subordinados à equitação, e, por sua vez, esta e todas as atividades militares estão subordinadas à estratégia, e do mesmo modo outras artes subordinam- se a outras diferentes) em todas os fins das principais [arquitetônicas] são

preferíveis aos das subordinadas, já que é com vistas ao primeiros que se buscam os segundos. E não importa que os fins das ações sejam as atividades mesmas ou algo diferente delas, como ocorre nas ciências mencionadas. (1985, p. 129-130, tradução nossa51)

Em Metafísica, a metáfora é também utilizada de modo semelhante (a partir de I, 1, 981a 24 até I, 1, 981b 6):

Todavia, consideramos que o saber e o entender sejam mais próprios da arte do que da experiência, e julgamos os que possuem a arte mais sábios do que os que só possuem a experiência, na medida em que estamos convencidos de que a sapiência, em cada um dos homens, corresponda à sua capacidade de conhecer. E isso porque os primeiros conhecem a causa, enquanto os outros não a conhecem. Os empíricos conhecem o puro dado de fato, mas não seu porquê; ao contrário, os outros conhecem o porquê e a causa. / Por isso consideramos os que têm a direção nas diferentes artes [αρχιτέχτονας] mais dignos de honra e possuidores de maior conhecimento e mais sábios do que os trabalhadores manuais, na medida em que aqueles conhecem as causas das coisas que são feitas; ao contrário, os trabalhadores manuais agem, mas sem saber o que fazem, assim como agem alguns dos seres inanimados, por exemplo, como o fogo queima: cada um desses seres inanimados age por certo impulso natural, enquanto os trabalhadores manuais agem por hábito. Por isso consideramos os primeiros mais sábios, não porque capazes de fazer, mas porque possuidores de um saber conceptual e por conhecerem as causas. (2002, p. 5-7)

Luiz Rohden, em O poder da linguagem: a arte retórica de Aristóteles (2010), explica essas passagens escrevendo: ―Para tudo que fazemos há uma finalidade, afirma Aristóteles. Deve-se precisar a natureza deste fim e de qual das ciências ele constitui objeto. Isso deve ser realizado com esforço ainda que em linhas gerais‖. E, mais à frente, ele diz que, para o filósofo do Liceu, a mais importante das ciências e a ―mais arquitetônica‖ delas é a Política; entretanto, na Metafísica a sabedoria seria essa ciência arquitetônica. Rohden recorre ao outro exegeta para resolver o impasse: ―Para Samaranch, poderíamos entender que a ‗Política é a ciência arquitetônica no âmbito da sabedoria prática e a Metafísica o é no da sabedoria teórica‘‖ (2010, p. 153). Tanto a Metafísica quanto a Política seriam saberes arquitetônicos, pois que organizam e dão

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Todo arte y toda investigación e, igualmente, toda acción y libre elección parecen tender a algún bien; por esto se ha manifestado, con razón, que el bien es aquello hacia lo que todas las cosas tienden. Sin embargo, es evidente que hay algunas diferencias entre los fines, pues unos son actividades y los otros obras aparte de las actividades; en los casos en que hay algunos fines aparte de las acciones, las obras son naturalmente preferibles a las actividades. Pero como hay muchas acciones, artes y ciencias, muchos son también los fines; en efecto, el fin de la medicina es la salud; el de la construcción naval, el navío; el de la estrategia, la victoria; el de la economía, la riqueza. Pero cuantas de ellas están subordinadas a una sola facultad (como la fabricación de frenos y todos los otros arreos de los caballos se subordinan a la equitación, y, a su vez, ésta y toda actividad guerrera se subordinan a la estrategia, y del mismo modo otras artes se subordinan a otras diferentes), en todas ellas los fines de las principales [arquitectónicas] son preferibles a los de las subordinadas, ya que es con visas a los primeros como se persiguen los segundos. Y no importa que los fines de las acciones sean las actividades mismas o algo diferente de ellas, como ocurre en las ciencias mencionadas.

finalidade aos saberes teóricos e práticos, respectivamente. Assim, o sentido aristotélico do conceito ou mesmo metáfora de arquitetônica pressupõe algo que engloba, direciona as partes de um todo visando a um fim último, que é o bem e a virtude humanos52. Ou, como escreve Ferrater-Mora parafraseando J. A. Stewart: ―Mesmo quando se possui um profundo conhecimento do assunto de que se trata, é necessária a direção de uma faculdade mestra, pois o homem que conhece os detalhes não pode tratar deles sem possuir previamente um plano de vida‖ (2004, p. 196).

