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Essas dualidades – regional x universal, litoral x sertão, arcaico x moderno, rústico/rude/grotesco x civilizado – são lugares comuns na crítica rosiana e merecem ser tratadas por nós – como mereceram também em Hansen e Bolle –, pois carregam uma importante marca ideológica, política e cultural da sociedade e, portanto, da crítica brasileira sobre a qual queremos nos debruçar por alguns instantes.

A prosa regionalista dos românticos, realistas e naturalistas brasileiros do século XIX e de autores modernos do século XX é uma das principais matérias estilizadas e parodiadas. Ele [Guimarães Rosa] também seleciona e indetermina matérias de textos de ideólogos brasileiros dos séculos XIX e XX que, à esquerda e à direita, trabalham com as oposições de litoral/sertão,

moderno/arcaico, industrial/rural, desenvolvido/subdesenvolvido, letrado/iletrado, alfabeto/analfabeto, culto/popular, cultura/raça, civilizado/primitivo, branco/negro, ordem/desordem, progresso/atraso, etc. –

quando escrevem sobre o sertão e a ideologia da ―brasilidade‖. / O autor comunica ao leitor a própria correlação das matérias. Com isso, evidencia que, no ato de escolhê-las, anterior à escrita, pressupôs a funcionalidade de seu uso na representação. Na correlação, produz o atrito das retóricas das matérias selecionadas, traduzindo-as umas pelas outras para relativizar o sentido que elas têm nos usos onde foram selecionadas. Com a operação, avalia a representação montada com elas, efetuando duplicidades, negações, ironia, paródia e humor, que as relativizam e esvaziam as verdades supostas em suas primeiras significações (2012, p. 125, grifos do autor).

Como contraponto irônico ao narrador urbano d‘Os Sertões, aparece em Grande Sertão: veredas um narrador sertanejo – uma figura nada ―simples‖, mas altamente elaborada, um mediador entre o mundo do sertão e a cultura letrada. Com esse narrador, Guimarães Rosa deu um ―salto definitivo‖ com relação à tradicional atitude discriminatória dos letrados brasileiros. Como bem observa Walnice Galvão, ―fica eliminado o contraste canhestro, tão praticado pela prosa regionalista, entre o diálogo que reproduz o falar e o não-diálogo que reproduz a prática letrada do autor. Destarte, o diálogo deixa de incrustar-se no texto como um objeto folclórico, exibido à apreciação do pitoresco‖. A invenção rosiana do narrador e de uma nova linguagem corresponde assim plenamente ao verdadeiro desafio do romance de formação: ser um laboratório para o diálogo social (2004, pp. 398-9)

Na primeira citação, lemos Hansen; na segunda, Bolle e Walnice (trecho citado por Bolle do livro As Formas do Falso). Os três percebem e destacam a novidade de Rosa em relação à representação daquelas dualidades. Mas enquanto os professores olham para o texto, nós queremos olhar para dentro da crítica. Essa preocupação de Guimarães Rosa ao parodiar, como diz Hansen, ironizar, como diz Bolle, ou ―eliminar o contraste canhestro‖, como diz W. Galvão, entre o narrador culto e a linguagem popular – como já vimos sob a ótica de Antonio Candido – foge à mão dos próprios críticos que, em vários textos, repetem, insistem e demarcam seu posicionamento geo-sócio- econômico-ideológico em oposição ao objeto e ao sujeito ―fontes‖ da ficção rosiana. Ou seja, sob o paradigma do rústico, do atraso, do inculto, do iletrado, do arcaico, do exótico, do pitoresco, do diferente, do feio, do analfabeto, do popular, do seco, está o sertão e o sertanejo fontes, como dissemos, da ficção rosiana. O crítico, o pesquisador, o professor, está posicionado sob o paradigma do urbano, do moderno, do culto, do letrado, do civilizado, do normal, do comum, do igual, do belo, do alfabetizado, do clássico, do fresco.

