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As qualidades estruturais do socialismo

Capítulo 3: O socialismo como resposta

3.2 As qualidades estruturais do socialismo

86 O tema da liberdade do fazer científico é uma questão muito importante e marcou a trajetória dessa obra. Aqui é apresentada a ideia de que a lógica burguesa tende a retirar do cientista os louros da descoberta. No entanto, parece curioso que apesar de demarcar por vezes na obra a incompatibilidade do trabalho científico com a lógica da produção capitalista, não há uma reflexão sobre como o fazer ciência para indústria cerceia a liberdade na medida em que se diz o que cientista deve pesquisar.

Esse fato se torna ainda mais relevante pois, como será mostrado mais adiante, a discussão entre liberdade e condução do fazer científico por agentes externos foi o principal tema utilizado pelos críticos de Bernal.

De todo modo, é patente, como ficou demonstrado, a caracterização negativa acerca das condições para o desenvolvimento da ciência no capitalismo. Assim como ficou expresso ao tratar da questão dos recursos financeiros aplicados em ciência, a luz que deve ser o guia para esses problemas não está no melhor do mundo burguês, mas no socialismo.

87 são apresentadas as ações desenvolvidas na União Soviética e se elas correspondiam às teorias marxistas.

Um ponto passivo que se tenta construir é de que a União Soviética é uma forma social nova e que pode servir, acima de tudo, como um referencial, mas não enquanto o modelo definitivo. Além disso, é chamada atenção para que a construção do Estado soviético se deu em meio a um período de conflitos, pois a revolução ocorre durante a 1ª Guerra, seguida de uma guerra civil e da luta contra as invasões estrangeiras. É apontada, como uma consequência direta desses fatos, a perda significativa do número de cientistas, pois alguns fugiram, outros morreram de doenças ou de fome e tiveram outros que se recusaram a colaborar com o novo modelo de sociedade.

A União Soviética teria, portanto, dois desafios: “a criação da ciência Soviética e da técnica Soviética e, ao mesmo tempo, a resolução dos problemas imediatos da reconstrução [do país]”171. Assim é afirmado que:

O que foi alcançado, no período de 1917 a 1927 e, como foi alcançado, revelará a extrema viabilidade da ciência quando removida das restrições que pesam sobre ela em países de nível científico muito mais alto. Na década seguinte, o progresso foi garantido; o desenvolvimento da ciência caminhou de mãos dadas com a indústria e estava intimamente ligado a ela, e as novas universidades e escolas começaram a produzir cientistas treinados, ou, pelo menos, parcialmente treinados em números incomparavelmente maiores do que havia antes.172

171 Ibid., 223.

172 Ibid. (grifos nossos)

88 Esse trecho é simbólico em reafirmar a noção de progresso de Bernal, de que só possível aferir a sua realização plena quando se estabelece a conjunção entre teoria e prática, que no modelo socialista é garantido pelo saber científico alinhado com a produção técnica nas indústrias. Bernal apresenta em seguida as características do que seria a chamada ciência soviética:

• A escala financeira das operações (aporte financeiro);

• Teoria e prática ganham um novo significado;

• Ciência para o bem-estar da humanidade;

• Planificação e uma ciência integrada.

O primeiro aspecto já havia sido exposto em sua crítica ao modelo capitalista e é brevemente retomado, ainda que os números apresentados mudam um pouco em relação ao que foi dito anteriormente, é representada a grandeza dos investimentos em ciência na União Soviética.

O orçamento para a ciência em 1934 foi de bilhão de rublos. Sem tentar estimar o poder de compra dessa soma, ela representa pelo menos 1% da renda nacional da época, uma soma relativamente três vezes maior que a gasta nos EUA e dez vezes maior que a gasta na Grã-Bretanha.173

Em relação à união entre ciência e prática, é defendido que não se trata apenas de levar o cientista para dentro da fábrica como no melhor que poderia ser feito no capitalismo. Mas, haveria um novo modelo em que o trabalhador é parte ativa do processo de apropriação e desenvolvimento do conhecimento científico para a indústria. Bernal cita, como o grande exemplo, o movimento Stakhanov. Este movimento constituiu uma das maiores propagandas emplacadas pela União Soviética sobre maravilhas da sociedade socialista. Os ‘Stakhahanovistas’ eram

