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A defesa do irracionalismo

Capítulo 2 - O nazismo e os limites do capitalismo para ciência

2.3 A defesa do irracionalismo

51 possibilidades juntas. No entanto, a literatura sobre o nazismo produziu diversas análises sobre os fundamentos desse irracionalismo místico.

52 fato verdadeira. Ele afirma que tal postura “é a tal ponto a regra e a lei que quase nada é mais inconcebível do que como pôde aparecer entre os homens um honesto e puro impulso à verdade”93. A razão, o intelecto, portanto, não aproxima da verdade como afirma a tradição da filosofia ocidental, mas é justamente a negação dela.

As teorias apresentadas por Nietzsche, na medida em que negava todos os fundamentos das sociedades que se diziam modernas do século XIX, a saber, os ideais cristãos, assim, também, como a ciência moderna, apresentam como única solução possível a ideia de um indivíduo superior espiritualmente, o “super-homem”.

No entanto, ainda que suas ideias tenham proliferado no conservadorismo italiano e alemão, o foco de Nietzsche era a crítica à filosofia em si e aos caminhos traçados pela humanidade em um sentido de repudiar o status quo, o que fez dele não só uma referência para conservadores, mas também para grupos e indivíduos de esquerda.94 A crítica universalista nietzschiana foi absorvida pelos nazistas na Alemanha com um conjunto de teorias que defendiam o irracionalismo desde uma perspectiva local.

O trabalho de Jeffrey Herf, O Modernismo Reacionário, de 1984, produz um relato do processo de constituição dos discursos irracionalistas e místicos vinculados à produção do romantismo alemão no século XIX. Herf aponta como um dos principais fundamentos dessas teorias a crítica à racionalidade moderna fundamentada na ideia de Zivilisation (Civilização), enquanto um ideal capitalista liberal de origem inglesa e defendia a Kultur (Cultura) e os völkisch95 da tradição alemã como caminho de salvação à crise social instaurada com a 1ª Guerra e suas consequências.96

93 Ibid., 53.

94 Paxton, A Anatomia do Fascismo, 65.

95 Expressa o sentido de nação ou comunidade.

96 Herf, O Modernismo Reacionário, 29.

53 Um expoente dessa visão foi Oswald Spengler (1880-1936), autor de O Declínio do Ocidente, de 1918, e Prussianidade e Socialismo, de 1919. Como aponta Herf, as ideias defendidas nessas obras, bem como em outros artigos publicados por Spengler, tornaram-no uma forte referência para os conservadores alemães, incluindo o movimento nazista, na década de 1920. Ele era parte de um grupo de intelectuais vindos das áreas politécnicas e defendia a construção de uma proposta crítica à Zivilisation, porém sem negar os avanços tecnológicos provenientes do processo de industrialização.97

A análise de Herf aponta para algumas teses de Spengler que contribuíam para os fundamentos nazistas. A primeira era a defesa de uma luta anticapitalista que retirava a questão de classe como elemento base e colocava em seu lugar a questão da nação. Spengler defende a ideia de um socialismo que estabeleceria uma “ditadura da organização”, o socialismo prussiano seria estabelecido em valores verdadeiramente alemães, como os valores de lealdade, disciplina, espírito de renúncia e sacrifício, assim como o bem do coletivo acima do indivíduo.98

A negação da racionalidade era, também, ponto de destaque nas teorias de Spengler que formula as ideias de lei, como uma representação do campo da ciência e do pensamento racional, e a de Gestalt, no campo da intuição ou do sentimento. Em sua narrativa, a decadência da humanidade de seu tempo estaria relacionada ao domínio da racionalidade e da abstração enquanto elemento de compreensão da realidade que se sobrepôs à intuição.

