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Willi Bolle deu-nos o indicativo de que as leituras estilísticas e linguísticas da obra de G. Rosa ―proporcionam subsídios básicos para a compreensão do texto difícil” (2004, p. 19). A partir do caráter de ferramenta básica conferido a esta linha de estudo, observamos um novo adjunto restritivo comum dado à ficção rosiana pela fortuna crítica: o de texto difícil, que precisaria de apêndices, listas e glossários para ser lido (aliamos a esse lugar comum a necessidade de boa parte da fortuna crítica em destacar a quantidade de páginas dos seus objetos de estudo – principalmente quando se trata de Grande Sertão: veredas). A busca em esclarecer os ―procedimentos‖ lexicais,

linguísticos e estilísticos em Guimarães Rosa é tarefa da crítica desde o lançamento de Sagarana. Paulo Rónai, em texto de 1946, escreve que os pontos fracos do regionalismo, tais como ―o acúmulo de palavras, modismos e construções dialetais, a abundância da documentação folclórica e linguística suprem as falhas da capacidade criadora‖ e acrescenta que ―riqueza léxica, em particular, longe de constituir um atrativo a não ser para os estudiosos da língua, torna a obra menos acessível à maioria dos leitores‖ (RONAI apud ROSA, 2015, p. 15). Mas, logo a seguir, arremata: ―Em Sagarana, J. Guimarães Rosa afronta todos esses empecilhos‖. O escritor mineiro, como é possível ler nesse texto, destaca-se justamente na facilidade que demonstrava em aliar os recursos linguísticos à sua disposição e à técnica narrativa. M. Cavalcanti Proença é outro pioneiro nessa busca pela clareza da língua de Rosa (1958, p. 69 ss). É ele quem inaugura o uso de outro termo também repetido insistentemente pela crítica: do ponto de vista estilístico, o romance rosiano é barroco. Depois disso, surgem várias referências a essa ―característica‖ da ficção rosiana. Agora, unindo as ―características‖ do barroco aos ―procedimentos‖ de criação lexical e de construção sintática que dão origem à ruptura e particularidade da ficção rosiana, a sua fortuna crítica pode dedicar-se à construção dos catálogos e inventários pragmático-discursivos.

Edna Maria Nascimento (1998), de maneira semelhante a Teresinha Souto Ward (1984) e ao já citado Cavalcanti Proença, enumera ―técnicas‖ (colocadas entre aspas por ela mesma) – as viagens a Minas Gerais, as frequentes consultas a dicionários, o auxílio de livros especializados, o contato direto com os animais, os informantes, os glossários, a biblioteca do escritor, o conhecimento de idiomas, recortes com fotos e textos sobre animais, listas de palavras – que resultariam no armazenamento de quatorze tipos de termos (da flora, da fauna, do folclore, populares, brasileirismos, eruditos, arcaicos, técnicos, xenismos, regionalismos, expressões, provérbios, textos) a partir dos quais G. Rosa teria os componentes necessários para o ―trabalho de elaboração linguística‖ (NASCIMENTO, 1984, p. 75-76), criando um texto composto ―de vocábulos, que embora existindo efetivamente, são criados a partir de regras previstas no sistema da língua portuguesa‖. Seu trabalho consistiria em ―preencher fórmulas vazias com expressão e conteúdo únicos‖. Em seguida, a pesquisadora elenca as ―matrizes morfológicas‖, a intertextualidade e as ―formas‖ de ―transgredir o uso e o funcionamento da norma vigente‖ (1984, p. 77) utilizadas por Rosa em seus processos de criação. Metodologia semelhante utiliza Fabiana Marquezini (2006), agrupando, resumidamente, os ―procedimentos de criação verbal‖ já apontados pela crítica e outros

identificados por ela, em três categorias: léxico, sintaxe e recursos de estilo e figuras de linguagem. A novidade do trabalho de Marquezini é a correlação estabelecida pela pesquisadora entre as três categorias destacadas e o peso axiológico que elas têm em dois episódios do Grande Sertão: veredas: o acampamento do Hermógenes e o Guararavacã do Guaicuí. Segundo ela, a organização vocabular e a própria escolha das palavras carregariam sentido, existindo, no primeiro episódio, uma ―língua do diabo‖ e, no segundo, uma ―língua do amor‖. Ou seja, ela estabelece uma relação entre os significantes e os sentidos provocados a partir dos primeiros e do conteúdo mesmo dos discursos16.

