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Como criar um gênero literário?

5.4 A FICÇÃO DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

5.4.1 Como criar um gênero literário?

Sagarana e Corpo de Baile são os dois primeiros livros de Guimarães Rosa, produzidos num intervalo de mais de vinte anos entre um e outro (Sagarana foi publicado em 1946, mas suas estórias foram produzidas em 1937) e que carregam características semelhantes nas quatro categorias que nos propusemos a analisar. Além disso, há nas duas obras um aspecto de busca, de procura por forma e linguagem ainda em construção para dizer o que ―deve‖ ser dito e como ―deve‖ ser dito – estabelecer o estilo e a visão de mundo do autor. Nas nove estórias de Sagarana, predomina o movimento, das personagens, do tempo e do espaço. A travessia de córregos, vastas extensões de terra, de estados da alma, da própria personalidade do agente. Essa travessia transcende, inclusive, o aspecto unicamente temático para se materializar através do movimento da própria temporalidade e da própria noção de espacialidade narrativos. Uma travessia que se consubstancia além das narrativas num dialogismo que se verifica com outras formas de pensamento, de linguagem, de interpretação da vida ou do próprio fenômeno estético-literário. Já as sete novelas de Corpo de Baile apresentam a predominância da comunhão entre várias instâncias míticas, literárias, históricas, metanarrativas etc. Há uma evidente preocupação com a própria existência da literatura e, junto a essa preocupação, uma vontade de carregar a arte o mais perto possível da vida – na própria continuidade que personagens têm em outras estórias. O sentimento de comunhão, união, é uma característica fundante do segundo livro de Rosa.

Tanto o movimento ou travessia de Sagarana (compreensão verificável no título, que remete a forma da Saga) quanto a comunhão de Corpo de baile (evidente também já no título ou nos títulos, sempre dispostos dois a dois – Manuelzão e Miguilim”; “No Urubuquaquá, No Pinhém –, ou no plural – Noites do Sertão) revelam uma aura de experimento, de um processo alquímico inicial nos textos dessas duas obras. Em Sagarana e Corpo de Baile, presenciamos um laborioso processo de construção de uma prosaística que não teria mais retorno, que tomou de assalto seus leitores e críticos, dividindo opiniões e gerando polêmicas abertas até hoje – setenta e tantos anos depois. Quando lemos, por exemplo, a carta a João Condé publicada na edição de Sagarana na qual Guimarães ―explica‖ o processo de criação daqueles contos, percebemos uma premeditação, uma vontade de criação que transcendia a mera representação regionalista ou estilização linguística. Há em Guimarães Rosa uma preocupação com o humano, com sua visão de mundo já bem definida no seu primeiro livro.

Na segunda parte desta tese, as nove estórias de Sagarana serão analisadas nos três primeiros capítulos. Sob a ótica do cronotopo, veremos: ―O Burrinho Pedrês‖, ―A hora e vez de Augusto Matraga‖ e ―Sarapalha‖. Há uma aproximação estrutural entre essas três estórias, na maneira como a temporalidade e a espacialidade é representada, que é fundamental para compreendermos como a narrativa arquitetônica se materializa de forma única através do cronotopo. A compreensão da relação entre tempo e espaço como uma ideologia modeladora de gênero, que discutimos nos capítulos anteriores, é evidenciada nessas três narrativas de forma paradigmática na primeira obra de Guimarães Rosa.

Em ―O Burrinho Pedrês‖, acompanhamos o transporte de uma boiada e o retorno dos vaqueiros para a fazenda; em ―Sarapalha‖, temos o caminho da doença materializado através do movimento das ervas daninhas e dos animais ―engolindo‖ a vila e a vida das pessoas; na estória de Augusto Matraga, vemos várias travessias, geográficas e simbólicas, na transformação de Augusto Esteves em Matraga. Um aspecto que chama atenção em Sagarana é a presença do burrinho que tem a função de levar, mover, carregar as pessoas e transformar seus destinos, no primeiro e no último conto do livro. Nas três narrativas, observamos a relação entre o tempo e o espaço como agentes diretos na transformação dos caminhos das pessoas: em ―O Burrinho‖, a chuva; em ―Sarapalha‖, o clima; em ―Matraga‖, a cicatrização das feridas. Nas três narrativas, o herói e autor estão em lugares distintos, são consciências equipolentes. O narrador

