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Capítulo 3: O socialismo como resposta

3.1 Que fazer?

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73 desenvolvimento do capitalismo, bem como, já na época de Marx, ele postulava o uso da ciência para o benefício da humanidade.

A base dessas concepções está na crítica ao capitalismo em desenvolvimento que foi realizada ao longo dos últimos cem anos por Marx, Engels e Lenin. Marx foi criado na tradição da ciência em rápido crescimento do século XIX; ele viu as possibilidades que estava oferecendo à humanidade, mas, ao contrário de outros que também as viram, ele entendeu como e por que essas possibilidades dificilmente seriam realizadas. A pedra angular do estado marxista é a utilização do conhecimento humano, ciência e técnica, diretamente para o bem-estar humano139.

Dessa questão Bernal depreende um aspecto trabalhado acima, no capítulo 1, que norteou sua apresentação sobre a História da Ciência: a consideração para a relevância do conhecimento científico e, que é também um fundamento da teoria marxista140, a relação entre ciência (teoria) e prática. Assim afirma como logo após Lenin assumir o poder da Rússia, ainda no processo de luta pela defesa do Estado contra as invasões estrangeiras, “uma das primeiras considerações foi como realizar esse uso da ciência na prática”141. A conexão entre ciência e prática é apresentada como um processo percebido por Marx, Engels e Lenin enquanto uma forma ainda inconsciente no fazer científico burguês, mas que se desenvolvido de forma consciente pode alcançar a plenitude.

Em relação às referências utilizadas, são citados trechos dos três pensadores nas notas do capítulo. A nota sobre Marx é parte de um discurso feito em Londres em

139 Ibid.

140 Essa discussão no marxismo se fundamenta na chamada práxis, por mais que Bernal não desenvolva o conceito, as diversas referencias utilizadas sobre a importância de conciliar teoria e prática, retomam a noção de práxis, enquanto uma ação consciente e dialética do ser humano em agir sobre a realidade. Ver Renato A. da Silva, “O Conceito de Práxis em Marx”.

141 Bernal, Social Function, 222.

74 apoio ao movimento Cartista142, em 14 de abril de 1856. Simbólico o uso de um documento que faz referência ao apoio da luta do proletariado britânico mas, para além desse elemento, são apresentadas duas questões que expressam fundamentos da teoria marxista sobre a ciência e seu progresso. Em um trecho é dito que

Há um grande fato, característico deste nosso século XIX, fato que nenhum partido ousa negar.

Por um lado, começaram a existir forças industriais e científicas, das quais nenhuma época da antiga história humana jamais suspeitou. Por outro lado, existem sintomas de decadência, que superam em muito os horrores registrados nos últimos tempos do Império Romano. Em nossos dias, tudo parece grávido de seu contrário: a maquinaria, dotada do maravilhoso poder de encurtar e frutificar o trabalho humano, vemos faminto e sobrecarregado;

(...)

Mesmo a pura luz da ciência parece incapaz de brilhar a não ser sobre o fundo escuro da ignorância. Todas as nossas invenções e progressos parecem resultar em dotar as forças materiais de vida intelectual e em estultificar a vida humana em uma força material.143

O uso dessa passagem demonstra como Bernal está de acordo com a leitura dialética de Marx que expressava o capitalismo como produtor das condições materiais que apontavam para emancipação e qualidade de vida da humanidade em geral, e da classe trabalhadora em particular. Porém como o processo de apropriação burguês desse desenvolvimento, a apropriação individual de bens coletivos acaba por gerar ainda mais contradições sociais e uma maior decadência na sociedade capitalista. Nesse sentido, essa visão corrobora com o trecho do Manifesto Comunista apresentado no capítulo anterior e demonstra como já estava em Marx a ideia de

142 O Cartismo surgiu na Inglaterra, na década de 1830, e se caracterizava por ser um movimento operário que lutava por demandas sociais e democráticas, o discurso de Marx foi proferido em um banquete em comemoração ao aniversário da Carta escrita por William Lovett e Francis Place, People’s Paper, que dava nome ao movimento.

