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CAPÍTULO 2 A CULTURA NAS ORGANIZAÇÕES ESCOLARES

2.2 A cultura escolar na perspectiva histórica

Compreendemos a cultura escolar como produto de relações históricas desenvolvidas nas instituições escolares e como um processo de construção e de imposição de significados às práticas humanas nesse âmbito. Frago (1995, p. 68-69) entende a cultura escolar como um conjunto de aspectos institucionalizados que a caracterizam como uma organização, o que inclui

[...] prácticas y conductas, modos de vida, hábitos y ritos – la historia cotidiana del hacer escolar –, objetos materiales – función, uso, distribuición en el espacio, materialidad física, simbología, introducción, transformación, desaparición... –, y modos de pensar, así como significados e ideas compartidas. Alguien dirá: todo. Y si, es cierto, la cultura escolar es toda la vida escolar: hechos e ideas, mentes y cuerpos, objetos y conductas, modos de pensar, decir y hacer.

Grande parte dessas práticas, condutas, hábitos, objetos etc. têm sua origem, conforme Cambi (1999), na Idade Média21, numa revelação de que a cultura escolar tem suas bases em épocas remotas. Por isso, o desenvolvimento da modernidade22 implicou mudanças e também continuidades nas relações escolares. Foi no contexto da modernidade que o Estado assumiu a responsabilidade pela educação da população em geral, tornando a escola uma instituição a seu serviço para regular a sociedade de forma mais ampla e duradoura. Veiga Neto (2003) reconhece que, sob a tutela do Estado, a escola assumiu a tarefa de tornar a sociedade mais homogênea e menos ambivalente, ou seja, mais previsível e segura para as classes dominantes, imprimindo à população uma identidade cultural que rejeita as diferenças.

Considerando-se o fato de que a modernidade tem como característica o império da razão, o trabalho escolar deveria ser orientado racionalmente para tornar possíveis os fins que se propõe a educação. Segundo Pérez Gómez (2001, p. 23), a razão torna-se um instrumento para “[...] ordenar a atividade científica e técnica, o governo das pessoas e a administração das coisas, sem o recurso de forças e poderes externos e sobrenaturais”. Se, por um lado, a modernidade rompe as amarras que subordinavam os homens aos dogmas religiosos, por outro, aprisiona-os à racionalidade teleológica do capital.

Habermas (1987) considera que uma ação racional relativa a fins refere-se à organização dos meios, à escolha de alternativas para se alcançar determinado objetivo. Ao subtrair as interações subjetivas na escolha de estratégias de ação e reduzindo-se a ação racional ao emprego de técnicas para se chegar aos fins propostos, esta se torna uma forma de dominação calculada. Nesse caso, a racionalização burocrática, que obedece às normas estatuídas racionalmente, consiste em um meio de dominação política e de controle das

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Segundo Cambi (1999), da Idade Média provêm: a estrutura escolar ligada à presença de um professor que ensina a diversos alunos e responde à Igreja ou a outro poder; atividades como as discussões, exercícios, argüições etc; e práticas disciplinares e avaliativas que ocorriam nas escolas monásticas, nas catedrais e nas universidades.

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A sociedade medieval era caracterizada pelo autoritarismo do papa e do imperador, símbolos do poder divino. Com o desenvolvimento da modernidade, a Europa laicizou-se econômica, política e culturalmente separando o mundano do religioso, colocando o homem como o centro da vida em sociedade. Esta ruptura é marcada, no plano econômico, pela substituição do feudalismo pelo capitalismo; no âmbito político, pela instituição do Estado moderno, cujo exercício do poder, antes totalmente centralizado nas mãos do rei, se distribuiu por meio de um sistema de controle social; na esfera social, pela emergência da burguesia; e no cultural, pelo uso livre da razão caracterizado pelo iluminismo.

pessoas. Ao neutralizar a crítica e a diversidade de concepções, a dominação burocrática constitui-se em um meio de repressão subjetiva, que impossibilita a constituição do ser autônomo, porque prende os homens a regras rígidas e a um sistema hierárquico que impede a livre associação a um ideal comum.

