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As contradições do fazer científico nazista

Capítulo 2 - O nazismo e os limites do capitalismo para ciência

2.7 As contradições do fazer científico nazista

Os elementos que já foram apresentados sobre a visão de Bernal acerca das ações políticas nazistas para a construção da ideia de ciência fundamentada no sangue remetem a uma parte da análise. O outro aspecto desenvolvido em The Social Function of Science é mostrar como a distorção não se encerrava no aspecto racial, mas avançava para discutir quais as bases da nova ciência alemã e, assim, um elemento visto como uma virtude para essa nova ciência, a força física. Bernal aponta como esse novo modelo deve alterar o papel da formação dos jovens, que não mais deve ser focado na construção de um ser reflexivo, assim a educação passa a ter o papel e formar corpos fortes e submissos. Esse esforço é visto como cerne de um projeto para inviabilizar uma ciência crítica e reflexiva, além de completamente padronizada128. Ele mostra como essa ideia já estava na obra propagandística de Adolf Hitler (1889-1945), Minha Luta, nos trechos

O estado racial terá que considerar a formação mental dos jovens pós-escolares como suas próprias tarefas, bem como a sua preparação física, e

127 Ibid., 50.

128 Bernal, The Social Function of Science, 217.

68 realizá-la nas instituições do estado. Este treinamento já pode em seu esboço ser a preparação para o posterior serviço militar ... O Exército será visto como a última e suprema escola de educação nacional ... aqui ele deve aprender a calar ... também se necessário sofrer injustiça em silêncio (p 458-459)129

Em outra citação mostra como o ideal proposto por Hitler se tornou uma política educacional explicitada na fala do reitor da Universidade de Frankfurt, Ernst Krieck (1882-1947)

... qual é o propósito da educação universitária? Não é a ciência objetiva a finalidade de nossa formação universitária, mas a ciência heroica do soldado, do militante e da ciência da luta.130

A concretização desses aspectos ideológicos, como demonstra Bernal, para uma nova concepção da ciência, foi acompanhada de uma ação de diminuição do número de novos estudantes e de um controle dos quadros que ocupavam a direção e o ensino dos centros de formação.131 No entanto, ele afirma que se estabelece um processo de contradição neste movimento, pois a ação de deslegitimar o fazer científico e produzir uma ciência castrada por interesses ideológicos se chocava com a necessidade de se utilizar da ciência para demonstrar o poderio militar do Estado alemão.

infelizmente, a guerra atual requer maquinários e um suporte pesado, e para isso a ciência é necessária. Os nazistas enfrentam o paradoxo de ter que manter suas forças usando métodos que desprezam. A sobrevivência da ciência alemã depende da necessidade que o estado militar e econômico tem para com seu trabalho.132

Por fim são colocados dois pontos conclusivos a respeito da ciência de raça do nazismo. O primeiro, o perigo da propagação dessa visão sobre a ciência, pois

129 Hitler, APUD Bernal, The Social Function of Science, 218.

130 Krieck, APUD Bernal, The Social Function of Science, 218.

131 Bernal, The Social Function of Science, 217.

132 Ibid., 217 - 218

69 apesar de o fazer científico ter sido planejado de forma a concretizar um projeto decadente e manipulado, havia um prestígio muito grande da ciência alemã, exemplificado pelo acesso a publicações como a Nature e a participação em congressos internacionais, é apresentado o seguinte exemplo

Na mais recente Conferência Penal, por exemplo, foi arquivada, com a inclusão de delegados alemães, o voto a favor da teoria penal alemã, e é a intenção que todos os congressos Internacionais sediados na Alemanha ou fora dela, se possível, devem ser utilizados para glorificar o estado nazista.133

O segundo, é a ratificação de que todo esse processo de destruição da ciência promovido pelo nazismo é consequência de uma sociedade capitalista decadente, assim o nazismo representa a decadência e a possibilidade de cessar o progresso da ciência.

