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O primeiro passo no sentido de obter nossas respostas é sugerido pelo próprio Hansen imediatamente depois do último trecho que citamos: ―Ela [a intervenção de Rosa] deixa para trás o realismo, como já foi indicado por críticos como Antonio Candido, Paulo Rónai e Eduardo Coutinho‖ (2000, p. 121). Resta-nos entender como o realismo foi superado por Rosa. É, pois, com esses três críticos que iniciaremos nosso

percurso – uma exposição dialogada entre os autores e nossas próprias considerações, que, antes de apontarem para qualquer conclusão fechada sobre a ficção rosiana, serão direcionadas para a problematização de cada temática levantada pela crítica a fim de estabelecerem eixos de compreensão e desdobramentos.

Os três críticos têm ideias semelhantes em suas intervenções sobre Rosa a que tivemos acesso. Antonio Candido trata, nos textos lidos (CANDIDO, 1989; 2009; 2000; 1995; 2002; 1995), quase especificamente da capacidade que o escritor teve para superar o realismo, como destaca Hansen (2012); o pendor nacionalista incrustado na ideologia de ―país novo‖ e o engajamento inevitável na ideologia de um país que se percebe subdesenvolvido. Esses três movimentos sendo fatores de implosão de qualquer força encontrada no tratamento regional na literatura brasileira, mas, destaca Candido, Rosa supera-os todos através, exatamente, do regionalismo ou de um regionalismo que estabelece um vínculo universal com o humano transcendendo todas as muletas que alijavam o regionalismo até então. Entre essas muletas, está a postura do escritor na representação da linguagem popular em oposição ao estilo culto do narrador, observador urbano e ―superior‖, como na literatura de Coelho Neto – postura apontada, por Candido, como uma característica negativa na literatura regionalista. A superação da distância entre o narrador culto e a personagem popular, existente já no estilo de Simões Lopes Neto, é marca do estilo de Guimarães Rosa. O estilo rosiano também consegue elevar o grau de caracterização de personagens como o jagunço a um nível universalizante, superando, portanto, o simples documento ou a referencialidade social ou histórica. Paulo Rónai, principalmente nos prefácios às obras de Rosa (2015, p. 15- 20; 2001; 2014, p. 15-60), destaca, além da superação do realismo, a possibilidade de encontrar o próprio autor em algumas de suas obras (possibilidade essa da qual discordamos7), a invenção linguística e a ausência de ideologia ou engajamento (como já percebera Bolle, como tendência da crítica) e acrescenta dois outros pontos, também tratados por Candido e por Eduardo Coutinho: o de protagonismo do leitor como coprodutor das obras e o da existência de uma visão de mundo ou cosmovisão que particulariza o universo literário rosiano. Como já indicado, Coutinho8 (2009; 2013) destaca os mesmos pontos além da superação ou da quebra da hegemonia da lógica racionalista colocada, na obra rosiana, lado a lado com a concepção mítico-sacral, o que

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Para nós, há uma distinção clara entre o autor-homem e o autor-criador. Ou seja, elementos biográficos não são totalmente determinantes para a compreensão do texto. Essa distinção será aprofundada quando tratarmos da narrativa arquitetônica no terceiro capítulo desta primeira e na segunda parte da tese.

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marcaria a cosmovisão do ficcionista em questão. Assim, nosso problema parece apontar para uma primeira resposta parcial, se, aos pontos destacados por esses críticos, for acrescentada a conclusão de Hansen (que nos levou a esses destaques) sobre a crítica rosiana:

[...] frente às formas com que o autor Rosa indetermina as representações realistas, a crítica brasileira costuma enfatizar questões temáticas, interpretando conteúdos dos textos por meio de sistemas não literários, principalmente por meio da sociologia pau-pra-toda-obra que, quase sempre, continua presa ao conceito de linguagem literária do século XIX, propondo a representação realista como horizonte da ficção. [...] Quando interpreta a forma literária de Rosa como reflexo realista do sertão empírico e expressão alegórica de conteúdos de sistemas simbólicos não literários, a crítica reduz sua forma a instrumento, lendo o texto literário documentalmente como não literário, sem considerar que literatura não é coisa representada, mas coisa

representante (2012, p. 127, grifo nosso).