Assim, na modernidade, o homem tomou nas mãos o seu destino; não com o objetivo de promover o crescimento social, econômico e político para todos os cidadãos, nem visando, tampouco, o respeito às diferenças, a igualdade de direitos e a justiça social. Livre do poder da Igreja Católica, o homem moderno institui a dominação burocrática, que, pretendendo-se racional, técnica e neutra, legitima o poder burguês.

O indivíduo é aprisionado à ordem social burguesa mediante a utilização de variadas técnicas de poder. Analisando essa particularidade do poder, nos séculos XVII e XVIII, Foucault (1998) percebe que, para as pessoas interiorizarem uma nova concepção de vida, foi necessário exercitar-se o poder livre de armas, da violência física e da coação material. Utilizando técnicas de poder baseadas na vigilância, na punição e na disciplina, as pessoas terminavam por interiorizar concepções importantes para a formação da sociedade e do homem moderno. Instituída a nova ordem racional, diversificaram-se os espaços educativos. Nessa nova disposição, além da Igreja e da família, responsáveis pela educação no antigo regime, o exército, a fábrica e a escola assumiram funções de controle e de conformação social.

Em tal contexto, a escola cumpriu o papel de conferir aos indivíduos os conhecimentos e os saberes necessários ao novo modelo de produção, incutir determinados valores e costumes naqueles que serviriam ao Estado e ao modelo de produção emergente. O modelo burocrático, aplicado na escola, tornou-se um instrumento capaz de legitimar a superioridade dos grupos dominantes, visto que difundiu os conhecimentos e a cultura de determinados grupos como os únicos que mereciam ser ensinados. Além disso, a educação cooperou para desarticular os sujeitos impedindo as trocas subjetivas e instaurando o individualismo.

Por conseguinte, os ritos, os mitos, as visões de mundo e as representações difundidas na escola reforçavam valores de obediência às normas, de hierarquização dos sujeitos e de individualização das ações. Essa lógica aplicada à escola, segundo Thurler (2001, p. 27), afetou diretamente os estabelecimentos escolares como tal e em seu funcionamento, constituindo-se uma “[...] estrutura local-padrão, reprodutível em todos os sítios cobertos pelo mesmo sistema educativo [...]”. A partir de

[...] um sistema nacional ou regional unificado, apenas variam o tamanho e, às vezes, o modo de direção dos estabelecimentos. Os cadernos dos encargos e os horários dos professores são definidos como quaisquer postos de trabalho em uma indústria, de maneira que possam ser ocupados por pessoas intercambiáveis, com a única condição de possuírem a qualificação desejada para desempenhar seu papel (THURLER, 2001, p. 27).

Desde aquele momento, a escola foi organizada a partir de regras impessoais e gerais que estabeleciam quem mandava e quem obedecia, quem falava e quem calava, quem ouvia e quem era ouvido. Cada pessoa desempenhava uma função separadamente das demais, enfrentando os problemas e encontrando sozinha soluções para os impasses que vivenciavam. Ainda hoje, o individualismo é uma postura que dificulta promover mudanças nas práticas escolares de forma integrada, orientada por um projeto comum.

Conforme a cultura burocrática que se desenvolve na escola, a elaboração do projeto pedagógico está pautada em tendências pedagógicas que privilegiam a racionalidade técnica, a separação entre o pensar e o fazer. Dessa forma, cabe ao sistema de ensino planejar as políticas e as ações educativas; às escolas cabe implementar as determinações. A pedagogia que orienta esse projeto educativo centra-se ora na transmissão dos conteúdos, ora na utilização de técnicas de ensino, sem, contudo, possibilitar aos educandos enxergarem a realidade de forma integrada e crítica. Como as propostas curriculares organizam-se a partir de conteúdos específicos organizados de forma linear e fragmentada, acabam privilegiando a memorização em detrimento da compreensão.

Nesse sentido, a divisão do trabalho, que caracteriza as atividades das fábricas, tende a se reproduzir na escola: na separação das séries anuais e dos níveis de ensino nos sistemas educativos, nas disciplinas que integram o currículo escolar, nos conteúdos de ensino, no desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem, na separação das tarefas desempenhadas pelos profissionais que atuam na escola, na organização do tempo e do espaço escolar. A segmentação da vida escolar restringe, assim, as interações pessoais, permitindo o controle do que acontece na organização, da mesma forma que a hierarquização dos sujeitos nas posições sociais, delimitando as funções e o espaço de atuação das pessoas.

