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Os limites estruturais da ciência capitalista

Capítulo 3: O socialismo como resposta

3.2 Os limites estruturais da ciência capitalista

79 apresentar alguns desses dados, que apontavam na leitura de Bernal, para as insuficiências do modo de produção burguês e na necessidade de sua superação pelo socialismo.

80 conhecimento que enobrece, da superioridade do cientista perante o objeto de estudo, ou seja, a ciência pura é a ciência para autossatisfação.155 Bernal usa uma longa citação do botânico novecentista Henry Huxley (1825-1895) para justificar essa visão, e, do mesmo modo, usa uma citação de outro importante membro do clã Huxley, agora do neto e escritor Aldous Huxley (1894-1963), para demonstrar a construção de um novo fator ideológico sobre o fazer científico de seu tempo, a ciência como uma fuga da realidade. A ciência no período pós 1ª guerra cumpriria um papel alienante sobre os indivíduos que a veriam como uma espécie de jogo, em que a natureza substitui os quebra-cabeças; o fazer científico seria como uma negação da maturidade e do enfrentamento dos reais problemas da vida social156.

O último elemento ideológico exposto está em uma contemplação vista como cínica em relação à ciência e à capacidade da busca pela verdade. Essa crítica aqui pode ser posta, por exemplo, à tradição do filósofo inglês David Hume157.

Os três pontos apresentados: a ideia de uma ciência pura, a alienação em relação à realidade e o cinismo compõem uma crítica a representações ideológicas sobre a ciência na fase decadente do capitalismo. Fica implícito que essa decadência provocou uma forma de isolar o cientista de seu verdadeiro papel, agir para o bem da humanidade.

Os fatores ideológicos são analisados na intenção de demonstrar como se apresentavam as representações dos cientistas perante o mundo. Porém os aspectos mais desenvolvidos e trabalhados enquanto chave para compreensão dos impeditivos do progresso da ciência, seguindo a lógica marxista, são de ordem material. Esses

155 Ibid., 95-96.

156 Ibid., 96-98.

157 Ibid., 98.

81 elementos são postos a partir de dois problemas macro que depreendem diversos outros.

Se tentarmos examinar mais de perto a ineficiência da ciência como método de descoberta, descobriremos que ela se origina em dois grandes defeitos. A primeira é a escala totalmente inadequada das finanças, (...) a segunda é a ineficiência da organização que garante que esses pequenos recursos sejam em grande parte desperdiçados.158

Bernal cita uma série de problemas no financiamento da ciência, em especial na Grã-Bretanha. A primeira questão citada são os valores vistos como insignificantes;

ele afirma que o custeio total do governo com estudantes e trabalhadores da ciência não passava, na época, de £ 136,000. Afirma, ainda, que as indústrias aportavam pouquíssimo dinheiro direto para centros universitários, preferindo custear seus próprios laboratórios. Ademais, quando esse aporte era feito, gerava problemas de interesse entre os valores acadêmicos de pesquisas abertas e diálogo com a comunidade e o interesse de retorno e segredo para as indústrias159.

A questão do investimento em ciência como uma necessidade de retorno, seja pelo Governo ou pela Indústria, é uma questão específica problematizada na obra.

Pois é dito que esses investidores querem retornos rápidos e isso é incompatível, na maior parte das vezes, com a característica da pesquisa, que não tem um prazo em si, não é possível determinar quanto tempo uma pesquisa pode ou deve durar160. Aqui há uma crítica ao caráter capitalista do investimento em ciência que quer o retorno financeiro rápido em detrimento da qualidade e importância do que se está pesquisando.