O sujeito impessoal do dissertante, do articulista, do ensaísta, deixa suas marcas personalíssimas (urbanas, modernas etc.) sem qualquer mediação ou reflexão. Essa atitude do crítico faz-nos pensar sobre uma postura de parte da já mencionada intelligentsia brasileira, marcada por um comportamento de distanciamento do senso comum, mas não o distanciamento requerido pela perspectiva científica, que lhe confere rigor metodológico, mas um distanciamento social e econômico. Vejamos, por exemplo, algumas marcas desse distanciamento retiradas quase que aleatoriamente de alguns textos sobre a obra de Guimarães Rosa: ―o dialeto brabo, pouco a pouco, transforma-se em saga nórdica‖, escreve Euryallo Cannabrava (apud ROSA, 2009); expressões do tipo: ―imaginação vasqueira‖, ―documento bruto‖, ―material folclórico‖, ―psicologia do rústico‖, ―o pitoresco é acessório‖, ―realidade envolvente e bizarra‖, ―paisagem rude e bela‖, como escreve Antonio Candido em ―O homem dos avessos‖. De forma bem sintomática do que estamos tratando aqui, lemos no trecho de As formas do falso: ―[...] é impossível ler o ‗depoimento‘ de Riobaldo da maneira que lê o depoimento de um velho jagunço. Já foi necessário a Guimarães Rosa fazer de seu narrador- personagem um letrado [...]‖ (1972, p. 70), escreve Walnice Galvão e, no mesmo livro, ela esclarece: ―O homem do sertão sempre impôs dificuldades à consciência urbana e civilizada que sobre ele se debruça, a fim de estudá-lo‖ (1972, p. 18)

Num rápido mapeamento da fortuna crítica rosiana, encontramos de onde vem essa ―consciência urbana e civilizada‖, o lugar dos pesquisadores e pesquisadoras que se debruçaram sobre a ficção de Rosa: São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Rio de Janeiro. Praticamente uma mesma região do país concentra o grosso da reflexão sobre a literatura de Guimarães Rosa. Em primeira análise, isso é óbvio, pois é nesses grandes centros que estão as maiores universidades do país – que são maiores em tamanho, estrutura e em financiamento público. Verdadeiros ímãs da intelectualidade brasileira. A Meca do pensamento literário (principalmente rosiano) está no eixo BH-SP – com todos os programas de pós-graduação conceituados com a nota máxima pelos órgãos de fomento (esses conceitos, é bom notar, servem de base para a quantidade de repasse das verbas públicas – ou seja, universidades já com nível de excelência recebem cada vez mais verba para ficarem com mais excelência). O círculo vicioso das políticas de fomento da Educação Superior brasileira obriga o restante dos pesquisadores a uma dinâmica bem conhecida em outras estruturas do país: a dinâmica da migração. Nisso, até mesmo alguns pesquisadores sertanejos, se pudermos classificar assim, produzem seu pensamento a partir dos e repetindo os mesmos paradigmas e posicionamentos dos pesquisadores metropolitorâneos – sem mediação, sem reflexão, sem problematização. No frigir dos ovos, o que estamos estabelecendo aqui é: se há uma ―tradicional atitude discriminatória‖ dos letrados brasileiros ao referir-se ou representar o povo ou os sertanejos em suas obras, há, da mesma maneira, uma ―tradicional atitude discriminatória‖ da crítica literária brasileira19

. Entretanto, cabe aqui uma ressalva: em tempos de golpe e de uma ameaça permanente ao ensino público superior gratuito, a dinâmica da migração parece retroceder. Mais: essa dinâmica parece inverter-se quando pensamos que universidades como a UERJ estão na iminência de fechar suas portas, e algumas universidades do Nordeste começam a receber professores oriundos de grandes centros. Talvez seja importante deixarmos claro: não há aqui um discurso de inversão do preconceito, não. Há apenas o cuidado em marcar determinados tipos de discurso que retratam a realidade não apenas da universidade (ou de alguns professores universitários), mas da sociedade brasileira, que tem recrudescido e involuído nos anos do golpe de Estado – de 2014 para cá – com o ódio e a intolerância cada vez mais latentes e disseminados.

19

Sobre o lugar do pesquisador e sua orientação metodológica diante do objeto de pesquisa, que pode ser determinada pelas condições econômicas, sociais e históricas cf. CHATIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Trad: Maria Manoela Galhardo. 2 ed. Difel: Algés, 2002.

Nosso desconforto se baseia, principalmente, ao entender que parte da crítica ou dos letrados brasileiros, com o cuidado para evitar generalizações, esquece que a condição de precariedade do sertão e do sertanejo é histórica, política. Não é, acreditamos que ainda seja importante marcar, uma condição climática ou genética e biológica. É óbvio que existe um abismo entre o desenvolvimento educacional (do ponto de vista estrutural) e urbano entre o sertão e o litoral, mas isso é reflexo de escolhas políticas da elite brasileira, historicamente – inclusive das elites do sertão, que preferiam mão de obra barata e fiéis eleitores. Mas, se o lugar do pesquisador é construído na reprodução de um discurso axiologicamente voltado para a polarização estratificada pela História dos vencedores, pelos narradores sinceros da elite brasileira não há reflexão, não há pensamento livre, não há análise e interpretação. Ora, e se os intelectuais sertanejos, se pudermos falar assim, quisessem destacar o atraso de uma ―civilização urbana‖ que dorme com Rivotril e acorda com Prozac para esquecer as angústias de um sistema de trabalho extremamente opressor que visa a produtividade a qualquer custo (principalmente nas universidades), para esquecer a possibilidade de não voltar para casa por conta de uma violência quase endêmica criada pelos aglomerados de excluídos ou de ricos mimados que desejam ―aventura‖? Isso é o resultado da modernidade, do culto, do civilizado? Com essa brincadeira, queremos apenas demonstrar como generalizações e simplificações e um discurso axiológico que se origina num único centro urbano são nocivos para a compreensão de um povo, múltiplo e multifacetado.