observa e deixa que as personagens ajam elas mesmas a partir de suas próprias convicções, deixa que o próprio espaço aja de acordo com suas próprias convicções: o burrinho age com sua sabedoria; os primos e as plantas agem de acordo com a maleita, que governa suas ações; Augusto age como Esteves e como Matraga. Essas características alinhadas ao tratamento com as palavras e o tom emotivo-volitivo interligado ao cronotopo e às ações é o que determina essas estórias como narrativas arquitetônicas: o tom das palavras e sua organização poética, métrica e ritmada em o burrinho pedrês; a maleita que impregna as palavras, a pontuação dos períodos em ―Sarapalha‖; a ambiguidade que domina o tom das palavras em Matraga. Todos esses elementos são inextrincáveis nesses três contos.

Para compreendermos a relação entre autor e herói na narrativa arquitetônica em Sagarana, leremos: ―Duelo‖, ―A volta do Marido Pródigo‖ e ―Corpo Fechado‖. Nessas narrativas, a maneira como o agir ético e o ato responsável estão relacionados com os agentes demonstra como há a disposição em sedimentar uma visão de mundo específica através de uma moral que se materializa nas relações entre autor- criador e personagens como consciências equipolentes. A palavra e o tom emotivo- volitivo serão analisados com maior ênfase em: ―São Marcos‖, ―Conversa de Bois‖ e ―Minha Gente‖. ―São Marcos‖, por exemplo, explora a palavra e a entonação de forma que a experiência da personagem cega se deixa plasmar na própria narração, na própria linguagem.

Sagarana, à semelhança de saga, carrega-nos por um universo de narrativas para nunca mais voltarmos ao ponto de origem. O convite sarcástico da raposa cinza na epígrafe do livro cumpre-se: a raposa nos devora num caminho repleto de caminhos outros que nos modifica. A obra inicial de João Guimarães Rosa é uma narrativa arquitetônica sertaneja que guarda o gérmen do novo gênero literário criado por ele.

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Corpo de Baile foi divido em três volumes: Miguilim e Manuelzão, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão, como vimos acima. O primeiro volume com duas novelas: ―Campo Geral‖ e ―Uma Estória de Amor‖; o segundo com três: ―Recado do Morro‖, ―Cara-de-bronze‖ e ―A estória de Lélio e Lina‖; e o terceiro com duas: ―Lão-Dalalão (Dão-lalalão)‖ e ―Buriti‖. Há uma visão cíclica no livro, entre as sete novelas, parecida com Sagarana. Enquanto no primeiro livro temos o burrinho abrindo e fechando os contos, em Corpo de Baile temos Miguel em ―Buriti‖, última narrativa, que começa Miguilim na primeira novela – ―Campo Geral‖. Outras

personagens aparecem em diferentes novelas ao logo do Corpo de Baile. Esse cuidado com as personagens, esse jogo construído por Guimarães Rosa, demonstra uma tomada de consciência diante de sua criação: a narrativa arquitetônica.

Claudia Campos Soares (2007) demonstra em alguns de seus textos sobre as narrativas de Corpo de Baile a interligação que existe entre as sete novelas. A presença de personagens em diferentes estórias, a menção a lugares e nomes ao longo das narrativas etc. A autora menciona as conexões místicas entre o número sete das quantidades de novelas com os planetas da cosmologia, os jogos simbólicos com os nomes das personagens; as próprias viagens das narrativas parecem seguir o crescimento humano, quase como o enigma da esfinge de Édipo: o ―Campo Geral‖ é uma estória de crianças, com crianças; enquanto as narrativas vão avançando, os temas vão tornando-se ―adultos‖ até chegar às narrativas eróticas de Buriti. De forma semelhante, Heloísa Vilhena de Araújo76 demonstra a carga filosófica e mítica (mística também) que coliga as sete estórias de Corpo de Baile, as epígrafes, as notas. Inclusive a organização do sumário.

