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A Serendipity no olhar de quem criou um gênero literário

5.4 A FICÇÃO DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

5.4.2 A Serendipity no olhar de quem criou um gênero literário

―Tenho de segredar que – embora por formação ou índole oponha escrúpulo crítico a fenômenos paranormais e em princípio rechace a experimentação metapsíquica – minha vida sempre e cedo se teceu de sutil gênero de fatos. Sonhos premonitórios, telepatia, intuições, séries encadeadas fortuitas, toda a sorte de avisos e pressentimentos. Dadas vezes, a chance de topar, sem busca, pessoas, coisas e informações urgentemente necessárias‖ (ROSA, 2009, p. 221- 2)

Na parte VI de um dos prefácios de Tutameia, ―Sobre a escova e a dúvida‖, Guimarães escreve as palavras acima. Vilma Guimarães Rosa, no livro Relembramentos, fala de uma conversa que teve com ele sobre ―fatos misteriosos que dirigiram sua vida‖ (p. 63). Guimarães diz então da serendipity, a ―arte de fazer felizes descobertas, casualmente‖ (p. 63). Embora acreditemos que a criação da narrativa arquitetônica não tenha se dado por acaso; essa palavra parece significar algo diante da consciência de um autor que se sabe inventor, criador de um novo gênero literário.

Primeiras Estórias e Tutameia: terceiras estórias trazem estórias curtas, anedóticas e demonstram o novo gênero criado por Guimarães Rosa com uma força tremenda. As arquitetônicas sertanejas nas narrativas curtas são potencializadas em seu efeito totalizante, de inacabamento e abertura. Nesses livros, assim como em Corpo de Baile, a própria organização dos contos, emoldurados ou espelhados em Primeiras Estórias ou correlacionados aos prefácios e aos sumários em Tutameia, oferecem outro potencial analítico que dão um sentido peculiar às obras. Outra característica desses dois livros que chamou a atenção de críticas, como Ana Paula Pacheco77 e Ana Lúcia Branco78, é a aproximação de paisagens urbanas e a relação dessas paisagens com o sertão. Essa característica espaço-temporal está relacionada ao contexto histórico no qual as estórias, as primeiras e as terceiras, foram produzidas ou estão ―emolduradas‖: os anos JK e seguintes. As categorias de cronotopo, relação entre autor e herói, palavra, tom emotivo-volitivo e cocriador estão correlacionadas com um poder de condensação

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Op. Cit.

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poética no limite. A prosaística rosiana, nesses livros, dá um salto formal em relação aos anteriores.

Os vinte e um contos de Primeiras Estórias são emoldurados pelas narrativas do menino que viaja à grande cidade, que está sendo construída no centro do país, caracterizando, segundo Kathrin Rosenfield79 e Ana Paula Pacheco, um contexto histórico para o acontecimento das estórias. Mesmo com essa possibilidade, há um tempo mítico e místico que envolve estórias como ―A terceira margem do rio‖, ―a menina de lá‖ e outros.

No livro O lugar do mito, Pacheco faz uma opção de leitura dividindo em temas os contos de Primeiras Estórias. De leituras que passam por questões existenciais, reconfigurações do trágico, violência e representação, a autora constrói uma análise dos vinte e um contos através de um recorte teórico, considerando o mítico e histórico-social que apresenta uma visão enriquecedora dos contos de Guimarães Rosa. Cada uma dessas leituras dá conta de um grupo de contos e de outros textos do autor. Uma das conclusões a que a autora chega é um contraponto interessante para as questões que apontamos no início deste capítulo. Ela escreve: ―O ideal reaproximado do real é uma poética dessa personagem [o Menino], e do escritor, que aposta numa educação do homem, num reaprendizado da natureza (também a humana) pelo estético‖ (p. 259) e finaliza:

Belo e ideal, modulados, perpassam uma parte da poética de Primeiras Estórias. Por um lado, a marca da efemeridade para o encontro do belo aponta, eivando-o de problemas, para sua incapacidade de colocar-se plenamente como reversão simbólica da realidade opressiva, em contexto contemporâneo. Por outro lado, o belo, ainda que efêmero, aponta para uma estetização do campo, possível espaço elegíaco quando o capital não está mais concentrado lá (...). Nos momentos em que mesmo a forma totalizante do mito fragmenta-se ou paralisa-se, e a elegia torna-se demoníaca ou riso de pares, ou ainda, interrogação plantada na consciência narrativa que procura ver o outro, temos, todavia, de par com o esteticismo, as contradições – os impasses da história cristalizados como problema formal, que, se for possível dizer assim, retiram o mítico de uma função apenas mitificante. E então vislumbramos onde está a grandeza do pequeno livro de Guimarães Rosa. (p. 259-60)