Com essa problematização, sobre o discurso da própria crítica e do lugar do crítico da ficção rosiana, aventamos uma quinta resposta à nossa questão fundamental neste capítulo. Nossa questão, “como a fortuna crítica rosiana pensa o sentido estético e ético da forma literária de João Guimarães Rosa?”, fica envolvida, portanto, em cinco respostas (todas elas dialogadas com os grandes temas abordados e/ou levantados pela fortuna crítica rosiana):

duas relativas ao tema do regionalismo:

a) A narrativa rosiana estabelece uma nova maneira de abordar o tema regionalista, mas, mesmo com técnicas de renovação desta temática, ela pode ser percebida pelo tratamento de um tema permanente no sistema literário brasileiro desde José de Alencar;

b) Do ponto de vista histórico, a forma literária da ficção rosiana relaciona elementos internos (de superação do realismo e renovação do regionalismo) a elementos externos, com uma força alegórica, simbólica e transgressora (na representação de personagens ao mesmo tempo semelhante e distante do regionalismo de 1930). Na narrativa rosiana temos em primeiro plano os povos historicamente marginalizados e subalternizados da nossa sociedade capitalista periférica;

uma relativa ao tema da metafísica:

c) Os momentos diante dos quais algumas personagens estariam frente a uma decisão e um agir éticos aliados à posição do narrador ou do próprio escritor caracteriza do sentido ético dessa ficção a partir de uma contraposição a lógica racionalista. Do ponto de vista estético, a forma literária de G. Rosa é o de incorporação e até superação de formas de expressão conseguidas ou construídas por seus antecessores;

uma relativa ao tema da linguagem:

d) Essa resposta se apresenta aqui tal qual está na página 52: ―para fechar nossa questão, entendemos que os aspectos linguísticos e estilísticos da ficção rosiana podem ser abordados do ponto de vista estético e ético desde que haja um método que reúna e perceba esses aspectos de uma forma abrangente (perfeitamente alinhada aos outros aspectos estéticos e éticos do regionalismo, do tratamento dos elementos externos e da temática metafísica na ficção rosiana) e não limitadora ou castradora, sem reduzir o texto ‗a uma espécie de parnasianismo mediador de um significado prévio‘‖;

 uma relativa à própria crítica rosiana:

e) a crítica literária brasileira ou, mais especificamente, rosiana requer um olhar desconfiado, um olhar metacrítico que esteja relacionado ao sentido estético e ético da forma rosiana para, a partir daí, propor uma leitura que tente superar a análise unidirecional (do ponto de vista do lugar do pesquisador) de toda uma região e um grupo social representado artisticamente.

A partir da necessidade que se apresenta aqui vinculada ao lugar do pesquisador e dos abismos socais, econômicos, culturais, políticos e geográficos que separam os brasileiros, reiniciamos nossa discussão sob outro ponto repetidamente mencionado pela fortuna crítica rosiana: a noção de concepção-de-mundo, que, por estar diretamente vinculada aos sentidos estético e ético da forma rosiana, merece uma mediação detalhada e que se apresente de maneira mais aprofundada.

3 TENTATIVA DE PRONÚNCIA DE WELTANSCHAUUNG

Vários dos textos que tratam da obra de João de Guimarães Rosa (inclusive quando ele mesmo o faz) referem-se à ideia de uma cosmovisão, concepção-de-mundo, visão de mundo, mundivisão ou Weltanschauung existente e determinante da e na ficção rosiana. Tal ideia se configura como fundamental para o estabelecimento do estilo e da individualidade de determinado autor-criador ao produzir sua obra vista como enunciado e, relacionada a isso, a visão de mundo é um elemento decisivo na formação de um gênero de discurso e sua atualização na renovação de uma forma relativamente estável. Na Literatura brasileira, é comum vermos a ideia de organicidade (como na dramaturgia de Jorge Andrade)20, de projeto (na obra de Jorge Amado)21, mas não a ideia de concepção-de-mundo, vinculada diretamente à obra artística de um determinado escritor22. Entretanto, o uso e o funcionamento dessa ideia ou conceito não estão definitivamente claros para nós e, mais importante, cabe-nos pensar como a noção de concepção-de-mundo estabelece relação com as cinco propostas discutidas no capítulo anterior, além de como ela pode levantar mais uma resposta (ou respostas) àquela nossa questão-guia.

