• Nenhum resultado encontrado

Quanto à aproximação entre G. Rosa e J. Joyce, há dois textos importantes: ―A linguagem do Iauaretê‖, de Haroldo de Campos, e ―Um lance de ‗dês‘ no Grande Sertão‖, de Augusto de Campos (apud ROSA, 2009). Existem outros, mas entendemos as abordagens dos irmãos Campos como intervenções mais sóbrias de comparação entre as obras de Joyce e Rosa. Outros críticos, como Euryallo Cannabrava ou Bernardo Gersen (apud ROSA, 2009), apenas sugerem uma aproximação entre o mineiro e o irlandês. Os Campos demonstram essa aproximação. Mesmo que G. Rosa tenha dito que ―Não estão certos, quando me comparam com Joyce‖ (2009, p. LIII), seria interessante uma investigação dos elementos que levam a crítica rosiana a estabelecer um vínculo entre os dois autores.

O professor Hansen (2000) sugere que essa aproximação entre Joyce e Rosa seria uma necessidade de comparação e avaliação entre Rosa e outros ―míticos fautores da ruptura‖, uma ruptura que não se justificaria fora da suposição de uma norma linguística e estética estanque e tradicional ou da suposição de um projeto de ruptura empreendido por tais autores. Entretanto, quando Augusto, principalmente, e Haroldo de Campos recuperam essa aproximação, eles parecem interessados mais numa coincidência estética do que na comparação per si e menos ainda numa relação paradigmática e filial entre Rosa e Joyce. Quando, por exemplo, Augusto de Campos escreve que

A relevância de estudos comparativos como esse [entre Um coup de dés de Mallarmé e Finnegans Wake de J. Joyce] não está em descobrir influências, para efeito de biografia ou de genealogia literária, mas em estabelecer nexos de relação estética, que nos permitam discernir, no campo geral da literatura e das artes, uma evolução de formas, e através desta, melhor compreender e situar histórica e criticamente, os fenômenos artísticos. (2009, p. CLXXX)

Destarte, haveria o recurso a uma ruptura com a linguagem tradicional por parte de Joyce na criação das palavras portmanteau, como escreve Augusto de Campos, e que seria também utilizado por Guimarães Rosa. Mas a coincidência principal entre os dois, explica o crítico concretista, é ―em primeiro lugar, a atitude experimentalista perante a linguagem. Esta é, em sua materialidade, plasmada e replasmada, léxica e

sintaticamente‖ (2009, p. CLXXXI). Haroldo de Campos diz que os escritores que tentaram beber na fonte de Joyce usaram algumas de suas técnicas, como o monólogo interior, a montagem cinematográfica, a ruptura da linearidade, ―mas a pedra-angular da empreitada joyciana, fulcrada na criação de um novo léxico, feito de contínuas invenções semânticas, esta permaneceu quase sempre relegada, marco de um desafio temível, que era mais fácil contornar do que enfrentar‖ (2009, p. CCXXXVIII). E quando Haroldo de Campos diz que Guimarães Rosa alcançou ―uma realização plena, definida e definitiva‖ (2009, p. CCXXXIX) da tal empreitada, ele, diferente de Augusto, estabelece uma relação mais diretiva entre os autores. Ora, já discutimos aqui a necessidade de redimensionamento da língua brasileira postulada nos projetos estético e ideológico do Modernismo brasileiro. Mário de Andrade e Oswald de Andrade, em Macunaíma e Memórias Sentimentais de João Miramar, respectivamente, assim como em seus textos em verso, realizam uma chamada ―ruptura‖ com a linguagem tradicional e normativa. O próprio Augusto de Campos (2009) lembra o nome dos dois modernistas no início do ensaio do qual tratamos aqui. Colocaríamos, assim, numa mesma esteira ou projeto estético os poetas e prosadores que, como Mallarmé e Joyce, redimensionaram formas literárias através de experimentalismos linguísticos ou de uma ―mimese de produção‖ – para dizer com Luiz Costa Lima (2003). Não nos interessa, entretanto, reiterar ou negar esse vínculo, mas, na esteira do que dissemos em nossa quarta resposta sobre as questões estilísticas e linguísticas no sentido estético e ético da ficção rosiana, interessa-nos compreender que a invenção lexical e sintática de Rosa, assim como a de James Joyce, Mallarmé, Oswald e Mário de Andrade, José Maria Arguedas, entre outros, tem relação não com a ideia de ruptura como moda, mas com uma necessidade, verificada pelo autor-criador, existente no próprio texto, na própria forma, no próprio conteúdo representante18. Adverte ainda Augusto de Campos: ―Como acontece com Joyce, em Guimarães Rosa nada ou quase nada parece haver de gratuito. As mais ousadas invenções linguísticas estão sempre em relação isomórfica com o conteúdo‖ (2009, p. CXC). A transformação ou metamorfose do homem em jaguar no conto ―Meu tio o Iauaretê‖, como analisa Haroldo de Campos (2009), é uma metamorfose através da linguagem. A percepção desse uso da linguagem transcende a compreensão ou comparação formalista e faz-nos pensar em uma maneira diferente de construir a ação narrativa. Para Rowland (2011), essa metamorfose através da

