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CAPÍTULO 2 A CULTURA NAS ORGANIZAÇÕES ESCOLARES

2.3 A escola como instituição e como organização

2.3.2 A desburocratização na organização escolar

Nas reformas de Estado promovidas em alguns países da América Latina na segunda metade do século XX, o discurso político-econômico veiculado pelos meios de comunicação de massa destacam a necessidade de desburocratizar os serviços públicos. Por conseguinte, as escolas desenvolvem formas de gerenciamento inspiradas no setor empresarial e produtivo. Consideram os idealizadores que, para tanto, essas instituições devem construir uma cultura fundada na eficácia, na eficiência e na produtividade. Embora propondo mudanças de valores em relação à cultura escolar burocrática, as políticas de modernização acabam perpetuando relações de dominação.

As propostas políticas, na atualidade, difundem um discurso ideológico em que se expressa a necessidade de o Estado tornar-se mais eficiente substituindo o modelo burocrático pelo gerencial, visto que a racionalidade burocrática não responderia aos reclamos de um mundo em constante transformação. Conforme Chanlat (1990), o gerencialismo teve origem nas atividades comerciais e industriais da segunda metade do século XIII; contudo, somente a partir dos anos de 1980 tornou-se uma realidade social codificada impulsionada pelos imperativos financeiros das economias globalizadas. Designa tanto um conjunto de práticas e processos para se atingir um determinado fim quanto os atores que ocupam função de gestão.

A partir da década de 1980, com a vitória do neoliberalismo sobre o Estado providência, o modelo gerencial ganhou centralidade na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e no Chile, tendo como foco principal o corte de gastos no setor social, sem considerar as suas especificidades. Ao longo do tempo, o modelo gerencial vem se modificando para adaptar-se às realidades específicas e à utilização no setor público, não substituindo, contudo, completamente o padrão weberiano.

Abrucio (1997) assim sintetiza alguns indicadores do modelo gerencial: a) incentivo a parcerias com o setor privado e organizações não governamentais; b) inserção de mecanismos de avaliação de desempenho individual e de resultados organizacionais baseados em indicadores de qualidade e produtividade; c) maior autonomia e horizontalização hierárquica; d) descentralização política para melhorar a qualidade dos serviços prestados e aumentar o grau de accountability; e) utilização do planejamento estratégico para pensar mudanças a médio e longo prazo; f) flexibilização das regras que regem a burocracia; g) profissionalização do setor público; h) desenvolvimento de habilidades gerenciais dos funcionários.

No Brasil, essa mudança de paradigma no trato com o serviço público norteou a reforma do Estado e as reformas setoriais que este vem realizando. Na visão liberal de Bresser-Pereira24 (1998 p. 80), o crescimento do Estado e as modificações recentes de suas funções mostraram a ineficiência do modelo burocrático que não responde mais aos impositivos da gestão que requer posturas “[...] mais ágeis, descentralizadas, mais voltadas para o controle de resultados”, com a participação da sociedade no controle da gestão dos serviços públicos.

Assim, a reforma que o Estado vem implementando na área educacional tem em vista substituir valores burocráticos como a hierarquização das funções e das pessoas, a centralização do poder e o individualismo que repercutem, historicamente, na vida escolar, por valores como a eficiência, a eficácia, a qualidade25 e o trabalho coletivo requerido pelas transformações socioeconômicas em curso. Esses valores não são necessariamente novos, mas se tornaram centrais em função das políticas neoliberais de mercado. O individualismo também é um valor do modelo gerencial fomentado pela competição profissional, que é considerada um fator de incremento da qualidade do trabalho e de melhoria das condições de vida do trabalhador em decorrência do esforço individual.

Assim, em substituição à centralização de poderes que caracteriza o modelo burocrático, é esperado que as pessoas desenvolvam eficiência e eficácia no trabalho escolar por meio de estratégias como a descentralização de poderes e de encargos para os sistemas escolares e para outros campos na sociedade civil. Assim, conforme o princípio de accountability, foram criados mecanismos para fiscalizar os resultados da implementação das políticas públicas, mediante instrumentos provenientes da nova gestão pública como a responsabilização dos sujeitos escolares pelos resultados do seu trabalho e pelo

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Ex-ministro de Estado dos Negócios da Fazenda (1987) no Governo de José Sarney, ex-ministro da Administração Federal e Reforma do Estado no primeiro mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995 a 1998) e Ex-ministro da Ciência e Tecnologia do Brasil nos primeiros seis meses do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (janeiro a julho de 1999).

