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4.5 TENTATIVAS DE SALVAÇÃO: CAMINHOS PARA UMA NARRATIVA ARQUITETÔNICA –

4.5.1 Cronotopo

O conceito de cronotopo formulado por Bakhtin apresenta um aspecto fundamental para orientarmos nossas análises da ficção de João Guimarães Rosa, como já vimos em momentos anteriores deste trabalho sob perspectivas diferentes. Nesse caso, partimos de duas noções diferentes do conceito de cronotopo: uma orientada para a relação entre forma composicional e forma arquitetônica, que é compreendida através de uma ―relativa estabilidade de gênero‖; outra vinculada à noção de motivo cronotópico, que é atualizada em uma dada obra literária. Os dois sentidos não se excluem, não se separam, não se opõem. Fundamentamos nossa orientação em dois textos de Bakhtin:

[1. Problemas da Poética de Dostoiévski] Por sua natureza mesma, o gênero literário reflete as tendências mais estáveis, ―perenes‖ da evolução da literatura. O gênero sempre conserva os elementos imorredouros da archaica. É verdade que nele essa archaica só se conserva graças à sua permanente renovação, vale dizer, graças à atualização. O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce e se renova em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um dado gênero. Nisto consiste a vida do gênero. Por isso, não é morta nem a archaica que se conversa no gênero; ela é eternamente viva, ou seja, é uma archaica com capacidade de renovar-se. O gênero vive do presente mas sempre recorda o seu passado, o seu começo. É o representante da memória criativa no processo de desenvolvimento literário. É precisamente por isto que tem a capacidade de assegurar a unidade e a continuidade desse desenvolvimento. (2008, p. 121, grifos do autor)

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O cronotopo se alinha às respostas a e b, relativas à temática do regionalismo (como nas páginas 59 e 99 acima).

[2. Formas de Tempo e Cronotopo no Romance] Nos limites de uma única obra e da criação de um único autor, observamos uma grande quantidade de cronotopos e as suas inter-relações complexas e específicas da obra e do autor, sem que um deles é frequentemente englobador ou dominante [...] Os cronotopos podem se incorporar um ao outro, coexistir, se entrelaçar, permutar, confrontar-se, se opor ou se encontrar nas inter-relações mais complexas. Estas inter-relações entre os cronotopos já não podem surgir em nenhum dos cronotopos isolados que se inter-relacionam. O seu caráter geral é dialógico (na concepção ampla do termo). Mas esse diálogo não pode penetrar o mundo representado na obra nem em nenhum dos seus cronotopos: ele está fora do mundo representado, embora não esteja fora da obra no seu todo. Esse diálogo ingressa no mundo do autor, do intérprete e no mundo dos ouvintes e dos leitores. E esses mundos também são cronotópicos. (2010, p. 357, grifo do autor).

Bemong e Borghart (2015) falam de quatro níveis de sentido do conceito de cronotopo em Bakhtin: 1. ―eles têm significado na geração da narrativa do enredo; da trama‖; 2. ―têm significado representacional‖; 3. ―fornecem a base para distinguir tipos de gêneros‖; 4) ―têm significado semântico‖. Embora discordemos do desenvolvimento abstrato-conceitual que os autores dão ao seu texto, esses quatro níveis de compreensão do conceito de cronotopo em Bakhtin servem-nos para definirmos como o cronotopo pode ser aplicado como uma categoria de análise da narrativa arquitetônica em João Guimarães Rosa. Os sentidos 2 e 4, na classificação acima, fazem referência a sentidos específicos de situações espaço-temporais narrativas (2), como, por exemplo, o cronotopo da estrada, ou como escrevem outros leitores de Bakhtin, motivo da estrada; ou a um sentido amplo da ideia de cronotopo (4) como compreendemos da citação acima do texto ―Formas de Tempo e Cronotopo‖, quando Bakhtin escreve que os mundos dos leitores, ouvintes etc. também são ―cronotópicos‖.

São os sentidos 1 e 3 que nos servem como base para analisarmos alguns aspectos da narrativa arquitetônica rosiana que renova a temática regionalista na tradição brasileira e, de forma inovadora, transforma essa temática numa concepção-de- mundo (vemos aqui o cronotopo no primeiro sentido – relativa estabilidade de gênero) e a construção de uma temporalidade e espacialidade abertas à eventicidade com uma forte consciência histórica do tempo (cronotopo no segundo sentido – motivos cronotópicos atualizados). Entretanto, uma vez que entendemos a narrativa arquitetônica como um passo à frente da narrativa polifônica, precisamos identificar como o cronotopo, segundo Bakhtin, se comporta nesse tipo de gênero para, aliando às especificidades do gênero de Rosa, podermos alinhar nossa perspectiva teórico-crítica.