A harmonia sugerida no título original das sete narrativas é acompanhada em toda a estrutura das novelas como um coreografado baile em que os corpos viajam pelos campos gerais, sertão adentro. As características da narrativa arquitetônica estão fortemente marcadas nas narrativas de Corpo de Baile em cada uma das novelas. Essa harmonia reforça a noção de cronotopia, um tempo-espaço que se apresenta como interno e externo, como um guia para a compreensão dos enredos numa teia de fabulações ornadas sob um intenso trabalho linguístico e narrativo. Mesmo com uma carga simbólica poderosa, Heloísa Vilhena avisa: ―Corpo de Baile – nunca é demais dizê-lo – pode ser lido sem perder nada do seu encanto, de sua beleza e de sua poesia, mesmo não se dando conta o leitor de seu arcabouço de cultura clássica‖. Um aviso que acusa a lucidez da ensaísta diante do objeto literário, que completa:

Penso, algumas vezes, que deve mesmo ser lido desta maneira: sobressai, assim, seu belo aspecto literal, concreto – em traços fortes –, ressaltado e avivado por um fundo de meditação, de pensamento, por uma profundidade, por uma indicação de universalidade, não diretamente percebidas (p. 13). Boa parte da fortuna crítica lida sobre Corpo de Baile trata, e isso é recorrente para a fortuna de outras obras de Guimarães Rosa, do espaço: o sertão. O espaço atrasado, distante, mágico, bláblá bláblá, que tanto comove os críticos da cidade

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grande. Junte-se a esse panegírico da ignorância sobre o próprio território brasileiro, e de louvação às forças centrípetas que orientam esse panegírico, o mesmo ar de encantamento pelos tipos pobres, pela violência, pela falta de educação formal que degrada o Estado democrático de direito e encoleriza apaixonadamente os intelectuais, chegando ao ponto de esmurrarem as suas mesas de mogno dentro de suas bibliotecas em altos edifícios cheios de câmeras de vigilância e granito.

Outro aspecto que muito agrada a fortuna crítica de Corpo de Baile são as ―camadas‖ de leitura, as pistas místico-religiosas que estão espalhadas pelas novelas, a realidade histórico-social, as vozes dos vaqueiros e coronéis e meninos e velhos que ressoam nos gerais. A própria maneira de organização das narrativas, a ordem de leitura que ―deve‖ ser empreendida para uma compreensão global do Corpo de Baile, é também foco de algumas das críticas realizadas para o livro. O professor Silvio Holanda (2008; 2012), em dois textos muito semelhantes, aborda a necessidade da leitura totalizante na obra literária a partir de sua compreensão da Teoria de Hans Robert Jauss. Ele faz ainda um breve levantamento da fortuna crítica de Corpo de Baile, marcando os temas que mais são abordados pelos críticos. Além dos já mencionados por nós, temos o tema do amor – abordado por Benedito Nunes. Isso faz com que outra questão se presente ao tratarmos de Corpo de Baile, que foi publicado em janeiro de 1956: a estória de Riobaldo seria uma das novelas do Corpo de Baile, mas que ganhou uma extensão assustadora e acabou ganhando vida própria, sendo publicada em livro separadamente no mesmo ano. Esta questão, para nós, é de suma importância para refletirmos sobre a criação do novo gênero literário, a narrativa arquitetônica.

A maneira como as novelas de Corpo de Baile e o romance de Riobaldo estão construídos, a partir de uma série de inovações formais – todas elas sendo características que atribuímos à narrativa arquitetônica – e com uma profunda aproximação temática diferindo, em certa medida, tanto dos contos de Sagarana como dos contos curtíssimos de Primeiras Estórias e Tutameia, reforça a nossa hipótese de criação de um novo gênero e da consciência que Guimarães Rosa tomou dessa criação depois da produção de Sagarana ou durante a produção de Corpo de Baile. Portanto, esse livro é fundamental para a nossa análise. Ao lermos a correspondência de Guimarães Rosa com o tradutor italiano Edouardo Bizzarri, como falamos no terceiro capítulo desta tese, percebemos o cuidado e a preocupação milimétrica de Rosa com a manutenção de sua cosmovisão, com a palavra e com o tom emotivo-volitivo que tal ou

tal passagem poderia perder na tradução. Essa preocupação demonstra a necessidade de perceber, nos detalhes e no todo, a novidade que é a narrativa de Rosa.