Antonio Candido, no prefácio à Formação da Literatura Brasileira (2007), cria uma imagem: a tradição é como uma tocha passada de mão em mão entre corredores, que percorrem o tempo. A partir dessa imagem, é possível pensar que, mesmo havendo ruptura, há sempre algo com o que romper e com o que continuar, ou seja, a transformação é construída em oposição a algo passado e já em desgaste, que, por ser um oposto, contém em si esse passado – numa relação de complementaridade (não dá para romper e continuar rompido, a partir do esquecimento). Essa ruptura/continuidade existe em vários sistemas de pensamento e arte ao longo da história do Ocidente, na permanente querela entre os antigos e os modernos9. Destarte, a construção de uma literatura que continua na tradição literária causando uma ruptura não é desconhecida por nós. As vanguardas europeias, para dar mais um exemplo, motivaram a ruptura em determinados sistemas literários do Ocidente e suas inovações foram sentidas apenas parcialmente, embora o senso comum acredite na total libertação e renovação (a ideia de que as propostas de vanguardas europeias, como o Futurismo, foram totalmente integradas à literatura paulistana do início do século XX, nas obras de Oswald de Andrade e outros autores, disseminada nas salas de aula do Ensino Médio, baliza o senso comum ao qual nos referimos). De qualquer forma, a narrativa rosiana estabeleceu, como vimos, uma nova maneira de compreensão do regionalismo em literatura. Essa novidade está diretamente relacionada ao aviso permanente, mesmo sendo ignorado muitas vezes, de que ―literatura não é coisa representada, mas coisa representante‖. Isso (o ―novo regionalismo‖) está contido na construção de um projeto

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estético-político e ideológico de renovação da linguagem e de renovação do tema. Nesse sentido, poderíamos dizer, junto com o próprio embaixador, que Guimarães Rosa é um ―reacionário‖ (no sentido que o próprio Guimarães Rosa utiliza a palavra, na entrevista a Lorenz: ―Se tem de haver uma frase feita, eu preferia que me chamassem de reacionário da língua, pois quero voltar cada dia à origem da língua, lá onde a palavra ainda está nas entranhas da alma, para poder lhe dar luz segundo a minha imagem‖ – 2009, p. LIII) não apenas da língua, mas do aspecto temático brasileiro na literatura – o regionalismo, o sertão – que, desde José de Alencar, é permanente em nosso sistema, para pensar novamente com Antonio Candido. Seja sur-regionalismo, super-realismo, super-regionalismo ou trans-regionalismo, a literatura rosiana está inserida no sistema literário brasileiro anterior a ele e, como vai indicar o próprio ensaísta paulistano, constrói influências posteriores – não apenas no Brasil:

Talvez este tipo de feroz realismo [na literatura da década de 1970] se perfaça melhor na narrativa de primeira pessoa, dominante na literatura brasileira atual, em parte, como ficou sugerido, pela provável influência de

Guimarães Rosa. A brutalidade da situação é transmitida pela brutalidade do seu agente (personagem), ao qual se identifica a voz narrativa, que assim descarta qualquer interrupção ou contraste crítico entre narrador e matéria narrada. Na tradição naturalista o narrador em

terceira pessoa tentava identificar-se ao nível do personagem popular através do discurso indireto livre. No Brasil isso era difícil por motivos sociais: o autor não queria arriscar a identificação do seu status, por causa da instabilidade das camadas sociais e da degradação do trabalho escravo. Por isso usava a linguagem culta no discurso indireto (que o definia) e incorporava entre aspas a linguagem popular no discurso direto (que definia o

outro); no indireto livre, depois de tudo já definido, esboçava uma prudente

fusão. / Daí o cunho exótico do regionalismo e de muitos romances de tema urbano. O desejo de preservar a distância social levava o escritor, malgrado a

simpatia literária, a definir a sua posição superior, tratando de maneira

paternalista a linguagem e os temas do povo. Por isso se encastelava na terceira pessoa, que define o ponto de vista do realismo tradicional. / O esforço do escritor atual é inverso. Ele deseja apagar as distâncias sociais, identificando-se com a matéria popular. Por isso usa a primeira pessoa como recurso para confundir autor e personagem, adotando uma espécie de discurso direto permanente e desconvencionalizado, que permite fusão maior que a do indireto livre. Esta abdicação estilística é um traço da maior importância na atual ficção brasileira (e com certeza também em outras) (1989, p. 212, grifos do autor, negrito nosso).