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A noção de qualidade tem se modificado ao longo do tempo e na atualidade aparece atrelada à eficiência e à eficácia. Segundo Enguita (1995), durante o período do Estado de Bem-estar Social, a qualidade do trabalho desenvolvido no setor público era medida pelo investimento realizado em recursos materiais e humanos; quanto maior o investimento maior a qualidade. Hoje a atenção se volta para a eficiência do processo. Seguindo a lógica do mercado, procura-se alcançar “o máximo de resultado com o mínimo de custo” (ENGUITA, 1995, p. 98). Portanto, se anteriormente o foco da questão da qualidade era proporcionar igualdade de oportunidade, em uma época de políticas neoliberais a qualidade se torna atributo para poucos, um diferencial de classe. Enquanto as classes mais abastadas investem na educação de seus filhos nas escolas privadas, nas escolas públicas, a qualidade da educação é tomada como eficiência nos gastos. Ocorre uma redução dos investimentos com salário e formação docente, o aumento do número de alunos nas salas de aula e dos turnos escolares, a responsabilização da comunidade por alguns gastos com educação e o fomento de parcerias com a iniciativa privada. Na perspectiva neoliberal, a qualidade do trabalho educativo refere-se à implementação de um conjunto de programas que visam propiciar resultados imediatos e enfatizam o desenvolvimento de competências técnicas.

desenvolvimento da sua competência, assim como pelo desenvolvimento de novos meios de controle desse trabalho por parte da sociedade. Segundo Cassassus (1999), esse sistema de rendição de contas do trabalho escolar corresponde a uma dinâmica de descentralização- centralização que acontece tanto nos sistemas tradicionalmente centralizados quanto naqueles descentralizados.

Nesse sentido, a participação da sociedade civil e a autonomia das escolas tornaram-se parte da estratégia de compensação do corte de verbas no setor social, garantindo a eficiência, a eficácia e a flexibilidade, que produziriam a qualidade da educação. É o que Barroso (2003, p. 127) considera como as novas formas de controle do trabalho escolar, que tornam os processos “[...] aparentemente menos rígidos e centralizados, assentes no ‘controle remoto’ e no ‘auto-controle’ [...]”. Nesse sentido, a autonomia expressa o autocontrole dos atores escolares na implementação das políticas educativas, as quais deveriam criar soluções para os problemas da educação, independentemente do governo. Essa é uma perspectiva política que fere a própria Constituição Federal Brasileira e demonstra autoritarismo por parte do Estado, que não deixa de atuar por meio da imposição e de controle diretos. Segundo Paro (2004, p. 13), o autoritarismo

[...] assume variadas formas. Ele não ocorre apenas quando o Estado se utiliza da máquina burocrática para exercer o seu poder ou quando há abuso da autoridade administrativa de modo direto. O autoritarismo se dá também, e em especial, quando o Estado deixa de prover a escola de recursos necessários à realização de seus objetivos.

Esse dispositivo de poder estatal também se revela na imposição de políticas de caráter neoliberal criando espaço de quase-mercado na educação pública e de desenvolvimento do modelo gerencial nas escolas. São propostas formas de as pessoas assimilarem valores gerenciais, como o individualismo e a competitividade, incorporando-os às práticas educativas e sociais e colaborando para a estabilidade do sistema capitalista. Influenciada por esses valores, a reforma educacional difunde, socialmente, significados que, supostamente, superam determinadas práticas burocráticas, mas não em aspectos que condizem com as atuais exigências da sociedade global e informacional. As práticas educativas são formas discursivas que produzem e expressam significados da e para a realidade, influenciando as culturas dos sujeitos.

Nesse sentido, Hall (2006) esclarece que os arranjos de poder discursivo ou simbólico, tal como os que observamos no seio das reformas educacionais, apresentam-se como formas de regulação da cultura. Dentre outras, consideramos as formas de imprimir mudanças na

cultura organizacional para moldar, governar ou regular os sujeitos, mesmo que indiretamente ou a distância, influenciando o sentir e o agir das pessoas nas organizações. Ainda conforme o autor, por meio de arranjos de poder discursivo ou simbólico, podem ser trabalhadas, diretamente, as subjetividades, “[...] sujeitando cada empregado a um novo regime de significados e práticas” e fazendo com que as pessoas se auto-regulem (HALL, 2006, p. 26, grifos do autor). Para isso, a estratégia empregada é fazer com que as motivações e as aspirações pessoais sejam alinhadas com as das organizações, de forma que as pessoas redefinam as suas capacidades e habilidades segundo as especificações da empresa, tornando seus os objetivos também organizacionais (HALL, 2006).