97 Ibid., 61.

98 Ibid., 65-66.

54 Um outro ponto apresentado por Herf e que é também exemplo da característica anterior está na negação da Zivilisation, representante da lei e da modernidade racional, expressa na oposição entre cidade e campo. A cidade representa o espírito, o intelecto que, no capitalismo, foi dominado pelo dinheiro e, por consequência, produziu um processo de impessoalidade e desconexão do ser humano com a natureza. Enquanto o campo representa os valores aristocráticos de sangue e tradição, também há ligação com a ideia de raiz, ou seja, de ligação do homem com a natureza.99

Por fim, a resposta a tamanha decadência e a consolidação do projeto de socialismo prussiano estava na defesa de Spengler da necessidade de uma liderança com força messiânica, uma aristocracia ungida de forças místicas com a força para superar a burguesia e seu projeto racionalista.100

Estabelecer conexões entre as ideias que serviram de inspirações para o desenvolvimento do nazismo não significa dizer que são essas ideias fascistas em si.

Assim como Bernal reconhece esse movimento de apropriação em citação já referida, o historiador Robert Paxton corrobora com sua leitura e aponta esse processo nos dois exemplos citados neste trabalho. O filósofo Friedrich Nietzsche ridicularizava a ideia, já difundida em seu tempo, do sangue puro alemão, e ainda que houvesse uma valoração de muitos nazistas pelas teorias de Spengler, ele não endossou as tentativas de tomada de poder de Hitler, em 1932.101

O fortalecimento dos valores tradicionais germânicos, que ficaram conhecidos como völkisch, em detrimento dos valores racionais modernos, como visto em

99 Ibid.,70.

100 Ibid., 71.

101 Paxton, A Anatomia do Fascismo, 65 - 74.

55 Spengler, ganharam ainda mais força com as ideias eugenistas102. Paxton aponta como a eugenia se tornou uma referência para políticas públicas de esterilização de cidadãos vistos como inferiores em muitos países da Europa, sobretudo nas regiões nortes como a Suécia e, também, nos EUA. Afirma, também, que essas ideias não tiveram tanta penetrabilidade e impacto sobre o fascismo italiano, mas se tornaram um alicerce central na criação da narrativa nazista de sangue puro e da necessidade de expurgar os judeus.103

A valorização do sangue como elemento constitutivo das características de superioridade era expressa, como apontou Bernal, na reivindicação de uma “sapiência alemã” em detrimento de uma “pseudociência judaica”. São citados textualmente representantes da ciência nazista que discutiam, inclusive em publicações internacionais, como o Nobel de Física Johannes Stark (1874-1957) para a Nature, em 1938, posicionamentos que afirmavam que o bom fazer científico estaria ligado ao sangue ariano, enquanto os judeus só produziriam uma ciência dogmática.

Nós podemos concluir que a predisposição para o pensamento pragmático ocorre com mais frequência em homens da raça Nórdica. Se examinarmos os criadores, representantes e propagandistas das teorias dogmáticas modernas, encontramos entre eles uma preponderância de homens de ascendência judia.104

O que é chamado de ciência dogmática são as novas propostas de compreensão da realidade, como as teorias de Einstein e Schröedinger, enquanto as chamadas ciências pragmáticas seriam as que seguem as tradições dos grandes

102 Como apontado no capítulo anterior, a luta contra as teorias eugenistas foi um dos pontos de união de parte da comunidade científica do campo progressista na luta contra o fascismo.

103 Paxton, A Anatomia do Fascismo, 71-72.

104 Stark, The Pragmatic and the Dogmatic Spirit in Physics, 772.

56 homens de ciência, Newton e Galileu que inclusive, segundo Stark, teriam ascendência ariana105.

Bernal argumenta como a criação dessa ciência de raça levou à expulsão dos centros científicos e, junto a isso, foi realizado um movimento de desqualificação de qualquer conhecimento que tivesse origem em pensadores e cientistas com origem judaica.

Curioso e, ainda trágico, perceber que, como é demonstrado por Bernal, o malabarismo teórico criado para construir o ideal de uma ciência fundamentada em raças inferiores e superiores, teoria essa já superada naquela época por trabalhos nas áreas da sociologia e antropologia (fato esse, inclusive, lembrado na obra), usa como justificativa a ideia de que a irracionalidade se encontrava naqueles que defendiam um fazer científico livre e traziam novas abordagens para o fazer científico. Bernal deixa patente que a tática da desqualificação do outro é um fundamento para justificar seu argumento desqualificado.