Acima, nós falamos do aspecto negativo da literatura de Coelho Neto, demonstrado por Candido em outro texto e que é novamente mencionado quando ele diz da necessidade do escritor em ―definir a sua posição superior, tratando de maneira paternalista a linguagem e os temas do povo‖ (1989, p. 212). Agora, tentando seguir o mesmo raciocínio de Antonio Candido, no trecho grifado por nós, mas destoando um pouco à esquerda, acreditamos que as inovações trazidas por Guimarães Rosa na

linguagem e no tratamento temático, além da visível mudança de ―identificação‖, como escreve o professor, com a personagem, manifestaram-se com mais ímpeto não somente na literatura brasileira posterior, mas, de maneira mais marcante, na música brasileira através do movimento denominado mangue beat, com Chico Science, Mundo Livre e Nação Zumbi, Cordel do Fogo Encantado, Cabruêra, Dr. Raiz, entre outros grupos e artistas que renovaram através da linguagem (musical) e no tratamento temático, alterando o diálogo com a tradição musical popular. Defendemos aqui uma semelhança estética e política entre a ruptura da ficção rosiana na literatura e do mangue beat na música.

Tudo o que pontuamos até agora, acompanhando algumas considerações da crítica, como foi observado, indica já uma compreensão da ficção de Rosa, mas há ainda algumas (várias) arestas para polir. Convencermo-nos de que Guimarães Rosa está na tradição histórico-literária brasileira é um aceno para compreendermos como o seu já mencionado projeto estético-político se caracteriza. Coutinho (2009, p. XIV) diz que a ruptura trazida por Guimarães tinha um ―caráter mais amplo‖ que ficava evidente ―quando confrontada com a visão de mundo dominante no período imediatamente anterior‖ (ele se refere ao romance regionalista de 1930), ―expressa em premissas, formuladas pelo próprio autor em entrevista a Gunter Lorenz, como a de que ‗o escritor deve ser um alquimista‘ e de que ‗somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo‘‖. O regionalismo nordestino ao qual opõem o regionalismo rosiano é caracterizado, pelos críticos já mencionados, por ―servir-se da linguagem regional indistintamente em todo o livro, restringi-la à fala das personagens, ou substituí-la integralmente por uma linguagem literária, convencional‖, como sintetiza Paulo Rónai (apud ROSA, 2001, p. 14-48). Além desses aspectos, há ainda a questão do engajamento ou mais propriamente do realismo soviético ou socialista percebido como o principal projeto ideológico do regionalismo nordestino de 1930.

Segundo João Luiz Lafetá (2000), o Modernismo brasileiro apresentou, a partir de um movimento de ruptura, um projeto estético e um projeto ideológico. Esses dois projetos estão, de forma complexa, entranhados um no outro. O projeto estético do Modernismo no Brasil está na ―renovação dos meios, ruptura da linguagem tradicional‖ (LAFETÁ, 2000, p. 20-21), postulado a partir da ―crítica à velha linguagem pela confrontação com uma nova linguagem‖, o que já contém, segundo Lafetá, essencialmente o projeto ideológico que seria a ―consciência do país, desejo e busca de uma expressão artística nacional, caráter de classe de suas atitudes e produções‖.