143 Marx, “People’s Paper”, 500.

75 barbárie fruto das contradições do desenvolvimento das forças produtivas na fase decadente do capitalismo.

Já a outra parte do texto, utilizado por Bernal, representa o alinhamento em relação à perspectiva de mudança e à crença estabelecida de que o socialismo é a única solução possível para retomar o desenvolvimento pleno das forças produtivas, desta forma, do progresso material e social da humanidade e da ciência.

Esse antagonismo entre a indústria moderna e a ciência, por um lado, a miséria moderna e a dissolução, por outro; esse antagonismo entre as forças produtivas e as relações sociais de nossa época é um fato palpável, avassalador e incontroverso. Algumas partes podem lamentar por isso; outros podem querer se livrar das artes modernas, para se livrar dos conflitos modernos. Ou podem imaginar que um sinal de progresso na indústria quer ser completado por um sinal de regressão na política. De nossa parte, não confundimos a forma do espírito astuto que continua a marcar todas essas contradições. Sabemos que para trabalhar bem as forças modernas da sociedade, elas só querem ser dominadas por homens modernos – e assim são os trabalhadores. Eles são tanto a invenção dos tempos modernos quanto a própria maquinaria.144

Em relação à referência a Engels, é citada sua póstuma A Dialética da Natureza, ainda muito recente nos círculos marxistas145 da época, e que não contava com edições publicadas na Grã-Bretanha. A edição britânica foi lançada em 1940, inclusive, com prefácio e comentários ao longo da obra escritos por J. B. S. Haldane.

Na referência, Bernal faz uma defesa explícita de que Engels, por ser um estudioso da ciência de sua época, conseguiu estudar as relações entre ciência e prática de forma ainda mais completa; essa reverência a Engels é compartilhada por Haldane no prefácio da edição britânica. A escolha da citação evidencia dois pontos

144 Ibid.

145 Sua primeira publicação foi em 1927, na Rússia, a versão citada por Bernal foi a edição revisada, no original em alemão, de 1935, também publicada na república soviética.

76 importantes. Primeiro o de legitimar, assim como na passagem de Marx, a ideia da defesa do socialismo como o caminho para o desenvolvimento pleno da ciência.

Somente uma organização consciente da produção social de acordo com a qual se produza e se distribua obedecendo a um plano, pode elevar os homens, também, sob o ponto de vista social, sobre o resto do mundo animal, assim com a produção, em termos gerais, conseguiu realizá-lo para o homem considerado como espécie. A partir daí, iniciar-se-á uma nova época histórica, em que os homens como tais, (e com eles, todos os ramos de suas atividades, especialmente as ciências naturais) darão à sociedade um impulso que deixará na sombra tudo quanto foi realizado até agora.146

Outro ponto é demonstrar superação de uma crítica que tanto Bernal como outros cientistas identificados com o marxismo sofriam durante a década de 1930147. Tal crítica era a de tentar localizar em toda teoria científica ou elemento da natureza na dialética materialista148, tal qual Engels havia feito em Anti-Dühing e em A Dialética da Natureza. Esse processo foi observado por Hilary Rose e Steven Rose no artigo

“Red Scientist”, no qual afirmam, com razão, que já no artigo “Dialectical Materialism and Modern Science”, escrito em 1937, para a revista Science & Society, era possível perceber uma nova discussão acerca da importância do método dialético. A nova perspectiva propõe o método enquanto guia de reflexão e ação, portanto um caminho para compreender o papel da ciência e, também, como representante de uma compreensão superior do mundo social e do fazer científico.149

146 Engels, A Dialética da Natureza, 26.

147 A crítica de Wilson, por exemplo, foi apresentado em nossa dissertação A ideia de Revolução Científica para John Desmond Bernal, 32-33..