A exemplo de como a cultura vem sendo “construída” nas organizações empresariais, no âmbito da reforma educacional, documentos internacionais, como, por exemplo, o Projeto Regional para a América Latina – PRELAC –, enfatizam a necessidade de substituição das práticas burocráticas de administração do sistema educacional por outras de natureza flexível, capazes de formar um sujeito empreendedor. Nesse sentido, esse projeto esboça as mudanças que se pretende instituir na cultura do sistema educacional e da escola como um dos focos estratégicos no qual devem concentrar-se os esforços e as ações conjuntas dos países latino- americanos (UNESCO, 2005c).

Nesse documento, a escola é considerada um lugar de produção, de transmissão e de socialização da cultura assim como de construção de uma identidade pessoal. O Projeto Regional para a Educação esclarece a função que a educação da região deve assumir e os sentidos que deve refletir nas suas finalidades e nos conteúdos de ensino. Assim, a escola deve formar empreendedores cuja identidade tenha por base os valores que sustentam a ação do mercado. Estes, por sua vez, devem ter competência técnica e capacidade de organização o suficiente para inserir-se no processo produtivo de base flexível. Além disso, precisam ser autônomos para resolverem os problemas com os quais se deparam no dia-a-dia. De preferência, devem conviver em sociedade sem questionar as desigualdades e as injustiças, considerando-as naturais, como fruto de condições individuais, mas que podem ser superadas com esforço próprio.

Para formar esse sujeito, acreditam os idealizadores dessa educação que é necessário modificar a cultura da escola, pois, conforme o documento, a prática educativa é determinada por esta, pela forma como os docentes definem e assumem o seu papel e pelas expectativas recíprocas da comunidade escolar. Portanto, a melhoria da qualidade da educação passa pela transformação da cultura e do funcionamento das escolas, para que se formem cidadãos competentes, ativos e comprometidos (UNESCO, 2005c) com o desenvolvimento do capital.

O desafio, segundo o PRELAC, consiste em modificar o modelo tradicional de educação, que se caracteriza por unidades escolares isoladas e fechadas em si mesmas, em contraposição ao desenvolvimento de uma escola autônoma, flexível, democrática, conectada com o seu entorno e com o mundo global. No âmbito da reforma educacional da América Latina, embora se utilize uma retórica em defesa da participação, da autonomia e da valorização da democracia, a implementação das políticas representa a negação desses princípios. Diante dessa compreensão, não negamos a importância desses atributos, nem a necessidade de mudança na educação da região. Contudo, entendemos que as mudanças precisam ser acordadas internamente, discutidas e desenvolvidas com base em uma ampla participação dos atores nela implicados.

Contrariando esse nosso entendimento, as políticas de cunho gerencial introduzidas pela reforma educativa (década de 1990), no sentido de modificar a cultura escolar burocrática, atualizam este modelo e as relações de dominação que encerra, a fim de atenderem às transformações do sistema capitalista de produção. Valores como a centralização do poder, a hierarquização e o individualismo continuam vivos nas políticas educacionais, transfigurados nas noções de eficiência e de eficácia. Sabemos que esses valores não podem ser esquecidos nas práticas educacionais, mas não podem nem devem assumir a mesma conotação do contexto empresarial, pois o trabalho educativo tem sua especificidade.

Diante de tantas demandas que se impõem à educação, a escola precisa se adequar ao contexto sócio-histórico superando o modelo que a norteou historicamente, mas que não responde ao que a maioria da sociedade dela espera. Nesse sentido, Pérez Gómez (2001) adverte que a complexidade das tecnologias, a flexibilização das organizações, a fluidez da política internacional e a dependência de uma máquina econômica em constante mutação exigem maior responsabilidade dos docentes e exigem também que as escolas se tornem mais ágeis para responder às demandas do momento. Portanto, o sistema escolar precisa passar por mudanças nas quais se incluem a sua organização e o seu funcionamento apoiados em relações democráticas, críticas, criativas, diversas das que propõe o neoliberalismo.