158 Bernal, Social Function, 99.

159 Ibid., 58-59.

160 Ibid., 60.

82 Outro ponto apresentado em relação à questão do financiamento é o montante gasto em ciência pela Grã-Bretanha. É feita ainda a ressalva de que os dados para quantificar esses valores são muito difíceis de se obter, o que já seria em si um problema. Também, se faz uma diferenciação entre gastos brutos e líquidos e dos quais é tirada a média entre eles, um total de 4 milhões de libras, valores referentes à época; é citado como referência o ano de 1937. Esse valor é classificado como ridículo tanto em comparação com outros gastos do país, por exemplo, é citado que corresponde a 3% do que se é gasto com tabaco ou 2% com bebida. Mas o destaque na mensuração dos dispêndios em ciência é dado na comparação com outros países: Estados Unidos, União Soviética e Alemanha de 1930, ou seja, ainda antes da subida de Hitler ao poder. Os valores em investimentos são comparados com renda nacional de cada país161, assim, é demonstrado que os Estados Unidos aportam seis vezes mais que Grã-Bretanha, enquanto o Estado Soviético investe 8 vezes162. Os dados dos investimentos da Alemanha são apresentados em outro tópico da narrativa, em que analisa a decadência da sociedade alemã no pós-guerra e durante a depressão; neste cenário os valores investidos em ciência não chegam a dois décimos do investido na Grã-Bretanha163.

Esses valores são fundamentais para compreender muitas questões da leitura de Bernal sobre o fazer ciência de sua época. Primeiro, o modelo britânico como exemplo de estagnação e atraso do berço da ciência da moderna, segundo a força dos Estados Unidos enquanto principal país capitalista. Outro ponto, a Alemanha,

161 Bernal chega a apresentar os dados absolutos de investimento em ciência, neste cenário os Estados Unidos têm um investimento muito superior, mas o seu foco narrativo estava na comparação proporcional, como o centro nesta tese é a compreensão da narrativa de Bernal sobre o progresso e seus argumentos, não se julgou relevante a apresentação desses valores.

162 Ibid., 65.

163 Ibid., 200.

83 demonstra o quanto que a instabilidade deste modelo de sociedade decadente pode provocar ao país que poucas décadas antes era o grande exemplo da indústria e do uso da ciência. Por fim, a superioridade do modelo socialista, que mesmo em um processo inicial, apresenta uma preocupação muito maior com o investimento em ciência.

Como apresentado, além da questão do financiamento, Bernal considera a falta de organização e planejamento o outro lado da moeda dos problemas que impedem o pleno desenvolvimento da ciência no capitalismo.

Antes mesmo de discorrer diretamente sobre esse assunto no tópico reservado no livro, que foi referenciado acima, Bernal já apresenta críticas à organização do fazer científico, ainda no processo de caracterização das instituições responsáveis pela ciência. Ele defende que não existe qualquer forma de organização e planejamento do fazer científico britânico, chega a afirmar, utilizando de sua autoridade de cientista, que quando ocorre algum nível de planejamento, isso é feito de forma informal e secreta entre cientistas conhecidos164.

Nesse sentido, são exploradas diversas consequências dessa falta de organização. Em um desses exemplos é tratado o encarecimento dos recursos utilizados, pois os insumos para os laboratórios são comprados por cada instituição em separado. Isso, segundo ele, faz encarecer o preço e, se houvesse uma compra conjunta, haveria uma queda significativa que representaria um décimo do que era praticado. É afirmado ainda que, no mínimo, essa prática deveria ser aplicada pelas universidades165.

164 Ibid., 36.

165 Ibid., 112.

84 Esse desperdício de recursos também é representado na remuneração e quantidade de cientistas nos laboratórios. Bernal defende que a tentativa de economizar com contratação de auxiliares para os cientistas acabaria por gerar ainda mais custos, na medida em que o cientista precisaria se dedicar a mais tarefas que não o desenvolvimento da pesquisa.

