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CAPÍTULO 2 A CULTURA NAS ORGANIZAÇÕES ESCOLARES

2.1 Homem: um ser de cultura

A cultura perpassa tudo o que é social, a vida das pessoas e as representações que constroem acerca dos fatos, assumindo um lugar de relevância na compreensão das práticas sociais. O próprio fato de tornar-se homem já representa uma aprendizagem cultural que se inicia com o nascimento e se prolonga por toda a vida em diferentes espaços sociais. Nestes, as pessoas (re)criam normas, crenças, valores, ou seja, culturas que norteiam as suas relações com o meio e com os seres humanos, possibilitando a vida em sociedade. É aprendendo os sentidos atribuídos à realidade pelo seu grupo que o ser humano se faz homem, um ser de cultura que desenvolve suas potencialidades e se torna único.

Cada homem é único, diferente, individual; é a partir de um processo de interação com outros seres humanos e com o meio ao qual se integra, que o ser humano ensina e aprende o necessário a tornar-se membro de uma determinada sociedade. Segundo o sociólogo Elias

(1994), o homem constitui-se nas relações sociais, em um processo contínuo de constituição e de transformação. Apesar de todos passarem por uma modelagem cultural, suas relações e posições bem como as histórias de cada um são diferentes, particulares. Assim, o fato de ser único não se deve à natureza inata do homem, “[...] depende da estrutura da sociedade em que ele cresce. O seu destino, como quer que venha a revelar-se em seus pormenores, é, grosso modo, específico de cada sociedade” (ELIAS, 1994, p. 28, grifo do autor).

Nesse sentido, o autor considera que existe uma ordem invisível na sociedade, que não é diretamente percebida, mas que fornece a cada pessoa as formas possíveis de atuarem em grupo. Cada pessoa está ligada a outras por diversos laços (afetivos, profissionais, de propriedade etc.), que podem ser modificados dentro de certos limites, tornando-as dependentes umas das outras. Esses laços formam redes de funções interdependentes, elásticas e variáveis, que unem os indivíduos entre si, constituindo o que o autor chama de sociedade.

Cada indivíduo aprende as formas de comportamento, os modos de sentir, de ver e de viver, os sistemas de símbolos significantes dos seus grupos sociais mediante relações de poder. Na visão antropológica de Geertz (1989), a cultura é um conjunto de mecanismos simbólicos de controle do comportamento humano, que fornece os limites para o que os homens são capazes de se tornar. São os padrões culturais, entendidos como um sistema de símbolos significantes, que proporcionam a forma, a ordem, a direção e o objetivo de vida particular.

Os padrões integrados de comportamento convertem-se em hábitos de massa que tendem a projetar-se em comportamentos futuros. Os costumes, dessa forma, correspondem ao modo correto de fazer alguma coisa. Mas para que essa assimilação se faça viável, é preciso que, desde cedo, seja iniciado esse processo educativo na família, nas organizações escolares e em outros espaços sociais. É nesses espaços de convivência que os sujeitos aprendem diversos padrões de comportamento, conforme a idade, o sexo, a classe social e a profissão, dentre outros aspectos.

Todos os grupos humanos produzem culturas porque conferem sentido, previsibilidade e estabilidade às suas ações, tornando-as referenciais a partir das quais as pessoas interpretam as ações umas das outras. Do mesmo modo, é em função do discurso e das práticas culturais que o indivíduo desenvolve diferentes formas de identidade e assume, consciente ou inconscientemente, determinados significados por meio dos quais se define como ser de cultura.

Por meio da linguagem, as pessoas constroem os sentidos que orientam a vida social. O mesmo acontece nas organizações em que se associam. Assim, os objetos e as ações ganham significados por intermédio da linguagem e das representações que os sujeitos criam sobre eles. Por conseguinte, “[...] o significado surge, não das coisas em si – a ‘realidade’ – mas a partir dos jogos da linguagem e dos sistemas de classificação nos quais as coisas são inseridas. O que consideramos fatos naturais são, portanto, também fenômenos discursivos” (HALL, 2006, p. 13).

Sendo assim, por meio da linguagem, os sujeitos não só ensinam e aprendem as convenções culturais de seu grupo mas também discutem e defendem suas idéias, argumentando entre si, tornando-se capazes de construir novas significações. A importância da palavra para a construção de significações discursivas também é abordada por Bakhtin (1992) a partir de um outro ponto de vista. Para Bakhtin (1992, p. 38), a “[...] palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação”; ela é a base da vida interior, que se entrecruza com uma massa de outros significados, pois são os signos que nutrem o psiquismo subjetivo, o qual se desenvolve em contato com outros seres humanos e com o mundo exterior.

É o universo semântico da linguagem que possibilita estabelecer relações entre o indivíduo e o mundo que o cerca. Logo, trabalhando por meio de imagens suscitadas pelos símbolos lingüísticos, os sujeitos tanto incorporam a cultura quanto a (re)criam de modo que os símbolos adquirem sentidos específicos que podem ser compartilhados em uma dada realidade sócio-histórica. Para que isso aconteça, as mensagens veiculadas pelo grupo devem ser aprofundadas e repetidas continuamente, incorporando-se à consciência coletiva. Isso demonstra a relevância da utilização de ritos, cerimônias, histórias e mitos por meio dos quais a sociedade comunica princípios e valores dos grupos fazendo com que estes se mantenham vivos na consciência dos sujeitos.

