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Dois pesos e duas medidas?

Capítulo 3: O socialismo como resposta

3.4 Dois pesos e duas medidas?

93 por ser um processo em construção, está no exemplo trabalhado, o geneticista Nikolai Vavilov (1887-1943). Contudo, dada a importância deste tema, ele será discutido no tópico seguinte, que tentará analisar e compreender as críticas e incongruências da narrativa de Bernal sobre o fazer científico na União Soviética.

94 científico, foi o principal trunfo dos críticos do The Social Function of Science e do que ficou conhecido como bernalismo. Seus críticos afirmavam que a grande tese da obra era, na verdade, a defesa do cerceamento do fazer científico, não pela figura do burguês dono da fábrica, mas do Estado e dos líderes políticos no poder em uma sociedade socialista. O debate em torno da temática da liberdade do fazer científico, já fora analisado por nós na dissertação “A ideia de Revolução Científica na obra de John Desmond Bernal”, de 2017, mas para esta tese é importante reviver alguns desses pontos.

Os principais críticos foram, reconhecidamente, o biólogo John Randal Baker (1900-1984) e o filósofo e cientista Michael Polanyi (1891-1976), que chegaram a criar um grupo de cientistas, a Society for Freedom in Science, que se posicionavam politicamente em defesa de um fazer científico baseado nos princípios do liberalismo.

O grupo foi uma resposta à força que ganhou entre muitos cientistas, nos anos 1930, a defesa de um caráter social para a ciência e que tiveram em Bernal e, no The Social Function of Science em particular, seus grandes representantes184.

Baker defende a ideia de que a ciência deve ter um papel em si mesma, seu texto expressa um total desprezo a ideia defendida por Bernal de que os cientistas deveriam ter como guias para suas pesquisas os problemas vindos de diretrizes sociais. Assim como defende a liberdade em ciência e ironiza o as teses de ciência pura como alienação da realidade tal como defendidas por Bernal.185

Assim como Baker, Polanyi defende a ideia de que a ciência deve ser pensada por si mesma e não sofrer nenhum condicionante de interesse social186, ele, também

184 Oliveira, “Revolução Científica”, 34.

185 Baker, “Counterblast to Bernalism”, 174.

186 Reinisch, “Society for Freedom”.

95 se inspira em Adam Smith para fundamentar sua defesa de que a liberdade do fazer científico deve estar em primeiro plano, fazendo, até mesmo, alusão a ideia da “mão invisível” que cumpriria o papel aglutinador dos trabalhos científicos desinteressados187.

No entanto, por mais que as críticas de Baker e Polanyi estivessem focadas num compromisso político de defesa do capitalismo e que poderiam, portanto, ser desacreditadas por se tratar de duas esferas ideológicas distintas para o período, os fatos da época não apontam para tal, pois havia questionamentos de vários grupos que defendiam o socialismo ou, como mínimo, uma sociedade pró-social, mas que passaram a romper com o modelo soviético, tendo como principal fator a falta de liberdade política e ideológica188.

Essas críticas já estavam estabelecidas na perseguição política aos opositores de Stalin, que se dava desde o exílio de Trotsky, em 1927, mas que para os não envolvidos com a vida política militante da época, a questão poderia ser vista como um problema de política interna.189 No entanto, ao longo dos anos 1930 esse processo teve saltos de qualidade, como o já citado controle das políticas de pesquisa para a ciência que ganhou força, no final de 1931. Igualmente, ocorria a contínua perseguição de Stalin a todos que representaram exemplos políticos sólidos durante a revolução, ou que representavam alinhamentos políticos indesejados, culminando com os expurgos de 1936 a 1938190. Precisa ser destacado que no caso de Bernal

187 Polanyi, “Republic of Science”, 60.

188 É possível citar o movimento trotskistas, a Escola de Frankfurt e seus principais representantes da época, Adorno, Horkheimer e Benjamin, havia também o escritor George Orwell e até mesmo, figuras próximas de Bernal como o cientista Lancelot Hogben e Julian Huxley.

189 Hobsbawn,

190 Segundo Simon Ings em Stalin and Scientists, apenas a critério de exemplo, dos 8 delegados que participaram do 2º Congresso de História da Ciência, em Londres, apenas 1 não foi uma vítima de Stalin.

96 isso deveria soar ainda mais profundo, por terem sido assassinadas pessoas que eram seus referenciais nas discussões entre história da ciência e sociedade. Hessen foi preso, ainda em 1935 e morreu na prisão, em 1938, mesmo ano da condenação e execução de Bukharin191. No entanto, não há menção de Bernal a respeito desses assassinatos, nem em textos anteriores, nem em The Social Function of Science.

O caso com o qual tanto ele quanto Haldane e outros cientistas vinculados aos Partidos Comunistas responderam e que se relacionavam com a questão da liberdade na ciência foi o caso Vavilov-Lysenko192. A consequência do controle político do fazer científico teve nesse caso o grande destaque dos 1930, seja pela catástrofe econômica gerada, seja pela negação de uma área que já se consolidava na época, a genética, seja, também, pela perseguição ao principal defensor das teorias genéticas, Vavilov, quem também, importante dizer, estava presente no Congresso Internacional de Londres de 1932, perseguição essa que culminou em sua morte durante a prisão, no ano de 1943.193

Neste ponto a falta de compromisso de analisar a União Soviética com o mesmo rigor que analisou a Grã-Bretanha mostra uma de suas facetas mais problemáticas. A defesa de Bernal da qualidade de vida do trabalhador, inclusive na fábrica, como um princípio, contrasta com uma das principais formas de trabalho no país naquela época, o trabalho forçado nos campos de trabalho, que ficaram

191 Ings, Stalin na Scientists.

192Nicolai Vavilov era o principal nome na Rússia, no final dos anos 1920, em estudos sobre genética.