João Adolfo Hansen (2000) faz uma interpretação dura de trabalhos que seguem, segundo ele, a linha ―formalista‖ de análise do texto literário. Ele escreve:

Analisando efeitos de ruptura através de exemplos linguísticos de ruptura de uma presumida norma linguística do Português do Brasil e, mais, de uma presumida norma da literariedade, e, assim, pensando implicitamente (ou não) os textos de Rosa como desvio, muita tinta já se gastou para explica-lo a partir daquilo que eles não devem ser: o texto linear, suposto existente. Nesse idealismo e conservadorismo também linguísticos, o trabalho do significante é subsumido em um interpretante ideal, apriorístico, crivo: a ruptura (que, tautologicamente, explica-se como ruptura), Já se escreveu, não sem boa vontade, um Vocabulário de Grande Sertão, catalogando-se desvios lexicais, traduzidos para incipientes leitores incipientes; também já se analisaram rupturas sintático-semânticas, descrevendo-se certo uso de usos da língua – uso portanto eminentemente contraditório – e postulando-se, como paradigmas de comparação e avaliação míticas, os nomes de Joyce e Mallarmé, outros fautores da ruptura etc. – de tal maneira que efeitos singulares de escritura – únicos, impossíveis de adequar-se a semelhanças e/ou identidades da hipotética norma linguística aplicada a modelos textuais de sua produção – passam a ser hipostasiados como atualizações particulares (rupturas) de uma má generalidade (a ruptura), por sua vez englobada na generalidade suposta da norma linguística. Assim, confunde-se certo material semiótico disponível – o signo, sua refração contraditória – com o objeto literário produzido; confunde-se um fato de língua com um fato de literatura; hipostasia-se em código o que é discurso, quando se valorizam os procedimentos e não se valorizam as práticas produtivas. Tal gênero de leitura assenta-se no idealismo em que a produção literária é conotação articulada como desvio da língua cotidiana tida como denotação; ideologicamente, implica a negação ou apagamento dos índices de contradição dos usos cotidianos da língua, transformando-os em estrutura, o que efetua a homogeneidade dos valores sociais refletidos/refratados no signo; logicamente, como decorrência – e contraditoriamente, pois tal crítica supervaloriza a ―forma significante‖ – a ironia de se descartar a escritura mesma, reduzindo-se o texto a uma espécie de parnasianismo mediador de um significado prévio (2000, p. 27-28, grifos do autor).

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Em nossas análises do livro Grande Sertão: veredas, chamamos a atenção para a centralidade da relação entre significante e construção de sentido na narrativa a partir de nossa perspectiva. Cf. na segunda parte da tese.

Hansen (2000) denuncia o tradicionalismo e elitismo velado nas análises formalistas que tratam o discurso literário em estado de gramática, as palavras em estado de dicionário. Sob o signo da ruptura, o ―formalismo‖ reifica e abstrai toda a potência plurissignificante além da força representante da língua materializada em forma literária. Esse objetivismo abstrato desconsidera as atualizações da língua em seu uso social e poético, uma poética que se constitui a partir e através do uso social da língua. Entretanto, os estudos ditos ―formalistas‖, em sua linha estilística, podem oferecer um caminho não totalmente abstracionista e, mesmo que tendamos a concordar com a análise acima, ela não responde completamente a nossa questão principal, ou seja, a crítica sem reflexão desses estudos não contribui em nenhum sentido. Assim, se tomarmos, por exemplo, a característica supostamente ―barroca‖ do texto rosiano e juntarmos a isso o pensamento de Severo Sarduy (que qualifica o romance rosiano como ―exuberância barroca‖, 1979, p. 166), poderíamos desenhar uma resposta que correlacione o sentido ético e estético da forma ou estilo rosiano, pois, segundo o autor:

[...] o barroco atual, o neobarroco, reflete estruturalmente a desarmonia, a ruptura da homogeneidade, do logos enquanto absoluto, a carência que constitui nosso fundamento epistêmico. [...] Barroco em sua ação de pesar, em sua queda, em sua linguagem afetada, às vezes estridente, multicor e caótico, metaforiza a impugnação da entidade logocêntrica que até então nos estruturava em sua distância e sua autoridade; barroco que recusa toda instauração, que metaforiza a ordem discutida, o deus julgado, a lei transgredida. Barroco da Revolução. (1979, p. 178)