No esforço de obter uma compreensão ou algumas compreensões do que seja a ideia de concepção-de-mundo na ficção de João Guimarães Rosa, mas também como categoria relevante para pensar a narrativa, organizamos este capítulo a fim de demonstrar, em primeiro lugar, como a fortuna crítica e o próprio Guimarães Rosa utilizam essa categoria ou conceito ou mesmo imagem, ideia; em seguida, tentaremos perceber o escopo filosófico da ideia de concepção-de-mundo; num terceiro momento, passaremos a discutir o sertão e o sertanejo como uma visão de mundo na literatura brasileira para entendermos, por fim, como se dá a relação entre concepção-de-mundo e forma literária e em que medida a cosmovisão rosiana atua como uma ideologia modeladora de gênero.

Destacamos, inicialmente, duas referências do próprio João Guimarães Rosa: a primeira no ―Diálogo com Gunther Lorenz‖ (2009), a segunda na ―Carta a João Condé‖ (2015), ―contando os segredos de Sagarana‖:

20

Cf. ROSENFELD, Anatol. Visão do ciclo. In: ______. ANDRADE, Jorge (2007, p. 599 ss).

21

Cf. JÚNIOR, Durval Muniz de Albuquerque (2009, p. 238 ss).

22

Há, no entanto, trabalhos específicos que tratam da relação entre visão de mundo e a composição de determinadas obras como, por exemplo, a tese de Andrea Czarnobay Perrot sobre a ironia de Machado de Assis (2006).

GUIMARÃES ROSA: Para a Europa, [o sertão] é sem dúvida um mundo muito grande, para nós, apenas um mundo pequeno, medido segundo nossos conceitos geográficos. E este pequeno mundo do sertão, este mundo original e cheio de contrastes, é para mim o símbolo, diria mesmo o modelo de meu

universo. Assim, o Cordisburgo germânico, fundado por alemães, é o

coração do meu império suevo-latino. Creio que esta genealogia haverá de lhe agradar. (p. XXXV) / GUIMARÃES ROSA: Sem dúvida o Brasil é um cosmo, um universo em si. Portanto, Riobaldo e todos os seus irmãos são

habitantes de meu universo, e com isso voltamos ao ponto de partida.

(2009, p. LXIII, grifos nossos)

Assim, pois, em 1937 — um dia, outro dia, outro dia... – quando chegou a hora de o Sagarana ter de ser escrito, pensei muito. Num barquinho, que viria descendo o rio e passaria ao alcance das minhas mãos, eu ia poder colocar o que quisesse. Principalmente, nele poderia embarcar, inteira, no momento, a

minha concepção-do-mundo (2015, p. 21, grifo nosso).

Apenas no segundo trecho, temos o termo ―concepção-do-mundo‖ como uma prerrogativa primeira para o início da produção literária de Guimarães Rosa. A importância que tal elemento tem para o autor torna-se mais evidente quando observamos algumas cartas remetidas para o tradutor Curt Meyer-Clason (2003), por exemplo:

[Carta de 17 de junho de 1963] A meu ver, em três particularidades, pelo menos, o leitor alemão se diferencia do leitor norte-americano, com relação a um romance destes: 1) quanto ao pensamento metafísico; 2) a visão mais minuciosa das paisagens da natureza; 3) a poesia implícita. Creio crer que, quanto a esses três pontos, o alemão (assim como os escandinavos, etc.) reage de modo positivo; enquanto que os norte-americanos, reagem mais para o meio-negativamente. Estou certo? / Ora, o Amigo verá que eles, nos cortes e nas abreviações que fizeram, parece que confirmam esta minha opinião. Não raro, mesmo, chegam a desfigurar o que o autor quis dizer, tirando-lhe a energia dialética, o sopro de sua Weltanschauung. (ROSA, 2003, p. 113-114) [Anexo A da Carta de 09 de fevereiro de 1965] O PRIMEIRO PARÁGRAFO lucraria muito, a meu ver, se recebesse algumas importantes modificações. Trata-se de uma INTRODUÇÃO geral, que pretende ser concisa, enérgica, provocativa, ―algébrica‖, sem denunciar o enredo do conto nem minimamente. / a) Assim, conviria, desde logo, eliminar aquele denunciador ―Mordanschlag‖. b) o ―nie‖ da primeira linha deve ser substituído por ―nicht‖. c) o ―gefürt gegen‖ deve ser: ―geschehen um‖; ou outro verbo, mas seguido de ―um‖, e não de ―gegen‖; deve haver indeterminação , porque na minha Weltanschauung, as coisas ―acontecem‖, ninguém ―faz‖ nada, só pensa que faz. (2003, p. 242)