No final do ano de 1931, a teoria da “vernalização” de Trofim Denisovič Lysenko passa a concorrer as ideias de Vavilov. Ao longo da década de 1930, a teoria de Lysenko vista como mais útil nos seus objetivos e referenciada em uma visão materialista, foi obtendo cada vez mais prestígio em um processo profundo de disputas políticas no campo da ciência. Lysenko acaba por sacramentar sua vitória, 1940, assumindo a direção do Instituto de Genética da Academia de Ciências da URSS, isso após diversas tentativas de Vavilov de reverter esse processo, inclusive, buscando a Stalin pessoalmente, mas este já havia escolhido quem apoiar. Ver: Ings, Stalin and Scientists.

193 Ings, Stalin and Scientists.

97 conhecidos como Gulags. Simon Ings aponta que os prisioneiros submetidos a essa condição, em 1929, eram 23 mil, já na metade da década de 1930 esse número chegou a quinhentos mil, boa parte deles, presos políticos como Vavilov.194

As respostas construídas pelos cientistas como Haldane e Bernal não se concentraram nas questões da perseguição política ou das consequências sociais da política agrária, mas no aspecto da pluralidade de interpretações sobre o fazer científico195. Essa defesa como já referida no final do tópico anterior está contida em duas passagens da análise de Bernal sobre a ciência na União Soviética. No primeiro caso Vavilov é utilizado para exemplificar o quão positiva era a relação entre teoria e prática e a integração do saber acadêmico com as necessidades da indústria.

Um belo exemplo desse trabalho integrado é mostrado pelo departamento de plantas industriais de Vavilov. A necessidade econômica de produzir variedades de plantas adaptadas aos múltiplos climas e condições do solo em diferentes partes da União levou a um desenvolvimento muito profundo dos princípios genéticos, (...) ao mesmo tempo em que fornece uma série de novas plantas e cruzamentos de grande valor prático.196

O outro trecho se refere a disputa entre as teorias de Vavilov, no papel do cientista velho e fechado para novas ideias, e Lysenco enquanto o jovem, mas que possui pouca experiência em ciência.

Nos últimos dois anos, por exemplo, houve a importantíssima controvérsia sobre os fundamentos da genética, na qual se envolveram Vavilov e Lysenko, entre outros. Por causa das escassas notícias que apareceram fora da União Soviética, essa controvérsia foi ampliada desproporcionalmente.

Alegou-se que as autoridades sustentavam que a genética não determinava a evolução das espécies ou o desenvolvimento de plantas e animais domésticos, e que era um ressurgimento da controvérsia Weismann-Lamark sobre a

194 Ibid.

195 Rose & Rose, “Red Scientist”, 149.

196 Bernal, Social Function, 227.

98 importância relativa da criação e do meio ambiente. Na verdade, nenhuma visão tão extrema foi apresentada, mas os geneticistas foram criticados por atribuir todos os caracteres herdados a fatores unitários específicos nos cromossomos e negligenciar fatores citoplásticos e ambientais, cuja importância provavelmente foi exagerada por seus críticos.197

A prisão de Vavilov teve repercussão internacional, significou uma crise na construção do VII Congresso de Genética e teve até o pedido de Winston Churchill (1874-1965) pela libertação do cientista. Não se tratava mais de um ‘debate’, como na década de 1930.198

Por fim, até críticas que representam, na leitura de Bernal, o maior dos absurdos do nazismo em negar a nova física, também cabiam à U.R.S.S, onde houve questionamento da física contemporânea, mas ao invés de ser chamada de ciência judaica foi chamada de ciência burguesa.199

Há uma escolha muito clara em qualquer caso que fosse negativo para a imagem da União Soviética: o não comentar e se, possível, desconsiderar a existência, como no caso dos expurgos. A grande fragilidade narrativa de Bernal está em estabelecer dois pesos e duas medidas. A análise do fazer científico capitalista, que primava por uma significativa qualidade no levantamento de dados e em se aprofundar nos limites e problemas impostos pelas contradições desse modelo de sociedade, não era replicada para compreensão da sociedade a qual era apresentada como o grande modelo a ser seguido.

Por mais negativas que possam ser as posturas de Bernal em querer desenhar uma realidade em prol de seus interesses políticos, tais ações precisam ser

197 Ibid., 237. A edição utilizada do livro de Bernal para essa tese é a edição de 1946, que é apenas uma reimpressão da original, Bernal não fez uma intervenção em seu livro

198 Ings, Stalin and Scientists.

199 Ibid.

99 vistas em separado da potência da obra enquanto análise de dados e análise das insuficiências do capitalismo para a ciência. Como exposto, a obra se tornou um referencial para a reflexão sobre investimento e organização do fazer científico.

Mas, isso demonstra que o projeto de progresso da ciência de Bernal estava calcado, em última instância, em uma esperança etérea. Essa esperança, carregava consigo a contradição de supervalorizar a defesa de uma forma, no caso o modelo social e econômico e ser seletivo perante o conteúdo, de modo que seu modelo parecesse infalível.

Ainda que os principais fundamentos das bases sobre o progresso tenham já sido expostos, convém, ao menos, uma breve apreciação sobre propostas de Bernal para a ciência que se concentram na segunda parte de seu livro.