A possibilidade de pensar o outro, de pensar em vários caminhos que permitem a compreensão tanto de formas simbólicas quanto históricas através da forma narrativa, da linguagem, do cronotopo, que deixa a obra inacabada, aberta, faz com que outras leituras possam, dialogando com as que Ana Paula Pacheco fez desse livro,

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atribuir novos sentidos às estórias primeiras. Acreditamos que a leitura da professora da USP seja o tipo de crítica que Guimarães Rosa gostaria de ver.

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Tutameia: terceiras estórias, publicado cinco anos depois de Primeiras Estórias, carrega um ar de mistério já no título, como bem observa Paulo Rónai. ―Se estas são as terceiras, aonde estariam as segundas estórias‖. Além disso, a existência de quatro prefácios e de duas ordens de leitura (dois sumários) deixa que Tutameia seja dos livros mais enigmáticos de Guimarães Rosa. Os quarenta contos que compõem o livro, curtos, anedóticos, trazem as categorias arquitetônicas, assim como em Primeiras Estórias, potencializadas a partir de sua condensação, de sua concentração e síntese.

Tutameia foi recebida com escândalo ou silêncio pela primeira recepção e houve um silêncio crítico quase absoluto até cerca do final da década de oitenta. Hoje, a crítica vem repensando a posição dessas Terceiras estórias, já consideradas como síntese do conjunto da obra de João Guimarães Rosa. Em 1968, Rosa toma posse na Academia Brasileira de Letras e três dias depois morre, como se sabe. No ano anterior, havia publicado Tutameia. As primeiras obras (Sagarana, Grande sertão: veredas, Corpo de baile) deram consagração unânime ao autor, o que pode ser atribuído, entre outras coisas, a uma recepção formada pela tradição regionalista com interesse pelas questões pertinentes à brasilidade, às populações rurais do sertão. O diferencial na literatura de Rosa foi entendido, a princípio, como um acréscimo de universalidade e transcendência a uma tradição regionalista a que parecia dar continuidade (p. 800).

Maryllu de Oliveira Caixeta (2013a; 2013b) dedicou-se ao estudo de Tutameia em vários trabalhos. Ela compreende que o último livro publicado de Guimarães Rosa, a partir das categorias de mímesis e mito, é constituído por uma forte reflexão sobre a História e a estória, sobre a própria narrativa literária. Reflexão não apenas construída nas próprias estórias, mas no conjunto (estórias e prefácios), que, portanto, tornaria essa uma obra síntese, uma obra de autoesclarecimento. Em outro texto, a articulista escreve:

Tutaméia coloca a literatura em debate por meio da ficção do ser estória que, como os mitos, requer uma compreensão que sentimos como ―intuitiva‖ porque não se ajusta a modelos discursivos autorizados como os científicos, como os da história. ―A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota.‖ (ROSA, 1979, p.3) (grifos do autor) A estória, que não quer ser como a história e a História, tem uma semelhança mínima e esporádica com um tipo especial de anedota, a anedota de abstração, que serve como instrumento de transcendência. A diferenciação de estória, história e História feita na introdução do prefácio ―Aletria e hermenêutica‖ parodia a passagem encontrada na Poética de Aristóteles acerca da superioridade da poesia em relação à história (p. 08).

A própria retomada da distinção aristotélica entre Poesia e História e sua relação com Tutameia, mas também com a literatura de Guimarães Rosa, que desafia a lógica racionalista, faz com que voltemos à reflexão sobre a validade de leituras que propõem um olhar institucionalizado sobre tal ficção. Por mais que Guimarães Rosa tenha uma postura política ou uma afinidade com ideais vinculados à elite intelectual brasileira, como Oliveira Vianna, não há justificativa para estreitarmos as possibilidades de textos tão significativos para a literatura universal à alegoria de análises históricas ou sociológicas estanques ou mesmo de determinar a existência de tal ou tal arquétipo grego ou latino ou taoísta. Existem todos ao mesmo tempo. Não há nenhum ao mesmo tempo. Cada leitura estabelece sua compreensão. Vale salientarmos mais uma vez que são as forças centrífugas da vida que se colocam com mais vigor na narrativa ficcional.