Ao analisar o individualismo como forma de relação cultural ainda dominante nas escolas, Thurler (2001) revela que o isolamento dos professores em suas classes garante que se concentrem no acompanhamento dos alunos, que construam um ambiente estável e criem uma dinâmica previsível em benefício daqueles educandos que se adaptam a esse modo de relação. E mais ainda: esse isolamento permite a reprodução das relações de poder, oferecendo aos profissionais uma proteção contra julgamentos e intervenções.

Alguns alunos, em especial os oriundos da classe dominante, foram capazes de responder e se firmar nesse sistema, absorvendo os conteúdos educativos que a escola reproduz. A maioria, porém, em geral os filhos da classe trabalhadora, não consegue enquadrar-se à rotina castradora da criatividade, da sociabilidade e tão diferente do seu meio cultural. Autores como Veiga Neto (2003), Moreira e Candau (2003) explicam que, historicamente, a escola tem desvalorizado os saberes, a linguagem dos grupos sociais excluídos, impondo o padrão cultural das elites, considerado o melhor que a humanidade possa produzir.

Dessa forma, a escola não só desvaloriza as culturas das classes sociais pobres como diminui as suas chances de obter êxito escolar. Isso porque, segundo Bourdieu (2004a), o nível cultural do grupo familiar mantém estreita relação com o êxito escolar da criança. Assim, os saberes, as habilidades, os hábitos e os gostos pessoais das crianças das classes favorecidas são diretamente utilizáveis na escola enquanto o mesmo não acontece com os demais grupos sociais.

É por meio dos livros, das disciplinas, dos processos de ensino, das rotinas, dos métodos, dos valores e das crenças difundidos nas escolas que se formam os esquemas de pensamento, a partir dos quais as pessoas compreendem a própria realidade. A cultura burocrática ainda orienta a prática de muitos professores, visto que um modelo de pensamento não deixa de existir de imediato, mesmo que já não responda às necessidades do momento. A trajetória dos profissionais, bem como a dos educandos, no exercício da prática educativa, foi marcada pela cultura burocratizada e, por vezes, confundida como sinônimo de escola. Incorporada pelos sujeitos, ela se torna, conforme Bourdieu (1989, p. 61), um habitus, uma “[...] disposição incorporada, quase postural [...]”, que norteia a ação das pessoas.

Entendemos, pois, que o ser do habitus também é capaz de refletir e de modificar suas ações em alguns aspectos, porém esse é um processo que requer tempo, reflexão e persistência. Para Bourdieu (2004b, p. 208), “[...] o campo cultural transforma-se por reestruturações sucessivas e não através de revoluções radicais, alguns temas são levados a primeiro plano enquanto outros são relegados sem serem completamente abolidos [...]”. Por isso, é necessário pensarmos a escola e a cultura não apenas como espaços de reprodução, mas como espaços onde o novo e o velho, a reprodução e a criação se misturam. Nesse sentido, Freire (2003) adverte que não devemos encarar os fatos como consumados, a história como determinismo, para que não aconteça a burocratização da mente, ou seja, que as pessoas se conformem às situações vividas.

Assim, a lógica burocrática que orienta a construção da cultura escolar, ao impor um padrão cultural único e desconsiderar a multiplicidade de culturas e de racionalidades existentes na sociedade, submete os educandos das classes populares ao fracasso escolar e à perpetuação de relações de dominação. Para muitos professores, a cultura burocrática constitui-se em uma espécie de habitus, porque se formaram nessa cultura, a despeito de serem capazes de promover mudanças historicamente.

O curso da história da sociedade moderna requer novas formas de atuação pedagógica, pois novas demandas se impõem à educação. Em razão disso, o modelo burocrático que ainda se constitui no modelo organizacional dominante nas escolas, ordenando as relações interpessoais e interinstitucionais, não responde aos reclamos dos problemas que se refletem na instituição escolar. Torna-se necessário conferir-lhe maior mobilidade para que responda às solicitações do seu entorno, passando a ser considerada como uma organização.

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