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O embate político entre projetos educacionais para a América Latina

CAPÍTULO 1 A SOCIEDADE GLOBAL E INFORMACIONAL E O EMBATE ENTRE

1.4 O embate político entre projetos educacionais para a América Latina

A sociedade global e informacional tem intensificado a desigualdade social, o aumento da pobreza e da violência, o apelo ao consumismo, ao individualismo, desorientando as pessoas que seguem rumo a um futuro incerto. Tal perspectiva decorre de um projeto socioeconômico produzido por forças conservadoras a serviço das minorias no poder em escala transnacional. Esse projeto tem como forças preponderantes os neoconservadores, que propõem um retorno à educação tradicional, e os neoliberais, que defendem um projeto educacional de baixo custo que atenda às necessidades do mercado. Ambas as forças, porém, pretendem garantir a continuidade do projeto de sociedade capitalista, marcada pelas desigualdades, pela exclusão socioeconômica e pela imposição da cultura dos grupos hegemônicos.

A despeito de, historicamente, a educação escolar ter desempenhado a função de socializar sentidos que propiciem a continuidade da dominação de classe, os educadores progressistas não a vêem apenas como um instrumento de regulação social, mas também como um mecanismo capaz de promover mudanças. Gadotti (1979, p. 13) considera que a “[...] escola não é a alavanca da transformação social mas essa transformação não se fará sem ela, não se efetivará sem ela”. Posto que a educação escolar desenvolve-se no interior da sociedade de classes, as relações existentes nesse âmbito não estão isentas de dominação e da reprodução das desigualdades sociais. Entretanto, como instituição educativa, a escola define- se também como um espaço de luta que reúne contradições, questionamentos e possibilidades de promover mudanças significativas na sociedade.

Para além de servir às forças econômicas, uma educação que visa à transformação social tem como finalidade o desenvolvimento humano em sua plenitude. Ao longo da vida, tanto os sujeitos individualmente quanto a família (e o meio social) exercem o importante papel de construção de sua humanidade, sendo que nesse desenvolvimento a escola compartilha responsabilidades, cumprindo papéis que têm suas especificidades.

Segundo Arroyo (2000), na relação com a família, a escola e o docente têm a peculiaridade do domínio profissional dos saberes, da arte, dos processos pedagógicos, da organização do tempo e do espaço, da articulação dos saberes e da cultura acrescidos da invenção dos recursos empregados na formação desse ser. Essa tarefa requer do profissional da educação o domínio de teorias e de métodos, um contínuo processo de leitura e de reflexão sobre a realidade visto que a sua função não se esgota no domínio de técnicas, mas “situa-se no campo dos valores e da cultura” (ARROYO, 2000, p. 44).

Como artífices desse processo de construção dos seres humanos, família e educadores estão juntos, tendo a consolidação de um projeto de sociedade, de formação, de educação e de cidadania conforme o contexto sociocultural que integram. A educação escolar, nesse particular, é descrita por Arroyo (2000) como um processo de construção do ser humano possível em cada um, tanto no que se refere ao educando quanto no tocante ao professor, considerando-se que, ao educar-se, a pessoa se humaniza e colabora na humanização do educando.

Na concepção desse autor, o educador se define tendo como referência um protótipo de ser humano que pretende formar e, com base nisso, seleciona conteúdos e formula programas mantendo uma estreita ligação com as opções que pretende concretizar em relação aos grupos, classes, raças e gêneros com os quais trabalha. Portanto, na seleção dos conteúdos e dos programas escolares, na organização do trabalho escolar, nas relações interpessoais que acontecem no interior da escola, aflora o compromisso com esse ideal de formação do ser humano e de sociedade, assim como a opção para formar “[...] um ser humano competititivo para uma sociedade competitiva ou um cidadão participativo para uma sociedade igualitária” (ARROYO, 2000, p. 81).

Com base nessas concepções, delineia-se a opção por uma educação que valoriza a humanização ou a inserção no mercado de trabalho, a qual estará implícita nos conteúdos de ensino que a escola elege e na composição do seu currículo oculto. Essa opção política do educador expressa-se no projeto político-pedagógico da escola, na rotina escolar, nos rituais escolares, nas relações entre os profissionais da escola, destes com os educandos, com os pais ou outros responsáveis pelo aluno e com os demais níveis do sistema educacional.

Se a educação humanizadora tem por fim preparar o educando para o desempenho de uma atividade produtiva, deve investir, principalmente, no desenvolvimento das dimensões éticas, políticas e culturais que constituem o ser humano. É bem verdade que a educação escolar não pode estar isenta das necessidades do mundo do trabalho, o que implica propiciar ao educando a construção de conhecimentos e o domínio de técnicas que permitam inseri-lo nesse universo de relações. Como atividade histórica, o trabalho é uma instância de criação e de realização na qual o homem, ao se relacionar com os seus semelhantes e com os elementos da natureza, produzindo objetos sobre os quais incide a sua ação, transforma-se também como ser criativo.