O desenvolvimento da ciência nos países fascistas é uma indicação clara da incompatibilidade fundamental entre a teoria ou a aplicação da ciência e as tendências do desenvolvimento capitalista, econômico e político. O capitalismo em seus estágios posteriores é incapaz de suportar um exame objetivo; o cientista torna-se necessariamente um crítico e a crítica não pode ser tolerada. O cientista deve, portanto, segurar sua língua ou perder seu lugar. Se ele fizer o primeiro, ele efetivamente deixa de ser um cientista e é incapaz de transmitir a tradição da ciência; mas se não o fizer, a ciência chegará ao fim com a mesma e mais rapidez. É fácil para um cientista, onde ainda existe uma democracia burguesa, olhar com horror superior para o que está acontecendo com a ciência sob o fascismo. Mas o destino da ciência em seu próprio país, no momento em que ainda há um equilíbrio, depende de fatores e, de como se sabe, como usar seu peso para influenciá-los, sua posição é simplesmente a das ovelhas que aguardam sua vez com o açougueiro.134

A conclusão não deixa dúvidas acerca da caracterização de Bernal sobre o progresso da ciência sob uma estrutura social capitalista. A alusão à ideia de estágios superiores recupera a noção de Marx, mas também de Lênin, na qual todo modo de

133 Ibid., 220.

134 Ibid., 221.

70 produção passa por um período revolucionário e progressivo, porém, ao se consolidar e gerar as bases de um novo modelo social, passa a se tornar um modelo conservador e que inviabiliza o progresso como única forma de se sustentar.

No desenvolvimento das forças produtivas advém uma fase em que surgem forças produtivas e meios de intercâmbio que, no marco das relações existentes, causam somente malefícios e não são mais forças de produção, mas forças de destruição (máquinas e dinheiro) – e, ligada a isso, surge uma classe que tem de suportar todos os fardos da sociedade à mais decidida oposição a todas as outras classes...135

Essa afirmação de Marx sobre o processo de conversão das forças produtivas em forças destrutivas é tratada também em o Manifesto do Partido Comunista, material de propaganda, mas também um importante referencial para os marxistas.

... a sociedade burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou. Há dezenas de anos, a história da indústria e do comércio não é senão a história da revolta das forças produtivas modernas contra as modernas relações de produção, contra as relações de propriedade que condicionam a existência da burguesia e seu domínio.

(...)

As forças produtivas que dispõe não mais favorecem o desenvolvimento das relações burguesas de propriedade; pelo contrário, tornam-se poderosas demais para estas condições, passam a ser tolhidas por elas; e assim que se libertam desses entraves, lançam na desordem a sociedade inteira e ameaçam a existência da propriedade burguesa.136

No mesmo sentido, Lênin, na obra Imperialismo, Estágio Superior do Capitalismo, salienta que a partir do final do século XIX e início do século XX o capitalismo entra em um novo momento que representa um estágio mais avançado, porém incompatível com o modelo capitalista. Nesse novo momento, a livre

135 Marx & Engels, Ideologia Alemã, 41.

136 Marx & Engels, O Manifesto do Partido Comunista, 45.

71 concorrência é substituída pela planificação orquestrada através dos monopólios.

Porém, como a planificação é uma característica do modelo socialista de sociedade, essa contradição acaba por produzir ainda mais problemas para o conjunto dos setores sociais.

O imperialismo surgiu como desenvolvimento e continuação direta das características fundamentais do capitalismo em geral. Mas o capitalismo tornou-se imperialismo capitalista apenas quando chegou a um determinado estágio, muito elevado, do seu desenvolvimento, quando algumas de suas características fundamentais começaram a se transformar no seu oposto, quando ganharam corpo e se manifestaram em toda a linha os traços da época de transição do capitalismo para uma estrutura econômica e social mais elevada.

(...)

... os monopólios, que derivam da livre concorrência, não a eliminam, mas existem acima e ao lado dela, engendrando, assim, contradições, atritos e conflitos particularmente agudos e severos. O monopólio é a transição do capitalismo para um sistema mais elevado.137

Para Bernal, portanto, o fascismo representava o exemplo máximo da decadência do modo de produção capitalista e o quão nefastas podem ser as implicações para o fazer científico. Se, como mostramos no capítulo anterior, o fazer científico na estrutura capitalista já sofria diversos problemas que impossibilitava, a seu ver, o pleno desenvolvimento e progresso da ciência, sob a condução do fascismo a ciência passa a ser completamente distorcida e controlada por interesses políticos a fim de justificar a ideologia oficial. No que toca ao tom pessimista dos cientistas que estavam nos países democráticos, serve para ilustrar o quanto o capitalismo não representava uma possibilidade, pelo contrário, que sua superação era necessária.

137 Lenin, Imperialismo, 113.

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