148 Lei da transformação da quantidade em qualidade e vice e versa; Lei da interpretação dos contrários;

Lei da negação da negação.

149 Rose & Rose, “Red Scientist”, 143-144.

77 Logo, o artigo de 1937 apresenta elementos que expressam a ideia de progresso atrelado à leitura marxista, como é possível observar na seguinte passagem:

a compreensão do marxismo é inseparável da ação, e a valorização da posição social da ciência leva uma vez em um país socialista, como a URSS, à conexão orgânica da pesquisa científica com o desenvolvimento da indústria socializada e da cultura humana.

(...)

A compreensão marxista da ciência a coloca em prática a serviço da comunidade e, ao mesmo tempo, faz da própria ciência parte do patrimônio cultural de todo o povo e não de uma minoria artificialmente selecionada.150

Desenvolver a ciência significa unir teoria e prática, aplicar e condicionar as pesquisas científicas às necessidades do desenvolvimento de tecnologias, sendo o norte de todo esse processo, que é consciente, a resolução das necessidades do conjunto da sociedade. Esse nível de planificação e consciência das ações é concebível, para Bernal, apenas no socialismo.

Lenin é apresentado como a figura que encarna e ilustra a teoria marxista, aquele que colocou o projeto em prática. Ele afirma que a atenção do primeiro líder da União Soviética à ciência se dava anos antes da conquista do poder, pois, ainda em seu período de exílio, acompanhava e estudava o desenvolvimento científico mundial. Com isso, após a fundação do Estado, Lenin colocou como um eixo central para o país o desenvolvimento das ciências e tecnologias como parte de um projeto consciente de sociedade.151

150 Bernal, “Dialectical Materialism”, 63.

151 Bernal, Social Function, 222.

78 O trecho utilizado de Lenin não é do Materialismo e Empiriocriticismo,1909, material de maior envergadura reflexiva, mas o de um discurso sobre a importância da utilização das tecnologias mais modernas para o desenvolvimento do Estado, de 1920. Isso apresenta uma característica da narrativa de Bernal para fundamentar sua tese de crítica a concepções correntes em sua época sobre progresso da ciência. Ele não se utilizava de trechos e mais trechos das obras de Marx, Engels e Lenin, como foi dito, inclusive, as passagens apresentadas acima são exceção na construção narrativa de The Social Function of Science. Bernal parece querer com isso demonstrar a tese que defende em “Dialectical Materialism and Modern Science”

... o marxismo [não] é simplesmente outra teologia providencial, que Marx mapeou as linhas necessárias de desenvolvimento social e econômico que os homens devem seguir, queiram ou não. Este é um completo mal-entendido:

as previsões do marxismo não são o resultado da elaboração de tal esquema de desenvolvimento. Pelo contrário, elas enfatizam a impossibilidade de fazer isso.

O que se vê a cada momento é a composição das forças econômicas e políticas da época, sua luta necessária e as novas condições que dela surgirão. Mas, além disso, podemos apenas prever um processo que não terminou e necessariamente assumirá formas novas e estritamente imprevisíveis. O marxismo é valioso como método e guia de ação, não como credo e cosmogonia.152

Essa apropriação de Bernal da teoria marxista como um método e guia de ação e, portanto, a união entre teoria e prática, caracteriza o processo de construção de seu texto. A obra apresenta análises de dados estatísticos como forma de fundamentar os argumentos apresentados, ao invés de citar trechos de O Capital como um manuscrito sagrado. Nesse sentido, a extensa e intensa crítica à ciência burguesa, para além da já analisada decadência refletida no nazismo, era feita também nos países de capitalismo democrático. Por essa razão, se faz importante

152 Bernal, “Dialectical Materialism”, 62-63.

79 apresentar alguns desses dados, que apontavam na leitura de Bernal, para as insuficiências do modo de produção burguês e na necessidade de sua superação pelo socialismo.