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5. O ACRE AMAZÔNICO CULTURAL COM PRINCÍPIOS

5.3 A cultura acreana e amazônica desmistificada: uma perspectiva

Considerando a singularidade da cultura acreana como algo que pode ser captado e entendido a partir de um conjunto de variáveis socioeconômica, étnica e cultural distintos absorvidos na dinâmica de sua histórica e na construção de uma sociedade surgida em diferentes épocas, procurou-se tecer uma discussão a respeito da promoção da cultura amazônica na perspectiva inclusiva e atuante como recurso de preservação da Amazônia através do turismo cultural regionalizado em que as identidades notadamente marcadas por uma relação de contraste permitem a sublevação de um grupo e a negação de outros. Como por exemplo, no conflito entre colonizadores e exploradores da borracha e os índios que habitavam o território em disputa pelos recursos econômicos, ocasião na qual os povos indígenas quase foram extintos, não o sendo, porque se refugiaram no interior das matas.

Anos se passaram, os índios continuaram no interior das matas e as terras ocupadas pelos seringalistas do final do século XIX foram sendo tomadas por fazendeiros “paulistas” 93 provenientes do centro e sul do país que chegaram ao Acre no início da década de 70 com a intenção de criar gado. Houve conflitos entre pecuaristas e extrativistas que sobreviviam da coleta do látex das seringueiras e da castanha. Cessado as tensões os pecuaristas utilizam as áreas degradadas para criação do gado e os seringueiros habitam as reservas e projetos de assentamentos agroextrativistas. Há o prenúncio de uma nova fase em que a política ambiental consiga mudar os costumes da produção agrícola e agropecuária e as pessoas passem a empregar novas técnicas de plantio e criação de gado mais voltadas para a preservação ambiental.

A identidade étnica pode-se associar às terras indígenas, a de nordestinos e seringueiros aos seringais nas reservas e projetos de assentamentos agroextrativistas, a dos colonos sulistas aos projetos de assentamentos do INCRA, os pecuaristas às propriedades privadas compostas de áreas degradadas e os cidadãos das cidades – em sua maioria oriundos dos seringais, reservas extrativistas, e de outras regiões do Brasil e de outros países como os sírio- libaneses, os alemães, africanos e outros – aos habitantes urbanos. Pode-se perceber que os elementos que formam as identidades acreanas receberam influências de grupos sociais de diferentes origens em momentos variados da história, sintetizando-se em um mosaico de identidades.

Porém, essa mistura de origens não significou uma identidade significativamente diferente dos primeiros habitantes, os indígenas e os extrativistas que convivem e sobrevivem na floresta. Na verdade, esse processo de criação de identidades por meio de relações de poder, de interação com o meio, de relações práticas econômicas, sociais, políticas e culturais possibilitou uma identidade que consorcia saberes tradicionais, comunidades empoderadas e domínio de conhecimentos e técnicas científicas e tecnológicas avançadas e globalizadas. Com isso, a identidade acreana florestal tradicional é percebida na culinária, na língua, nas manifestações culturais, nas paisagens culturais e no modo de viver e ver a vida. A identidade acreana florestal também está presente nas cidades, sendo

facilmente notada ao verificar que prédios, monumentos e espaços públicos homenageiam elementos da natureza.

Nesse sentido, citam-se a Biblioteca da Floresta – um espaço que traduz modernidade, tradicionalismo e tecnologia, a Gameleira – uma árvore lendária e um espaço de lazer, a Casa dos Povos da Floresta – edificada no formato de uma maloca indígena que expõe os mitos e lendas do Acre, o Museu da Borracha, a Praça Povos da Floresta e o Parque Urbano Capitão Ciríaco – um seringal localizado no centro da capital acreana onde existem mais de 600 seringueiras plantadas e um seringueiro que executa o processo de extração do látex todos os dias. Dessa forma, é possível inferir que as identidades se completam quando são estabelecidos laços de identidades aos territórios ocupados ou construídos socialmente, tendo como primordial para seu destaque e manutenção o papel que os atores políticos e sociais desempenham no processo.

Dentro dessa percepção de identidades e territorialidades Guatarri (1996) explicita que “O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente 'em casa’”. Tais pressupostos sobre a identidade cultural acreana amazônica possibilitam saber que ela tem suas interpretações personificadas nos elementos identitários culturais, significativos da região amazônica e sua complexidade envolve o natural e o sociocultural e merece compreensão contextualizada sem dissociar os elementos naturais dos socioculturais. A cultura amazônica não deve ser banalizada pelo discurso ambiental externo, ela “[...] é como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis que expõe a sua normalidade sem reduzir sua particularidade”. (GEERTZ, 1975, p.24).