Em Problemas da Poética de Dostoiévski,(2008) Bakhtin relaciona duas formas archaicas (Bakhtin utiliza esse termo ―no sentido etimológico grego como

Antiguidade ou traços característicos e distintos dos tempos antigos‖, como nos informa o tradutor Paulo Bezerra, nota 01, p. 121): o sério-cômico, e todos os gêneros que podem ter originado e atualizado esse gênero – principalmente o diálogo socrático e a sátira menipéia; e a carnavalização na literatura, que funciona como uma cosmovisão, segundo Bakhtin, que influenciará a literatura moderna em vários níveis de composição e de traços configuradores de gênero. O que queremos destacar aqui é que, segundo o crítico russo, essas formas influenciaram diretamente (seja enquanto gênero literário, seja enquanto obras que Dostoiévski conhecia ou poderia conhecer) a criação do romance polifônico. Há elementos estruturadores desses gêneros e formas que, para Bakhtin, serviram como base, como fundamento para que, através da criatividade de Dostoiévski e de seu profundo conhecimento das consciências dos homens, surgisse um gênero autenticamente novo de romance, o romance polifônico. Não queremos, é preciso dizer, encontrar essas mesmas origens no romance arquitetônico de João Guimarães Rosa, mas, através de elementos cronotópicos como elementos estáveis dos gêneros verificados por Bakhtin na literatura de Dostoiévski, podemos encontrar uma atualização para o surgimento do romance arquitetônico em Guimarães Rosa.

Podemos identificar na obra de Rosa, por exemplo, alguns recursos da sátira menipéia como o místico-religioso com uma função ―puramente ideológica de provocar e experimentar a verdade‖ (2008, p. 130) ou ―polêmica aberta e velada‖ com ―senhores de ideias em todos os campos da vida social e ideológica‖ (2008, p. 135) ou, se pensarmos no carnaval como Bakhtin escreve: ―É evidente que o carnaval, strictu sensu, e outros festejos de tipo carnavalesco [...] continuam até hoje a exercer influência na literatura‖ (2008, p. 150). Ele continua, porém, escrevendo que essa influência se ―limita ao conteúdo das obras sem lhes tocar o fundamento do gênero, ou seja, carece de força formadora de gênero‖. Nesse ponto, entretanto, discordamos de Bakhtin e acreditamos que na narrativa arquitetônica rosiana há elementos de festas populares carnavalescas (no sentido bakhtiniano de universal e popular) que modelam o novo gênero e influenciam diretamente na configuração da Weltanschauung rosiana, como a entendemos. Mesmo ao partirmos da compreensão bakhtiniana do romance polifônico de Dostoiévski para pensarmos o romance arquitetônico de João Guimarães Rosa, não perdemos de vista a principal diferença entre os dois escritores: Guimarães não era europeu. Bakhtin nos ajuda nesse sentido:

Ligando Dostoiévski a uma determinada tradição, nós, naturalmente, não limitamos no mínimo grau sequer a profundíssima originalidade e aa

singularidade individual de sua obra. Dostoiévski é o criador da autêntica polifonia, que, evidentemente, não havia nem poderia haver no ―diálogo socrático‖, nem na ―sátira menipéia‖ antiga, nem nos mistérios medievais, nem em Shakespeare, Cervantes, Voltaire e Diderot e nem em Balzac e Victor Hugo. Mas a polifonia foi preparada essencialmente nessa linha de evolução da literatura europeia. Toda essa tradição, começando com os ―diálogos socráticos‖ e a menipéia, renasceu e renovou-se em Dostoiévski na forma singularmente original e inovadora do romance polifônico. (2008, p. 150)

Ou seja, embora tenhamos o romance polifônico e sua linha cronotópica de atualização em nosso horizonte como traços também constituintes do romance arquitetônico, esse novo gênero só é possível a partir de outra tradição, como já reiteramos: a tradição latino-americana e, principalmente, brasileira – tradições que não se excluem, mas convivem unicamente em nossa literatura (não europeia) de forma dialógica.

O cronotopo como categoria de análise do romance arquitetônico de Guimarães Rosa deve considerar as estruturas que se aliam à forma do romance polifônico e suas origens – não esquecemos aqui também das influências literárias e filosóficas de Guimarães Rosa que já foram investigadas minuciosamente pela professora Suzy Frankl Sperber (1976) –, bem como não podemos deixar de avaliar elementos que Bakhtin não tinha como considerar: as formas populares brasileiras, as informações que Guimarães Rosa recebia de seu pai Florduardo66 (os causos), e, obviamente, a temática regionalista da tradição literária brasileira.

Aliando os dois sentidos de cronotopo à concepção de mundo de Rosa e aos outros aspectos que mencionamos, poderemos avaliar em que medida a inovação rosiana pode ter de simples atualização de um elemento histórico tradicional (europeu ou não) ou de novidade na relação entre concepção de mundo e forma literária; bem como os motivos cronotópicos podem ser verificados a partir dessa mesma baliza, de forma, mais uma vez, dialógica.