Leibniz também utiliza o conceito de arquitetônica como algo que é relativo às causas finais. No texto ―Tentamen Anagogicum: an anagogical essay in the investigation of causes‖, Leibniz ―concordou com Cartesianos que os eventos naturais devem ser explicados mecanicamente, mas ele insistiu que a consideração das causas finais foi de importância na derivação das próprias leis mecânicas‖ (1969, p. 477, tradução nossa53). É nesse texto de Leibniz que observamos uma contraposição entre a ideia de mecânica e de arquitetônica, como serão reutilizadas de forma metafórica em Bakhtin. Leibniz escreve:

O verdadeiro meio-termo para satisfazer tanto a verdade e a piedade é: todos os fenomena naturais poderiam ser explicados mecanicamente se compreendêssemos bem o suficiente, mas os princípios da mecânica em si não podem ser explicados geometricamente, uma vez que dependem dos princípios mais sublimes que mostram a sabedoria do Autor na ordem e perfeição do seu trabalho (1969, p. 478, tradução nossa54)

E, mais adiante:

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Cabe uma reflexão aqui sobre a maneira como Aristóteles concebe o saber, o conhecimento, estando o conhecimento teórico acima do conhecimento prático ou ao entender que os que têm um conhecimento teórico são superiores àqueles que têm apenas a experiência. Em Bakhtin, por exemplo, essa relação é invertida, uma vez que para ele os gêneros primários (da linguagem construída na comunicação imediata) são a base para os gêneros secundários (a ficção, por exemplo) – como discutimos no capítulo II. Seria talvez anacrônico fazer uma crítica a Aristóteles por sua compreensão das relações entre saber e experiência, mas, obviamente, perceber como o conceito de arquitetônica, nosso foco aqui, pode ser ressignificado para construir um debate que leve em consideração as várias possibilidades de linguagem de um enunciado estético sem apresentar uma hierarquia é uma oportunidade interessante. A aplicação anárquica (no sentido de não haver Deus – o conhecedor superior – nem Estado – as instituições que se acreditam deter o conhecimento e o poder) do conceito de arquitetônica, fazer uma crítica anarquista da literatura a partir da qual todos os elementos de um texto devem ser considerados sem estabelecer aquilo que seja superior ou inferior, é um dos objetivos deste trabalho.

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―agreed with Cartesians that natural events are to be explained mechanistically, but he insisted that the consideration of final causes was of significance in the derivation of mechanical laws themselves‖

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―The true middle term for satisfying both truth and piety is: all natural fenomena could be explained mechanically if we understood the well enough, but the principles of mechanics themselves cannot be explained geometrically, since they depend on more sublime principles which show the wisdom of the Autor in the order and perfection of his work‖

É por esta razão que eu costumo dizer que há, por assim dizer, dois reinos, mesmo na natureza corporal, que se interpenetram, sem confundir ou interferir uns com os outros - o reino do poder, segundo o qual tudo pode ser explicado mecanicamente por causas eficientes quando tivermos suficientemente penetrado o seu interior, e o reino da sabedoria, segundo o qual tudo pode ser explicado arquitetonicamente, por assim dizer, ou por causas finais quando entendemos as suas formas suficientemente. Neste sentido, pode-se dizer com Lucrécio não só que os animais veem porque eles têm olhos, mas também que os olhos foram-lhes dados a fim de ver, embora eu saiba que algumas pessoas, que melhor passariam como pensadores livres, admitem somente o antigo. Aqueles que entram em detalhes de máquinas naturais, no entanto, devem ter necessidade de um viés forte para resistir às atrações de sua beleza. (1969, p. 478-9, tradução nossa55)

Em nota explicativa, o organizador do texto diz:

Leibniz segue o sentido aristotélico do termo [arquitetônica] que se aplica a causas finais ou termina como explicativa de fins subordinados. A arquitetônica de Leibniz, portanto, difere de Kant em ser metafísica, bem como metodológica, embora ambos repousem sobre uma harmonia de formas ou possibilidades (1969, p. 485, tradução nossa56).

É justamente a ideia de uma visão parcial ou superficial como mecânica e de uma visão abrangente ou profunda como arquitetônica que veremos no pensamento de Bakhtin. Entretanto, segundo Sobral (2010, p. 108), é ressignificando propostas kantianas que Bakhtin constrói sua ideia de arquitetônica. Assim, devemos ainda recorrer tanto a Kant quanto a C. S. Pierce (que se baseia na aplicação kantiana de arquitetônica) para, depois, chegarmos a Bakhtin e além.

Na Crítica da Razão Pura (2001), no penúltimo capítulo, intitulado ―A arquitetônica da razão pura‖, Kant escreve:

Por arquitetônica entendo a arte dos sistemas. Como a unidade sistemática é o que converte o conhecimento vulgar em ciência, isto é, transforma um simples agregado desses conhecimentos em sistema, a arquitetônica é, pois, a doutrina do que há de científico no nosso conhecimento em geral e pertence, assim, necessariamente, à metodologia. / Sob o domínio da razão não devem os nossos conhecimentos em geral formar uma rapsódia, mas um sistema, e somente deste modo podem apoiar e fomentar os fins essenciais da razão. Ora, por sistema, entendo a unidade de conhecimentos diversos sob uma ideia. Esta é o conceito racional da forma de um todo, na medida em que nele