Neste sentido, poderemos compreender como os grupos sociais ordenam e sistematizam o seu mundo, qual é a ideologia que identifica o grupo, quais são os princípios que organizam seu universo simbólico e o tipo de poder que influencia suas ações e marcam suas opções e comportamentos em relação ao espaço e a constituição dos territórios urbanos. A vivência nesta coletividade, buscando o reconhecimento social, significa, portanto, aderir ao seu sistema de valores e desempenhar comportamentos para cumprir o papel social que foi designado pelo grupo. Nisso os usuários obedecem às regras sem necessariamente dar-se conta, pois o padrão está internalizado e, para obter o reconhecimento da coletividade e aproveitar-se das relações sociais profundamente marcadas pela pessoalidade, não

se deve transgredir as regras culturais, mas adequar-se ao modo de vida coletivo como as teias de significados citadas por Geertz (1975, p.15):

... o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado.

Por conseguinte, entende-se que o emaranhado de teias e seus significados igualam-se ao meio ambiente, palco da cultura, ao homem, o ator por excelência desse cenário, e a própria relação homem versus ambiente cultural uma ciência à procura do significado que sendo pública, não há como esconder o que foi construído ao longo dos tempos nem sua ação simbólica impregnada de significados, ambos, meio ambiente e homem estão intrinsecamente relacionados. Portanto, não há como falar da Amazônia destacando apenas os recursos naturais esquecendo-se das pessoas que nela habitam e todas as relações socioculturais e econômicas existentes.

Há de se considerar que a visão sobre a Amazônia que busca valorizar sua biodiversidade, e a destaca somente como maior floresta tropical do planeta, rica em águas, de solos agricultáveis e de riquezas minerais inigualáveis, sem ressaltar a relação sociocultural existente é prejudicial para o amazônida e para a Amazônia. Essa visão fragiliza a Amazônia, deixando-a vulnerável às investidas internacionais e também nacionais no sentido da necessidade de ocupação e apropriação, além de ser uma forma de discriminação para com a sua população. Diante disso, entende- se que a sua cultura deve ser ressaltada juntamente ao discurso de proteção do meio ambiente com toda propriedade merecida. Um destaque interessante seria combater a idéia de que a Amazônia é praticamente desabitada, que existe um vazio demográfico na região. Gonçalves (2008) em sua mais recente obra: “Amazônia, Amazônias”, trata com muita propriedade desse assunto, defendendo que ela não é um vazio demográfico e cultural, ela é habitada e seus habitantes merecem ser respeitados e ouvidos quando forem pensados quaisquer tipos de investimentos para a região:

Uma das imagens mais arraigadas no que tange à Amazônia é a de que se trata de uma região de baixa densidade demográfica, de um vazio demográfico [...]. Afinal, a densidade demográfica da Amazônia é baixa em relação a quê, se em determinadas circunstâncias há até população excedente? [...] sempre se ignoram as populações amazônidas, particularmente, os indígenas, os caboclos e demais trabalhadores agroextrativistas que, desse modo, não são contemplados devidamente nas diversas perspectivas de desenvolvimento para a região. Preferindo-se falar em vazio demográfico (e cultural). (GONÇALVES, 2008, p.33-38).

A população externa ao ambiente amazônico deve reconhecer que os saberes tradicionais e culturais do povo dessa região são importantes para toda a humanidade. Seus costumes, crenças e valores são prejudicados pelo crédito nos saberes científicos e descréditos nos saberes tradicionais. A idéia é desmistificar a Amazônia, valorizar o ambiente sem desprezar a cultura da população existente. O amazônida é profundo conhecedor do lugar onde vive e depende desse conhecimento para sobreviver, detém um saber-fazer empírico, baseado no senso comum que o ajuda a viver. Em seu ambiente, ele faz porque sabe fazer, mesmo não sabendo dizer por que faz, ao passo que o fazer-saber científico diz como fazer, mas o fazer fica prejudicado pela deficiência prática. Um exemplo disso é que o habitante das matas orienta-se nela utilizando os elementos da natureza sol, lua, vento, animais, embora não saiba explicar com cientificismo o ocaso do sol, as fases da lua e a origem dos ventos, mas dentro da mata ele é um mestre.

Vale ressaltar que as pessoas cometem um equívoco quando afirmam que a Amazônia é um território desconhecido, quando, na verdade, ela é profundamente conhecida por seus habitantes, os amazônidas. Ela é desconhecida para aqueles que tiram conclusões sobre ela, sem consultar seus habitantes. Se um estudo for feito a partir dos amazônidas, haverá a compreensão de que a evolução da região acompanha a de sua população, visto que uma não surgiu antes da outra. Em um estudo sobre os geoglifos existentes no Acre, Ranzi & Aguiar (2004, p. 33-34) afirmam que a vegetação predominante na região há 11 a 12 milhões de anos, era a savana 94, nada parecida com a floresta amazônica. Sendo assim, como explicar na região a presença de espécies e elementos da fauna e flora reconhecidamente de outros biomas e continentes? Tais pressupostos nos levam a pensar que, pessoas e floresta Amazônica surgiram concomitantes uma à outra.