18

Bakhtin, na epígrafe que pusemos na Introdução, diz que o grande artista desperta as potencialidades de sentido jacentes nos gêneros, nas formas literárias.

linguagem, no final do conto, levanta também o problema do limite e da ausência de ―closure‖ no texto rosiano, chamando atenção para o objeto livro, além do texto. Ela escreve:

A dificuldade é estamos perante um texto que efetivamente encena a coincidência entre metamorfose e morte, não sendo certo, no entanto, que esse duplo momento seja apresentado ou, até, representado – o momento em que o texto mergulha no silêncio, no vazio da página, é também aquele que deixa inconclusa e ainda ilegível a metamorfose do ato. Aqui, o diálogo oculto denuncia abertamente a problematização do limite (e dos limites: início e fim da mancha gráfica), de forma a não poder ser de todo ignorado e a estabelecer uma das figurações mais explícitas na obra de Rosa de uma situação de indecidibilidade: algo acontece, no final do conto, na fala e por ação da fala, e esse acontecimento é incompatível com a continuação do discurso – é a sua interrupção (2011, p. 82)

A palavra deixa de ser meio (pensando a partir de termos da Poética aristotélica) de expressão para ser materialização e comunhão do objeto de expressão – o ser humano. Os dois, palavra e ser humano, convergem e agem. Essa técnica, usada por todos aqueles escritores, principalmente Joyce e Rosa, não generaliza e iguala, mas particulariza cada ficção ou poética. Pois, se há uma similaridade entre os dois autores, ela não revela um objetivo comum, mas, como dissemos anteriormente ao tratar das aproximações entre Rosa e Dostoiévski, há também aqui uma incorporação e até superação da forma rosiana com relação à forma joyceana – como veremos mais abaixo. Joyce, como lembra Augusto de Campos, foi mais fundo no experimentalismo linguístico do que Rosa (2009, p. CCI) e, como escreve João Cabral de Melo Neto, João Guimarães Rosa

escrevia numa língua fabricada! Tinha o gênio. Um gênio que nem sempre Joyce tinha. Joyce, quando inventava uma palavra, essa palavra não parecia irlandesa. Essa palavra parecia cosmopolita. Agora, quando Guimarães

Rosa inventa uma palavra, essa palavra parece caipira de Minas. Então, todo mundo vê aquilo e pensa que é uma expressão que ele ouviu em Minas. Eu o conheci muito bem, e ele falava pra você: ―Não, essa palavra eu

fiz‖ (CABRAL apud TELES, 2012, p. 16, grifo nosso).

As comparações entre Rosa e Joyce parecem refratar ou refletir mais uma necessidade da crítica do que qualquer outra coisa. Na tese de Caetano Waldrigues Galindo (2006), sobre James Joyce, por exemplo, o nome de Guimarães Rosa aparece apenas duas vezes e numa referência a uma tradução brasileira de Joyce, que usou, segundo o autor, procedimentos semelhantes aos de Rosa. Mesmo assim, não há qualquer intenção em aproximar Joyce e Rosa. Com isso, queremos marcar apenas que enquanto a crítica joyceana pouco lembra de Guimarães Rosa, a crítica rosiana insiste

(ou insistiu por um tempo) numa filiação ou relação, coisa que, acreditamos, tem muito mais a ver com certa dependência colonial de setores da intelligentsia brasileira. A citação de João Cabral de Melo Neto nos remete à oposição tão batida por essa mesma fortuna crítica entre o regional e o universal ou cosmopolita e a necessidade em marcar Rosa como universal, sendo, pois, o regional algo nocivo à literatura brasileira. O poeta pernambucano faz o caminho contrário ao de boa parte da crítica e coloca a marca regionalista como positiva para Rosa.