Escreve ainda Lafetá: ―O ataque às maneiras de dizer se identifica ao ataque às maneiras de ver (ser, conhecer) de uma época‖ (2000, p. 20). Mais adiante, ao tratar das duas primeiras fases do Modernismo: ―enquanto na primeira a ênfase das discussões cai predominantemente no ―projeto estético‖ (isto é, o que se discute principalmente é a linguagem), na segunda a ênfase é sobre o ―projeto ideológico‖ (isto é, discute-se a função da literatura, o papel do escritor, as ligações da ideologia com a arte)‖ (LAFETÁ, 2000, p. 28). A questão da ―função da literatura‖, do ―papel do escritor‖ e das ―ligações da ideologia com a arte‖ é antiga. Isso é tema de debate pelo menos desde a Academia platônica. O problema, ou o suspiro, é que em momentos de crise ou de tomada de consciência essas questões voltam à tona com toda a força e, diante da conjuntura, foi exatamente isso que aconteceu no Brasil das primeiras décadas do século XX. A noção de que não éramos mais um ―país novo‖ e sim um país subdesenvolvido, com suas feridas abertas a um capitalismo selvagem e cada dia mais presente e predatório a partir da República Velha e principalmente na Era Vargas, é ideal para o surgimento de um projeto ideológico com todas aquelas questões envolvidas. Pesavam, e muito, o cenário internacional e a crença, ainda nova, na Revolução Soviética e em toda a propaganda comunista. Mesmo nos anos 1940 e 1950, a questão ideológica não tinha sido resolvida (e muito menos a social e econômica, principalmente no sertão). Portanto, por que a ficção de Rosa não era ideológica? Por que ele, o diplomata, funcionário de carreira no Itamaraty, negava? Para este debate, trazemos ainda uma contribuição de Lukács (2010) sobre o posicionamento político ou ideológico do escritor:

O que queremos dizer quando afirmamos ver no grande escritor o tipo do tribuno em oposição ao do burocrata? Não queremos absolutamente indicar, sempre e necessariamente, uma tomada de posição política diante das questões postas na ordem do dia, e menos ainda a adesão a um dos partidos em luta num dado período, partido do qual se proclamariam, em forma literária, as diretrizes. Isto não ocorre em muitos escritores, precisamente entre os maiores. Ao contrário: seu tribunato, seu ―partidarismo‖, no sentido leniniano da palavra, pode frequentemente se manifestar precisamente através do repúdio às divisões políticas existentes. Isto ocorre quando o repúdio se apoia no fato de que um Lessing, na Alemanha, ou um Shelley, na Inglaterra, não reconhecem em nenhum dos partidos, agrupamentos ou correntes existentes a capacidade de representar a grande causa do povo, da nação, da liberdade, à qual dedicaram sua vida e sua obra. (2010, p. 124)

Pode, portanto, ser interpretada também como positiva a ausência de posicionamento político ou ideológico no escritor, no autor-homem, como Rosa afirmava ser. Mas a representação da ―grande causa do povo, da nação, da liberdade‖,

pode ser percebida na ficção de Rosa, pois, como Hansen bem observou, a literatura é coisa representante e, portanto, pode ser passível de uma leitura ideológica. É isso que fazem, como destaca Bolle, vários críticos da ficção rosiana – não se utilizando simplesmente da ―sociologia-pau-pra-toda-obra‖, como ironiza Hansen –, mas percebendo elementos externos que se tornaram internos. Ora, quando Rónai, um dos críticos que negam um compromisso ideológico a G. Rosa, diz que o leitor tem papel fundamental na obra do escritor mineiro, ele abre caminho para que o leitor (especializado) faça qualquer interpretação do texto lido. Essa possibilidade de ―qualquer interpretação‖ é o cerne da crítica de Hansen às leituras conteudistas, mas é também a natureza da obra literária moderna, a obra aberta10. Entretanto, aqui fazemos nossas ressalvas: num trabalho de análise literária especializada, é fundamental a definição de uma postura diante do objeto de estudo, do mundo no qual estamos inseridos – pesquisador e pesquisa – e do suporte teórico-filosófico. Uma vez que os três estão em diálogo permanente, eles requerem uma resposta do pesquisador, bem como os outros leitores da obra e da pesquisa (enunciado). Portanto, devem haver parâmetros para a definição dessa postura que não destoem do diálogo permanente e ofereçam uma resposta como enunciado. É preciso obedecer a alguns princípios e pressupostos que conferem rigor e coerência a uma investigação ou leitura. É aqui que entram alguns dos principais críticos da ficção rosiana: Walnice Nogueira Galvão, Heloísa Starling11 e Willi Bolle. Passaremos a acompanhar as leituras desses críticos atentos não apenas aos avisos de Hansen, mas, principalmente, à nossa questão principal nesse exame (como a fortuna crítica rosiana pensa o sentido estético e ético da forma literária de João Guimarães Rosa?).