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2. TURISMO E CULTURA REGIONALIZADOS NAS CIDADES DO

3.6 Conflitos entre pecuaristas e seringueiros: identidade, memória

Os conflitos agrários no Acre, a partir das décadas de 70 e 80 apresentaram modificações consideráveis em relação aos anos anteriores e que custaram a vida de muitos trabalhadores e de lideranças como Chico Mendes, Wilson Pinheiro, Ivair Higino, dentre outros. A figura do seringalista opressor desapareceu e surgiram os pecuaristas, conhecidos como “paulistas”, que vieram de todas as partes, em sua maioria do centro-sul do país. Prenunciava-se uma nova fase na sociedade acreana, a da disputa pela terra. A população subjugada passava agora a existir na figura dos seringueiros 71, os quais não tinham amparo algum, pois eram extrativistas, viviam da coleta do látex das seringueiras para a fabricação da borracha e de outros produtos florestais como a castanha-do-Brasil.

71 O seringueiro é o trabalhador que extrai a borracha da árvore chamada seringueira - hevea

brasiliensis - Trabalha oito meses por ano, de abril a novembro, quando começa a floração. Se levanta todos os dias às três da madrugada, deixa no fogo a panela de feijão e sai para “cortar seringa”. Ou seja, fazer os cortes nas seringueiras espalhadas pela floresta e colocar as tigelas para aparar o leite. Essa tarefa leva de três a cinco horas, dependendo do percurso de sua “estrada”. Quando retorna a casa almoça, e volta para colher o leite colocando-o em um balde, feito de flandres. Retorna para casa ao entardecer.

A situação na região se modificara desde a falência dos seringais, no momento em que a incorporação da Amazônia no processo de acumulação de capital interno passa a ser mecanismo de negociações, tornando-se metas prioritárias do governo da época. O problema era quebrar o isolamento e o imobilismo da região motivando os agentes internos e externos para a aceleração da economia. Para tal, o governo federal propôs um conjunto de medidas institucionais chamadas de “Operação Amazônia”, por meio da qual criou a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM, O Banco da Amazônia S/A, uma sortida e variada cesta de incentivos e isenções fiscais e investimentos em propagandas, constituindo-se de elementos eficazes para transformar a Amazônia em alvo de grandes e variados investidores.

No contexto estadual na década de 70, o setor extrativista não dispunha de meios para sobreviver com sua atividade tradicional, tendo em vista a competição com a borracha que era produzida pela Malásia e a borracha sintética industrializada em larga escala à partir dos derivados de petróleo. Diante disso, a maioria dos seringais decretou falência e seus donos endividados vendiam suas propriedades por quantia irrisórias. A partir desse momento criou-se um ambiente favorável para a expansão da agropecuária na Amazônia. Sabendo disso, os pecuaristas chegavam de todas as partes e regiões do país, os “paulistas”, como eram chamados, traziam a documentação da terra e a mão-de-obra para preparar o terreno para as pastagens, visando a criação de gado em grandes proporções, precisando retirar toda a cobertura vegetal nativa existente.

Os “paulistas” estavam conscientes de que teriam que enfrentar obstáculos e se encontravam preparados para isso. Dentre muitos, o maior seria os posseiros extrativistas – os seringueiros – moradores da terra por longas décadas e que possuíam suas propriedades passadas dos pais para os filhos durante várias gerações. Os seringueiros sofreram toda sorte de pressão para abandonar a terra, uns não resistindo, venderam suas casas e foram morar nas cidades e sobreviverem com subempregos, viam suas vidas sendo modificadas e com isso vinham as depressões, as degradações da família e outros problemas sociais. Aqueles que resistiam, repentinamente tinham suas casas e pertences incendiados.

Os seringueiros se encontravam desprovidos de ajuda, organização e representação legal, somente a igreja – Prelazia do Acre e Purus – desenvolvia um trabalho com as comunidades, mesclando ensinamentos cristãos e idéias de

resistência pela leitura do catecismo da terra através das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Em meados de 1975 é formada a Comissão Pastoral da Terra (CPT) que auxiliava na Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais (CONTAG), que por sua vez ajudou a fundar os sindicatos e formar os movimentos sindicais na região. Foram formados vários Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STRs), inclusive o de Brasiléia e de Xapuri.