A formação para o trabalho e para a cidadania deve ser mediada pela dimensão ética a partir da qual as pessoas definem as suas ações como boas ou más, conforme o grupo a que pertence. É na interação com a natureza e com os outros homens que o sujeito se torna ético,

ou seja, capaz de se apropriar e de refletir sobre os sentidos e os valores de seu meio, pautando a construção de suas práticas e de seu futuro nessa capacidade reflexiva.

Como afirma Goergen (2005, p. 72), tornar-se “[...] um sujeito ético é um processo necessariamente individual e social em decorrência da condição humana de ser cultural”. O ser de cultura é um ser de valores, e o processo educativo deve propiciar aos educandos o poder de ultrapassarem a visão de mundo de seus grupos particulares para que possam compreender, respeitar e posicionar-se perante as diversas formas culturais com as quais convivem. Assim, a escola deve ainda levar os alunos a refletirem sobre o momento sócio- histórico em que vivem, sobre a relação das pessoas e dos grupos sociais, sobre a interação entre o homem e a natureza, para que possam assumir-se como seres políticos e históricos.

A condição política do ser humano é também ressaltada por Severino (2005), ao considerar que a existência humana é um contínuo devir histórico ao longo do qual o homem se constrói, sendo suas práticas marcadas por sentidos vinculados a objetivos e fins definidos historicamente. Portanto, ele não é apenas um ser de valores; é também político uma vez que, em conformidade com os seus valores, define as finalidades de suas ações e se compromete em alcançá-las. Assim, as dimensões políticas e éticas na educação humana entrelaçam-se na orientação individual e coletiva dos sujeitos.

Refletindo política e eticamente sobre a realidade, os homens se (re)descobrem como autores da sua história, construtores de sua humanidade. Por isso, para além da função de ensinar conteúdos e técnicas, a escola deve realizar o exercício de analisar criticamente a realidade e possibilitar ao aluno a construção dos saberes necessários para questionar os fluxos sociais, elaborar alternativas de ação e tomar decisões sempre que seja impelido a fazê- lo. Segundo Pérez Gómez (2001, p. 263), só é possível entender que a escola é educativa quando os conhecimentos, as experiências, as construções simbólicas que propicia “[...] sirvam para que o indivíduo reconstrua de modo consciente seu pensamento e atuação, através de um longo processo de descentralização e reflexão crítica sobre a própria experiência e a comunicação alheia [...]”.

Cumprindo, assim, a sua função de educar, a escola constitui-se em um espaço onde educandos e educadores refletem sobre a sua própria realidade e propõem os meios para modificá-la. Propiciando o desvelamento da realidade, a educação favorece aos indivíduos que se reconheçam como parte da sociedade, partilhando com os demais membros um destino comum, apesar de os grupos sociais terem interesses diversos e divergentes. Na medida em que existem projetos sociais e éticos conflitantes na sociedade, as opções políticas e éticas “[...] sempre dependerão da autonomia do sujeito que, em última instância, deve decidir

segundo sua consciência, em circunstâncias concretas. Mas isso, por si só não significa o fim das utopias, o fim do projeto de uma sociedade e de um homem melhor” (GOERGEN, 2005, p. 70).

Nesse sentido, entendemos que um projeto educativo que tem como objetivo a construção de uma sociedade mais justa, com pessoas capazes de agir coletivamente, fundamenta-se em valores como a cidadania, a democracia e a autonomia. Para Severino (2005, p. 149), a educação é uma das formas de mediação da vida humana e se legitima ao propiciar a construção da cidadania, “[...] pensada como qualidade específica da existência concreta dos homens [...]”, que é sempre historicamente situada. Por isso, quando a educação investe nas condições pessoais de desenvolvimento da “[...] cidadania, do lado dos sujeitos sociais estará investindo na construção da democracia, que é a qualidade da sociedade que assegura a todos os seus integrantes a efetivação coletiva dessas mediações” (SEVERINO, 2005, p. 149).

Ao longo da história, a noção de cidadania tem servido, nas sociedades capitalistas, tanto às forças emancipatórias quanto à legitimação de relações mercantis e de exploração de classe ao reconhecer os indivíduos como seres iguais e livres, dissimulando, assim, as desigualdades socioeconômicas. Por conseguinte, a noção de cidadania deve ser reconhecida como um espaço de confronto entre projetos socioeconômicos, políticos e culturais, de construção de direitos importantes para as classes trabalhadoras. Nesse sentido, uma educação que tem por objetivo preparar os sujeitos para o embate político pela concretização e expansão dos seus direitos sociais investe em ações de natureza democrática, que propiciem a construção da cidadania, da autonomia, da participação nas decisões e da construção de forças solidárias capazes de construir mudanças que atendam aos interesses da maioria da população. A consolidação de um projeto de educação e de sociedade dessa natureza constitui-se em um exercício de humanização daqueles que estão nele envolvidos. Por sua vez, a construção do projeto político-pedagógico da escola deve tornar explícitas as opções político- pedagógicas da comunidade que o elabora. Esse processo, assim como a sua implementação, possibilita a construção de sentidos comuns que podem concorrer para a transformação da realidade escolar. Isso porque a vivência desse projeto constitui-se em contínuas oportunidades de reflexão sobre a prática educativa desenvolvida na escola, o contexto em que ela acontece, os hábitos e os valores que orientam a comunidade, tendo em vista o norte político definido para orientar a ação coletiva. Como esclarece Bondioli (2004, p. 27), o projeto político-pedagógico coloca-se na “[...] tensão entre ‘ser’ e ‘ter de ser’ que permite imaginar e fundar o novo e o diferente”. Constitui-se, então, em uma visão de futuro

negociada, discutida, concretizada, avaliada e redimensionada, enfim uma grande operação político-educativa para promover a democracia, a autonomia, a transformação da realidade escolar e a humanização dos seus atores.