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Uma vegetação composta de gramíneas, com algumas árvores esparsas e arbustos isolados ou em pequenos grupos, típicos das zonas de transição entre bosques e prados

Se antes de reconhecer a Amazônia em toda sua extensão, como um espaço territorial, relativamente único no mundo, de belezas e valores naturais inestimáveis, cujas qualidades fomentam a idéia de muita riqueza sem dono, sendo este um fator preponderante para atrair a cobiça das pessoas que depredam o patrimônio, forem reconhecidos os amazônidas sua historicidade e culturalidade, a Amazônia estará naturalmente protegida. Pactua deste raciocínio de que divulgar as belezas amazônicas desprezando a cultura do povo fragiliza a região, Fleischfresser (2006, p.2), defende: “Tal situação torna a Amazônia uma fronteira de ocupação, que atraem aventureiros e empresários socialmente irresponsáveis que estão se apropriando de modo ilegal e violento do nosso patrimônio natural”.

Por isso, é imprescindível o rompimento de barreiras e preconceitos com relação ao seu povo que não cursou faculdade, mas é capaz de levar um “doutor” a lugares na floresta que sozinho não conseguiria chegar. Na verdade, o caboclo em seu território, pode levar à solução de problemas que os estudos universitários não podem resolver, porque lhes faltam a vivência. Se houver o entendimento de que o povo também é portador de conhecimentos que contribuem para a manutenção e preservação do meio ambiente a possibilidade de encontrar soluções para preservação ambiental é maior.

Entretanto, o destaque que a mídia externa dá à Amazônia como se ela fosse o único pedaço preservado da face da terra, sem citar a presença humana e a cultura existente, é uma visão que favorece os capitalistas estrangeiros que visam o lucro fácil sem os cuidados ambientais e contribuem para a proliferação das Organizações Não-governamentais (ONGs) estrangeiras que “invadem” a floresta amazônica, sem a legitimidade das populações e dos movimentos sociais organizados. Quem determina o que a Amazônia precisa? A população ou as ONGs internacionais? Porque a Amazônia não é tratada e representada pelas instituições, sindicatos e associações instituídas pelos próprios amazônidas? Tais agremiações sociais legitimadas por indígenas, ribeirinhos e extrativistas devem atuar onde as organizações não-governamentais atuam. Aliás, o combate à questão de internacionalização da Amazônia pode ser conseguido com o fortalecimento das comunidades e movimentos sociais.

Na verdade, a presença de algumas ONGs de origem internacional que desenvolvem projetos ambientais, elaborados por quem não conhece verdadeiramente a região, formaliza a idéia de abandono por parte do governo

brasileiro e legitima uma ação radical sobre a soberania do Brasil para com a Amazônia. Não há como negar que a região tem cultura e identidade, se em outras regiões os canais de televisão são nacionais, a Amazônia possui um canal de televisão pública que transmite permanentemente vinhetas sobre a cultura dos povos da região, seus produtos e riquezas naturais 95. Os problemas amazônicos devem ser tratados com a complexidade que merecem por quem os conhecem, pois qualquer sociedade se desenvolve de conformidade com seu ambiente.

É importante pensar a Amazônia a partir de um sentido novo de soberania, com a consciência de que ela não é uma ilha no universo, ela integra um todo, bem maior, que é a humanidade, isso dá a idéia de pertencimento e legitimidade amazônica e a interdependência que torna os seres mais humanizados, apesar de globalizados. Assim, quando as pessoas passarem a pensar a região numa perspectiva mais inclusiva e atuante a cultura amazônica e acreana com seus símbolos identitários, serão desmistificados, valorizados e respeitados. Daí surge a necessidade de uma política alternativa nacional que estimule o diálogo entre as populações locais, para seu fortalecimento por meio da comunidade científica brasileira, e então o fazer-saber complementar-se-á com o saber-fazer e a diversidade e cultura encontrarão seu lugar. A questão é criar novos paradigmas em que os valores culturais identitários sejam potencializados, conhecidos e percebidos como agentes de vanguarda da Amazônia.

95 AMAZON SAT - Um canal temático brasileiro que trata especialmente de temas amazônicos,

pertence à Rede Amazônica de Rádio e Televisão composta de mais de cinco emissoras: TV Amazonas, TV Rondônia, TV Roraima, TV Acre, TV Amapá, afiliada à Rede Globo de Televisão.