Dessa forma, com a representatividade legal do sindicato e orientação jurídica da CONTAG, os seringueiros dão início às atividades coletivas no sentido de impedir os desmatamentos que aconteciam de forma devastadora. Nesse contexto, surge no cenário a liderança de um homem simples, filho de seringueiro, que cortava seringa com seu pai quando criança e passa a liderar o movimento, porém, de modo diferente dos seus heróis do passado, aconselhava o povo a não pegar em armas, mas vencer com a palavra, com o sentimento pela floresta em que habitava e produzia seu sustento. Assim, congregava os companheiros em torno dele e debatiam a forma mais adequada de barrar o desmatamento, surgindo, assim, os empates.

Esses acontecimentos, ocorridos na década de 80, coincidiram com a elevação das organizações dos movimentos ambientalistas nos países da Europa e nos Estados Unidos, com debates em encontros com personalidades do mundo inteiro, cuja preocupação era com o futuro do planeta e das grandes áreas de reservas ambientais, como a Amazônia e outros biomas. Durante esses fóruns surgiram as denúncias de financiamentos do Banco Interamericano de Desenvolvimento como co-autor de projetos que causavam a degradação dos ambientes naturais, como o que estava acontecendo em Rondônia, no nordeste com o Movimento dos Sem-Terra (MST) e no norte com os seringueiros e a floresta desmatada.

No ano de 1985, o MST realizou em Brasília, o I Congresso da classe, com a participação de mais de 1.500 delegados com o propósito de criar a reforma agrária no país e em Xapuri é criado o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) que, mais tarde, consegue a aprovação para a criação das reservas extrativistas, através do Decreto 92. 676 de 19 de maio de 1986, compreendida como a reforma agrária dos seringueiros, ressaltando que, por meio desse movimento adquiriu-se também a credibilidade e respeito à profissão do seringueiro.

Os seringueiros viviam em clima de tensão, que favorecia um confronto iminente. “Encontravam-se desprovidos de ajuda, organização e representação legal”. Este fato nos remete ao estudo de Pollak (1992), sobre memória, esquecimento e silêncio, visto que os seringueiros após um longo período no subjugo do patrão seringalista, enfim, encontram o estopim necessário para se fazerem notados, emergem quase espontaneamente, mas sustentados na força da liderança sindical. Era uma luta legitimada, consciente, em que os seringueiros recebiam a instrução sobre os direitos da terra pela Pastoral da Terra e pela CONTAG que os apoiava juridicamente, embora na época isso não fosse respeitado. Faltavam-lhes a representação, a referência, o símbolo e isso foi possível na presença das lideranças, os presidentes dos Sindicatos, que encampavam a luta e a garantia de sucesso.

Essa era a dosagem necessária para que a classe rompesse o tabu e invadisse o espaço público, aqui entendido como o campo da associação, agremiação e liderança, partindo para a posse daquilo que entendiam serem seus por direito. Como declara Pollak (1992, p.4-5):

... essas memórias subterrâneas que prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados. [...]. Ele consiste muito mais na irrupção de ressentimentos acumulados no tempo e de uma memória da dominação e de sofrimentos que jamais puderam se exprimir publicamente.

Os seringueiros uniram suas memórias não respeitadas pelo poder constituído, que favorecia os donos das terras (fazendeiros estrangeiros) os quais os expulsavam de seu lugar de origem e se somaram ao silêncio dos desprezados (soldados da borracha), vítimas por excelência, esquecidos pela pátria, mas integrados em uma rede de sociabilidade comum. E referindo-se ao silêncio e esquecimento, Pollak (1992, p.5) postula que “O longo silêncio sobre o passado longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao discurso oficial”.

Tudo isso ainda não seria suficiente se não houvesse o agente deflagrador na força do líder. Encontrou-se este particular nos presidentes dos sindicatos dos trabalhadores rurais como Ivair Higino, Wilson Pinheiro, Chico Mendes e outros. Eles foram peças fundamentais no sucesso dos movimentos sociais do Acre da década

de 70 e 80, mas sozinhos nada poderiam fazer se o povo não tivesse coeso, defendendo os mesmos ideais. Embora os líderes seringueiros jamais os tenham incitado à luta armada, a presença deles fortalecia os movimentos, emersos de suas memórias subterrâneas acumuladas no tempo. Estas convulsões trouxeram sofrimentos, desestabilidades, perdas de bens e até a morte dos líderes, mas junto a isso vieram os ganhos, a demarcação de suas terras com fins extrativistas, a reforma agrária do seringueiro.

4. A CULTURA E O LUGAR DO TURISMO CULTURAL, DA