Essa situação é difícil de remediar principalmente porque o aspecto econômico do trabalho científico não é estritamente compatível com o da sociedade lucrativa. Um cientista que recebe £ 400,00 por ano pode ser obrigado a desperdiçar três quartos de seu tempo porque não tem um assistente de £ 150,00 por ano. Embora o arranjo seja extremamente ineficiente, para a universidade ou órgão governamental em questão a diferença é simplesmente uma despesa de £ 400,00 ou £ 550,00 por ano, e como não há como mostrar no balanço o valor do trabalho realizado pelo cientista, o primeiro valor geralmente será o preferido.166

Em relação à remuneração, é afirmado, também, que a sociedade não reconhece a importância da ciência e que dessa forma isso se reflete na má remuneração dos trabalhadores da ciência. A questão da disparidade de salários, nas universidades, é apresentada como mais um ponto nesse aspecto, em que os professores (provavelmente se refere aos grandes professores universitários, os professors) recebem o dobro dos conferencistas e quase dez vezes o que um estudante. Essa divisão é vista como causa da falta de democracia interna no fazer científico e criadora de uma organização oligárquica dentro das instituições.167

Além dos problemas de remuneração nas universidades, Bernal afirma que os cientistas que trabalham para laboratórios do governo possuem ainda mais problemas, e cita as incongruências presentes nas jornadas de trabalho como um

166 Ibid., 102.

167 Ibid., 102-103.

85 deles168. Mas é perceptível como a indústria privada é vista como o maior dos problemas. A condução das pesquisas científicas por esse setor é vista como portadora de duas questões impeditivas: “a atmosfera geral de sigilo em que é realizada, a outra é a falta de liberdade do pesquisador individual”. Sobre o primeiro ponto é destacado que:

Na medida em que qualquer investigação é secreta, naturalmente limita todos aqueles envolvidos em realizá-la do contato efetivo com seus colegas cientistas, seja em outros departamentos da mesma empresa. O grau de sigilo naturalmente varia consideravelmente. Algumas das maiores empresas estão envolvidas em pesquisas de natureza tão geral e fundamental que é uma vantagem positiva para elas não as manter em segredo. No entanto, muitos processos dependentes dessa pesquisa são feitos com total sigilo até a fase em que as patentes podem ser registradas.169

Essa tese de Bernal está relacionada a uma visão de ciência que se constrói no coletivo, no compartilhar, é uma perspectiva na contramão de um ideal de fazer científico do grande gênio, que poderia trabalhar em sigilo, justamente, porque depende apenas de si mesmo. Em relação ao outro ponto citado, a liberdade do fazer científico, é dito que:

Uma das maiores deficiências dos cientistas industriais é sua falta de liberdade. A maioria dos trabalhadores são contratados. Esses contratos, que o funcionário em potencial, geralmente, é muito ignorante ou temeroso demais para recusar, destinam-se quase inteiramente a proteger a empresa. A produção intelectual de um homem é comprada por um período definido. Todas as suas invenções e ideias, mesmo que desenvolvidas fora das obras, pertencem ao escritório. Todas as patentes devem ser entregues a eles à razão de dez xelins por vez, mesmo quando eles podem ganhar milhares de libras.170

168 Ibid., 106-107.

169 Ibid.

170 Ibid. 108.

86 O tema da liberdade do fazer científico é uma questão muito importante e marcou a trajetória dessa obra. Aqui é apresentada a ideia de que a lógica burguesa tende a retirar do cientista os louros da descoberta. No entanto, parece curioso que apesar de demarcar por vezes na obra a incompatibilidade do trabalho científico com a lógica da produção capitalista, não há uma reflexão sobre como o fazer ciência para indústria cerceia a liberdade na medida em que se diz o que cientista deve pesquisar.

Esse fato se torna ainda mais relevante pois, como será mostrado mais adiante, a discussão entre liberdade e condução do fazer científico por agentes externos foi o principal tema utilizado pelos críticos de Bernal.

De todo modo, é patente, como ficou demonstrado, a caracterização negativa acerca das condições para o desenvolvimento da ciência no capitalismo. Assim como ficou expresso ao tratar da questão dos recursos financeiros aplicados em ciência, a luz que deve ser o guia para esses problemas não está no melhor do mundo burguês, mas no socialismo.