As redes de significações construídas coletivamente também implicam a perpetuação das relações de dominação entre os indivíduos, pois, conforme Bourdieu (1989), o simbolismo constitui-se em um poder invisível como poder, já que se coloca onde menos se deixa ver e, embora seja reconhecido, é ignorado pelos sujeitos. Operando por meio do deslocamento de sentidos, o poder simbólico faz ver e crer, confirma e transforma o mundo, mobiliza os indivíduos desde que seja ao mesmo tempo reconhecido e ignorado como arbitrário. Define-se, pois, nas relações estabelecidas entre os que o exercem e os que a ele se sujeitam: o “[...] que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia,

crença cuja produção não é da competência das palavras” (BOURDIEU, 1989, p. 14-15). Portanto, a crença na legitimidade e na autoridade da pessoa que fala, a adequação do discurso à situação e aos sujeitos a quem se dirige são condições de eficácia simbólica capaz de levar as pessoas a agirem sobre a realidade, incorporarem os sistemas simbólicos do grupo e a (re)criá-los.

Assim, uma mesma linguagem cujo sistema simbólico possibilita a construção de convenções e de instituições culturais que tornaram o ser humano homem e possibilitam a vida em sociedade também propicia a construção de sentidos que legitima relações de dominação do homem pelo homem. Por isso, torna-se importante para as classes dominantes, no contexto da sociedade global e informacional, da reforma do Estado e de seus aparelhos, difundir significações que atendam aos seus interesses particulares pela via dos meios de comunicação de massa. Por essa via, assim como pela reforma educativa, busca-se modificar o senso comum, utilizando-se do poder simbólico da palavra para perpetuar as relações de dominação. A palavra, entretanto, como instrumento de construção simbólica, também é capaz de desvelar relações dessa natureza por meio de uma luta contínua.

O ser que se constitui compartilhando um conjunto de significações que permeiam as relações sociais é também aquele capaz de pensar, de refletir, de olhar a distância, de procurar as melhores maneiras de intervir na realidade e de criar as condições necessárias para atuar no mundo. De acordo com Castoriadis (1982b), este é o ser autônomo que vive segundo as suas próprias leis. Para isso, o discurso cultural, que também implica dominação, que é representado pelo imaginário social autonomizado, inconsciente, é "[...] um discurso estranho que está em mim e me domina: fala por mim" (CASTORIADIS, 1982b, p. 124), devendo, por isso, ser substituído pelo discurso dos próprios sujeitos que o negam ou o afirmam com conhecimento de causa.

Dessa compreensão, decorre a necessidade de reflexão sobre os aspectos culturais, de aceitá-los ou refutá-los com conhecimento de causa, sendo-se capaz de modificá-los, se necessário, tendo em vista a construção de significados comuns que garantam o bem-estar da maioria dos que compõem um determinado grupo. Castoriadis (1982b) reconhece que nem o discurso pronunciado pelo sujeito pode ser totalmente dele, nem é possível que uma pessoa se torne autônoma definitivamente. Contudo, reconhecendo-se como instituída, essa pessoa não se deixa dominar pelas instituições, a não ser que assim deseje. Ainda conforme o autor, uma relação autônoma só adquire sentido pleno na coletividade e este é o espaço da intersubjetividade em que a existência humana ganha sentido. A união e a tensão entre o

instituinte e o instituído é o que faz a história, inscrevendo as sociedades em uma teia de continuidade e de mudanças.

Compreendemos, então, que a decisão autônoma passa pelo exercício da razão crítica, por um estado de reflexividade do sujeito sobre si e sobre as concepções que orientam a vida em sociedade. A autonomia representa o momento em que o sujeito se (re)posiciona perante o discurso do outro, sai de um mundo em que impera a alienação, a dominância, para uma atitude de questionamento sobre si e sobre os outros, visando reduzir a opressão e a alienação vigente na sociedade. Portanto, o homem se desenvolve nas relações sociais à medida que se integra em um processo contínuo de constituição e de transformação. Com base em sistemas de símbolos significantes, códigos e normas aprendidos ao longo da sua trajetória histórica, os sujeitos (re)interpretam a realidade e buscam respostas para os desafios que o meio social lhes suscita. Tornam-se agentes de mudanças atuando no meio social e em suas organizações.

Portanto, é a cultura que torna possível a vida em sociedade e a linguagem é o meio pelo qual os grupos sociais atribuem significados às suas ações. Como um sistema simbólico, a linguagem tanto possibilita que os sujeitos compartilhem significados quanto realizem deslocamentos de sentidos (que permitem a dominação do homem pelo homem), que, com o tempo, são incorporados pelos sujeitos, naturalizando as relações dessa natureza. Entretanto, também é a linguagem que possibilita a reflexão e o desvelamento das relações de dominação, pois, ao refletir sobre as suas relações e sobre a cultura, os homens podem se tornar autônomos e modificar suas relações.

Como toda prática social depende de significados compartilhados por seus membros, entendemos que também no espaço escolar existem culturas constituídas em estreita interação com a sociedade de cada época. Essas culturas são permeadas por relações de dominação de classe e interpessoais; entretanto, é possível construírem-se formas de relações distintas dessa natureza.

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