Nesse projeto, está implícita uma educação humanizadora, pautada na ação democrático-participativa, a qual tem como pressuposto o diálogo, que possibilita a construção de consensos com base nos quais os indivíduos decidem e coordenam os rumos de suas ações individuais e coletivas. A ação dialógica entre os homens, conforme a compreensão de Habermas (1990), é a base de formação da identidade pessoal, que tanto possibilita a evolução social da humanidade, como pode levar os homens a se emanciparem das relações de dominação que o sistema capitalista tem imposto ao trabalhador20. Possibilita a argumentação, a construção de consensos e assegura a motivação. A comunicação torna o entendimento realizável e para tanto o agir comunicativo deve respeitar regras intersubjetivas de validade universal como a verdade, a justeza e a veridicidade reconhecidas reciprocamente pelos que dialogam.

Uma educação cujo objetivo é superar a desigualdade e a dominação tem por base uma interação comunicativa que propicia a superação dos conflitos. Nesse sentido, Goergen (2005) considera que é responsabilidade da teoria crítica da educação desvendar o caráter ideológico de determinadas formulações educacionais e afirmar os valores democráticos, sendo que as ações comunicativas propiciam consensos que precisam ser continuamente submetidos a discussões e a reformulações. Apoiando-se na Teoria Comunicativa de Habermas, Goergen (2005, p. 67) considera importante termos o “[...] entendimento dialógico-discursivo entre todos os agentes interessados e responsáveis pelo processo educativo (pais, professores, gestores etc.) para formular objetivos e valores a serem buscados na prática pedagógica”.

Contrariando essa perspectiva, no Brasil, o modelo de administração burocrática que pauta a organização dos sistemas educacionais tem dificultado o desenvolvimento da ação dialógica, a concretização de valores como a democracia, a participação dos sujeitos nas decisões comuns e na concretização de ações coletivas, comprometendo, assim, o exercício da autonomia escolar. Esse modelo, que propicia o desenvolvimento de uma cultura escolar marcada pela submissão da classe trabalhadora, tem dificultado o desenvolvimento de

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Para Habermas (1990), pela interação subjetiva e pela livre comunicação, é possível encontrar alternativas para superar as contradições do capitalismo. Esse sistema tem-se orientado pela ação racional relativa aos fins que viola duas condições fundamentais da existência cultural: a linguagem e a socialização comunicativa. O autor defende a idéia de que o agir racional relativo aos fins não assegura a motivação dos sujeitos, que podem ou não concordar com as ações que precisam desempenhar, por isso existem normas que garantem o agir consensual. Esse consenso, contudo, é aparente, pois esconde a contrariedade da parte de quem está subjugado a ele. A emancipação das relações de dominação que tem subordinado os trabalhadores historicamente “exige antes uma comunicação sem restrições sobre os fins da práxis vital” (HABERMAS, 1987, p. 89).

mudanças nas organizações escolares pautadas na construção dialógica de sentidos e de valores que possibilitem a formação de sujeitos coletivos.

As mudanças que ocorrem nas práticas escolares pela vivência de valores democráticos levam os educandos e os educadores a assumirem a condição de sujeitos coletivos e históricos. Como analisa Severino (2005, p. 145, grifos do autor), “[...] a substância do existir é a prática, [...] o modo de ser que decorre do agir. É a ação que delineia, circunscreve e determina a essência dos homens. É na e pela prática que as coisas humanas efetivamente acontecem, que a história se faz”. Nesse sentido, além de propiciar a reflexão acerca dos valores democráticos, a escola deve promover vivências por meio das quais o educando possa incorporá-los. Dessa forma, tanto a democracia quanto a participação, a cidadania e a autonomia constituem-se em referências às práticas educativas dos educandos traduzidas em projetos como o político-pedagógico.

Assim, os educadores progressistas compreendem as organizações escolares como espaço de questionamentos de relações de dominação e de construção de mudanças que propiciem o desenvolvimento humano na sua plenitude. Uma educação humanizadora não tem em vista apenas a formação do sujeito produtivo mas também o desenvolvimento das dimensões éticas, políticas e culturais que constituem esse ser, a fim de que possa construir coletivamente forças solidárias de ação histórica. A elaboração e a implementação do projeto político-pedagógico da escola constitui-se em uma oportunidade de exercício da ação democrática, de construção dialógica de valores e de sentidos comuns que possibilitam o desenvolvimento do sujeito coletivo, da autonomia escolar e, por conseguinte, de superação da cultura escolar burocrática, que tem propiciado relações de dominação no contexto escolar.

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