A literatura mostra caminhos por meio dos quais a escola pode organizar-se na perspectiva flexível e integradora para responder a aspectos importantes de sua complexidade. Barroso (2003) considera que a partir da década de 1990, desenvolvem-se novas formas de organização escolar “pós-burocráticas”, que introduzem importantes mudanças nas escolas. Estas trazem diferenças significativas em relação ao modelo burocrático, pautadas no diálogo, na participação, na interdependência. Distinguindo as organizações chamadas interativas, de

algumas tentativas de aperfeiçoar a burocracia, que surgiram nos anos de 1970 e 1980, o autor ressalta que, nas organizações interativas, o consenso emerge do diálogo entre os membros da organização, a liderança é colaborativa e a comunidade escolar busca criar consensos e compromissos comuns. Assim, uma nova gestão da escola pública deve reforçar a autonomia escolar por meio da ação conjunta de 5 componentes fundamentais: a definição e a execução do projeto educativo da escola; a noção de contrato como forma de modernização da administração pública em geral, redistribuindo poderes ou, no interior das escolas, instituindo práticas de participação e de negociação de interesses; as lideranças coletivas dinamizando as relações interpessoais, redes de conhecimentos e mudanças; a participação na construção de acordos; e o desenvolvimento de redes que possibilitem múltiplas conexões entre as pessoas que desempenham funções distintas.

Diante dessa compreensão de Barroso (2003), entendemos que, no âmbito escolar, essas formas interativas de organização podem ser aprendidas à medida que a comunidade escolar cria as condições de participação dos sujeitos nas decisões; particularmente, na construção e na implementação de um projeto político-pedagógico. Requerendo um contrato coletivo que tem por fim a produção de mudanças nas práticas burocráticas, o projeto político- pedagógico suscita a orientação do trabalho escolar.

Assim como Barroso (2003), Thurler (2001) considera que os atores escolares precisam inventar novas formas de organização do trabalho escolar e que, aos poucos, as pessoas desenvolvem sua criatividade e sua competência na resolução dos próprios problemas, visto que suas ações se baseiam na interação entre a necessidade de estabilidade e de mudança. Dessa forma, os sujeitos desenvolvem novas culturas porque passam a “[...] valorizar a flexibilidade e a negociação, [...] tirar partido da incerteza e da diversidade, em vez de ignorá-las ou anulá-las” (THURLER, 2001, p. 39).

Vale ressalvar, em relação a esse aspecto, que a participação cria uma consciência coletiva e o suporte necessário para que as pessoas se lancem ao novo direcionadas pelas reflexões em torno do projeto político-pedagógico. Thurler (2001) destaca a importância desse projeto na coordenação dos esforços coletivos, impedindo que as pessoas recaiam no ativismo, na ineficiência. Assim, a comunidade escolar adquire conhecimentos e competências em um amplo processo de aprendizagem que possibilita às pessoas compartilharem objetivos e transformarem suas práticas. A autora mostra ainda que uma organização flexível requer uma divisão do trabalho que envolve os professores no desempenho de diversas funções pedagógicas e administrativas, o que antes não ocorria. Essa

nova forma de relação deve ser compreendida em função de determinadas competências e dos interesses da comunidade como um todo.

Desse modo, são construídos novos significados para as ações escolares por meio da elaboração e da implementação de um projeto político-pedagógico que norteia as ações dos sujeitos, o desenvolvimento de redes de relações cooperativas e da participação que possibilitam a edificação da autonomia escolar. Esse projeto, que tem a participação e a autonomia dos atores escolares como pressuposto, pode propiciar às organizações escolares o desenvolvimento de culturas com características diversas da burocrática, pois possibilita a formação e a socialização de novos sentidos para o trabalho escolar.

Com essa compreensão, tornam-se evidentes as diferenças entre a modernização proposta pelo modelo gerencial para atualizar as relações burocráticas desenvolvidas nas escolas e a construção de mudanças que visam superar as relações de dominação perpetuadas no espaço escolar. Ao contrário, o modelo gerencial, difundido pelas políticas educacionais da década de 1990 (e as atuais) pretende modificar a cultura das organizações escolares, difundindo socialmente valores e sentidos que perpetuam relações históricas, mas que não se sustentam diante de novas demandas postas à educação. As mudanças culturais propostas pelos educadores progressistas são construções das próprias organizações e decorrem de vivências efetivas de participação e de autonomia, orientadas pela reflexão que o projeto político-pedagógico suscita.

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