[Anexo A da Carta de 09 de fevereiro de 1965] [BURITI] A última frase do 1º parágrafo não está exata. Rogo-lhe meditá-la, traduzindo-a primeiro palavra por palavra, e refazendo-a. Contém, em resumo, toda uma Weltanschauung, se não uma concepção metafísica. (Cada palavra, nela, tem valor rigoroso, insubstituível.) Não é o que Miguel pensa; é o que o autor diz. Houve uma mudança de plano. (2003, p. 245, grifo do autor)

Nesses três novos destaques, temos, de maneira explícita, a centralidade que a ideia de cosmovisão, mais especificamente Weltanschauung, tem para João Guimarães

Rosa. Há uma preocupação do autor em garantir que sua visão de mundo esteja clara e bem definida para o leitor de língua alemã, assim como temos essa mesma preocupação em relação ao leitor italiano e outros leitores estrangeiros de sua obra nas diversas correspondências que ele mantinha com cada tradutor. A necessidade não era apenas de dar um significado a um neologismo, a um regionalismo ou a uma frase truncada, mas de assegurar a construção da ideia vinculada diretamente à maneira como João Guimarães Rosa enxergava o mundo na sua literatura. A relevância de tal conceito fica ainda mais evidente quando realizamos um levantamento na fortuna crítica rosiana e encontramos o mesmo termo em várias situações de aplicação.

Em alguns autores, como Cavalcanti Proença (1958), o termo vem implícito, na descrição ou argumentação de tratamento dos temas e criação literária específicas de Guimarães Rosa, que é muitas vezes comparado a outros autores (como Euclides da Cunha e/ou os regionalistas nordestinos). Em outros, o termo vem equiparado à noção de representação da realidade sertaneja, seja ela como uma recriação fictícia e original de Guimarães Rosa (ver Kathrin Rosenfield, 2001), seja ela como uma descrição geográfica com elementos ficcionais e universais, mas indicando uma territorialidade, um pertencimento a um lugar específico – o sertão (como em José Augusto Maximino, 2013).

Em outros autores, como em Starling (1999), a ideia de concepção-de- mundo ou de ―reconstrução do mundo pelas palavras‖ é utilizada no sentido de ideologia ou de uma forma de reorganização do mundo sob as crenças, ideias e palavras de Guimarães Rosa. Wendel Santos (1978) associa a expressão ―visão de mundo‖ a uma postura estética do escritor e defende que, a partir de sua leitura da novela ―Buriti‖, de Guimarães Rosa, o ―sonho do escritor contemporâneo‖ é de ―substituir a visão do mundo, por uma série de aparências do mundo‖. (1978, p. 192). Já Eduardo Coutinho vincula o termo do qual tratamos à ideia de microcosmos: ―[...] Guimarães Rosa, sem descaracterizar o sertão, transforma-o em um microcosmo, ou ainda, uma região da arte em que o mythos e o logos coexistem‖ (1991, p. 14). Henriqueta Lisboa (apud ROSA, 2009) nos oferece uma definição de visão de mundo: ―À base da criação artística existe sempre um acervo de emoções cujo índice é o próprio temperamento do indivíduo‖. E completa: ―Como se sabe, essas emoções se revelam por meio de imagens, elementos verbais, exterioridades rítmicas, incidências que resultam de uma determinada visão de mundo‖ (2009, p. XCV). Ou seja, podemos compreender, a partir da autora, que a ideia de visão de mundo está diretamente relacionada a uma economia de nossas emoções.

Para Bella Jozef (apud COUTINHO, 1991), o mundo, implicitamente a visão de mundo, é materializada através da linguagem, da forma como a língua é reorganizada por determinado autor – no caso Guimarães Rosa, ―criando suas próprias leis gramaticais‖. Nely Novaes Coelho (Idem, p. 260) fala em uma ―visão-de-mundo tradicional‖ elaborada pelos romancistas nordestinos de 1930 como ideia de uma ―visão