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―It is for this reason that I usually say that there are, so to speak, two kingdoms even in corporal nature, which interpenetrate without confusing or interfering with each other – the realm of power, according to which everything can be explained mechanically by efficient causes when we have sufficiently penetrated into tis interior, and the realm of wisdom, according to which everything can be explained architectonically, so to speak, or by final causes when we understand its ways sufficiently. In this sense one can say with Lucretius not only that animals see because they have eyes but also that eyes have been given them in order to see, though I know that some people, in order the better to pass as free thinkers, admit only the former. Those who enter into the details of natural machines, however, must have need of a strong bias to resist the attractions of their beauty.‖

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―Leibniz follows the Aristotelian meaning of the term [arquitetônica] which applies to final causes or ends as explanatory of subordinate ends. Leibniz‘s architectonic therefore differs from Kant‘s in being metaphysical as well as methodological, though both rest upon a harmony of forms or possibilities‖.

se determinam a priori, tanto o âmbito do diverso, como o lugar respectivo das partes. O conceito científico da razão contém assim o fim e a forma do todo que é correspondente a um tal fim. A unidade do fim a que se reportam todas as partes, ao mesmo tempo que se reportam umas às outras na idéia desse fim, faz com que cada parte não possa I faltar no conhecimento das restantes e que não possa ter lugar nenhuma adição acidental, ou nenhuma grandeza indeterminada da perfeição, que não tenha os seus limites determinados a priori. O todo é, portanto, um sistema organizado (articulado) e não um conjunto desordenado (coacervatio); pode crescer internamente (per intussusceptionem), mas não externamente (per oppositionem), tal como o corpo de um animal, cujo crescimento não acrescenta nenhum membro, mas, sem alterar a proporção, torna cada um deles mais forte e mais apropriado aos seus fins. (2001, p. 669)

A própria idéia originária de uma filosofia da razão pura prescreve esta divisão; é portanto arquitetônica, segundo os fins essenciais da razão e não meramente técnica, segundo afinidades acidentalmente percebidas e como por acaso afortunado; e, precisamente por isso, também imutável e legisladora. Mas há alguns pontos que poderiam suscitar dúvidas e enfraquecer a convicção da sua legitimidade. (2001, p. 678-9)

Como observamos nas citações, Kant utiliza o conceito de arquitetônica não mais como uma metáfora, como o fizera Aristóteles, mas como uma categoria definidora de um método de organização do conhecimento filosófico no qual cada parte deve conter em si mesma o sentido do todo, esse todo sendo um constructo arquitetônico de um sistema filosófico uno e coerente, verdadeiro. Marcamos ainda a diferença que Kant propõe entre arquitetônico e técnico. Essa oposição conceitual se aproxima tanto da ideia de Leibniz, em relação ao termo ―mecânica‖, como da aplicação ou contraposição elaborada por Bakhtin. Ainda a partir da citação de Kant, quando ele trata do enfraquecimento da legitimidade dessa arquitetônica que seria razão pura ou a metafísica, mais à frente, em seu livro, ele enumera dois pontos para refutar tal enfraquecimento. Primeiro que a razão pura deve abster-se, para ele, se basear em princípios empíricos que possam acrescentar ―qualquer experiência que servisse para formular um juízo sobre esses objetos‖ (2001, p. 679); segundo o lugar da ―psicologia empírica‖ junto à filosofia aplicada e não à metafísica. Kant se aproxima de Aristóteles ao separar o saber teórico do prático (cf. nota 97).

C. S. Pierce, em Chance, Love and Logic (1923), parte, como já mencionamos, da ideia de Kant, mas difere deste quando individualiza a ideia de sistema a fim de proceder a um caminho seguro para ter sucesso na resolução de problemas concernentes aos seres humanos onde outras ciências em outros momentos da História da Filosofia falharam (ou aproveitando também os sucessos anteriores). Há em Pierce a ideia de criatividade como força propulsora da evolução da ciência. Ele escreve:

Que os sistemas devem ser construídos arquitetonicamente foi pregado desde Kant, mas eu não acho que toda a importância da máxima por qualquer meio foi apreendida. O que eu recomendo é que cada pessoa que deseje formar opinião sobre os problemas fundamentais, deve, antes de tudo, fazer um levantamento completo do conhecimento humano, deve tomar nota de todas as ideias valiosas em cada ramo da ciência, deve observar apenas aquilo que foi bem sucedido e o que tenha falhado, de modo que, à luz do conhecimento aprofundado e alcançado os materiais disponíveis para teoria filosófica e da natureza e da força de cada um, ele possa prosseguir para o estudo do que consiste o problema da filosofia, e da maneira correta de resolvê-lo. (1923, p. 158-9, tradução nossa57)

Não sabemos até que ponto as ideias de Pierce influenciaram o pensamento bakhtiniano. Segundo Adail Sobral (apud BRAIT, 2010, p. 123 ss), há pontos de contato entre as teses de Pierce e as ideias de Bakhtin. Entretanto, ainda a partir de Sobral, sabemos da influência direta tanto de Aristóteles, como de Leibniz e, principalmente, Kant. Nesse sentido, passamos agora a tratar do conceito de arquitetônica em sua aplicação bakhtiniana.