Ora, os termos utilizados por Sarduy para definir o neobarroco estão muito próximos da ideia de Eduardo Coutinho, no texto já citado, de subversão da lógica- racionalista promovida pela ficção rosiana. Mais: Rosa seria barroco principalmente por conta dos procedimentos através dos quais ele elabora seus textos ficcionais (dos elementos linguísticos e estilísticos). Entretanto, escusamo-nos em utilizar a definição de ―barroco‖ para Guimarães Rosa uma vez que tal definição revela menos um procedimento do que uma abstração teoricista da ideia de barroco ou da produção rosiana17. Além disso, concordamos com Bakhtin quando ele compreende o gênero ficcional (e outros gêneros) como uma ―unidade da comunicação discursiva‖ (2016, p. 34). Essa unidade, garantida pela ―individualidade no estilo, na visão de mundo, em

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Para esta reflexão, agradecemos o aviso do professor João Adolfo Hansen que, gentilmente, leu nosso capítulo e anotou: ―O mesmo conceito de ‗barroco‘ é algo que historicamente não corresponde a nada efetivamente existente. Quero dizer: barroco é uma categoria idealista, romântico-positivista, aplicada desde o final do século XIX às artes e letras dos séculos XVI, XVII e XVIII como uma unidade que elas efetivamente não tinham nem conheciam. Eu descartaria essa noção pra falar de Rosa, que é, antes de mais nada, um autor moderno‖.

todos os elementos da ideia de sua obra‖ (p. 34), permite, através da individualidade, a criação ―de princípios interiores específicos que a separam de outras obras a ela vinculadas no processo de comunicação discursiva de um dado campo cultural‖, nesse caso específico, o barroco.

Lygia Chiappini (1998), no texto intitulado Grande Sertão: veredas – a meta-narrativa como necessidade diferenciada, parece seguir o mesmo método de inventário formal ao fazer um levantamento dos diversos comentários e intervenções do narrador Riobaldo no romance de Rosa. Mas ela lembra que sem a materialidade do cenário e realidade sertanejos, sem a armação do enredo, não se alcançam as dimensões poéticas e filosóficas do texto. Dessa maneira, não acreditamos interessante esquecer o exame do material linguístico para uma leitura de tal ficção, mas, não esquecendo a dura e necessária advertência de Hansen, uma análise ―formalista‖ não seria o método totalmente adequado para isso. Para fechar nossa questão, entendemos que os aspectos linguísticos e estilísticos da ficção rosiana podem ser abordados do ponto de vista estético e ético desde que haja um método que reúna e perceba esses aspectos de uma forma abrangente (perfeitamente alinhada aos outros aspectos estéticos e éticos do regionalismo, do tratamento dos elementos externos e da temática metafísica na ficção rosiana) e não limitadora ou castradora, sem reduzir o texto ―a uma espécie de parnasianismo mediador de um significado prévio‖. Tal método pode ser encontrado no pensamento bakhtiniano, junto com o qual pretendemos pensar a literatura de Rosa e – a partir da literatura rosiana – pensar a própria teoria, que, ao conjugar elementos linguísticos, estéticos e histórico-materiais, a partir da unidade de um determinado enunciado (o romance, o conto, a novela), oferece uma perspectiva nova da disposição da literatura em sua relação com o mundo da vida e o mundo da cultura. Perspectiva essa que tentamos demonstrar nos capítulos seguintes.

Alinhando as quatro respostas à nossa questão fundamental, obtemos um caminho para a leitura da ficção rosiana enquanto narrativa arquitetônica. Para podermos sistematizar essa nossa categoria de narrativa, precisamos polir ainda algumas poucas arestas. Há três elementos disseminados na fortuna crítica rosiana que nos intima a refletir sobre eles: a) a comparação entre G. Rosa e J. Joyce (citada por Hansen no trecho acima); b) a maneira como alguns críticos qualificam, determinam ou nomeiam as personagens sertanejas ou a realidade sertaneja ―fonte‖ da criação rosiana; e c) a

Weltanschauung etc.) ao referir-se à literatura ou processo de criação de João Guimarães Rosa.