173 Ibid. 224.

89 coletivos de trabalhadores que seguiram as ideias de um operário, na época, das minas na região do Donbas – uma das principais regiões que movem o conflito entre Rússia e Ucrânia atualmente – que ficou mundialmente famoso, em 1935, Alexei Grigorevich Stakhanov (1906-1977). O motivo de tanto sucesso, que lhe rendeu uma capa na revista Time em 16 de dezembro de 1935, foi o papel de Stakhanov em desenvolver uma nova forma de organização do trabalho junto aos seus colegas mineiros, que acabou por aumentar em dezenas de vezes a produtividade do trabalho174. Apesar da ode de Bernal ao movimento, ainda em 1936 as tentativas de implementar incentivos individuais ou setorizados de aumento da produtividade do trabalho no campo e nas fábricas acabou por se chocar tanto com as condições dos materiais de trabalho que não absorviam a aceleração do trabalho, quanto com a criação de ritmos desiguais de produção, o que atrapalhava a cadeia produtiva.175

No entanto, a despeito dos usos do Estado soviético na implementação do movimento, ele servia como exemplo concreto do que Bernal defende na obra. A ação dos trabalhadores como caminho para superação das visões dicotômicas entre conhecimento teórico e conhecimento prático. Bernal parece não querer utilizar o jargão marxista, mas a maneira como ele defende é a de que deve haver um processo dialético, de determinação mútua entre as duas.

Outro ponto com grande importância está em, além de olhar operário como um ser de conhecimento, como um bom marxista, em olhá-lo, também, como um ser de direitos e a razão da sociedade, portanto, a razão, ou a função social da própria

174 Ings, Stalin and Scientists.

175 Ibid.

90 ciência. Isso se coaduna ao papel central e diferenciado da ciência socialista, visto que:

... a ciência deve ser tomada não mais como um luxo, mas como uma parte essencial do tecido social.

(...)

O principal objetivo prático da ciência soviética é a satisfação das necessidades humanas, direta ou indiretamente, e não o aumento da lucratividade da produção.176

Assim é defendido que tanto o fruto do conhecimento científico deve estar atrelado a resolver as demandas sociais imediatas e básicas, quanto a qualidade do trabalho em si seja garantida. Bernal entende que apenas assim é possível superar as contradições entre as demandas da produção e a vida do trabalhador. Tal defesa dialoga diretamente com a referência a Marx que ele utiliza,177e contribui para colocar em primeiro plano a vida do operário da fábrica e, também, do trabalhador da ciência.

Em relação à planificação da economia, mais uma vez é apresentada uma característica vista como impossível no capitalismo. Não há uma defesa que contradiga as críticas feitas por ele às condições impostas pelas indústrias e governos burgueses que sempre almejavam retornos rápidos das pesquisas. Há, sim, a defesa de um direcionamento geral sobre os temas importantes que precisam ser pensados e pautados para buscar solucionar as necessidades humanas. Cita ainda como essa noção estava contemplada no plano da Academia de Ciências em conexão com o terceiro Plano Quinquenal.178

176 Bernal, Social Function, 224.

177 Ver pág. 74.

178 Bernal, Social Function, 225.

91 Bernal utiliza o gancho de introduzir a Academia de Ciências para explicar que suas funções diferem dos modelos tradicionais, como a francesa ou a alemã, que possuem um sentido mais honorífico. No modelo soviético a Academia é composta por cientistas responsáveis pelos institutos de pesquisa e respondem diretamente às diretrizes dos Comissariados, que, por sua vez, são responsáveis pela organização e destino dos financiamentos em ciência.

A responsabilidade pelo financiamento das instituições e laboratórios de trabalho recai sobre os comissariados, e são suas necessidades que determinam a linha de pesquisa a ser realizada. Do ponto de vista científico, as instituições de pesquisa na indústria e na agricultura estão intimamente ligadas à Academia, e a separação que há na Grã-Bretanha entre a ciência acadêmica e a industrial não existe.179

A maneira como esse processo é explicado aparenta a quase perfeição, pois são os comissariados que determinam as linhas de pesquisa, não de maneira arbitrária, mas fundamentada no interesse social e na participação ativa dos trabalhadores180. Além disso, a proximidade entre ciência e indústria que, segundo Bernal, gerou a forma superior de relação entre teoria e prática, conseguiria apontar para um melhor direcionamento da organização e aplicação dos recursos. Isso porque ela seria capaz de estabelecer conexões entre as demandas da indústria a serem pesquisadas com a capacidade dos cientistas de estarem juntos aplicando os frutos de suas pesquisas e de superar, quando surgissem, os problemas, como a ineficiência de uma pesquisa. O fechamento feito na obra aponta para a celebração deste modelo.

Assim, a indústria serve para apresentar à ciência um problema novo e original. Ao mesmo tempo, as descobertas fundamentais feitas nas universidades ou na Academia são imediatamente transmitidas aos laboratórios

179 Ibid., 227.

180 Ibid., 228.

92 industriais, para que tudo o que possa ser usado para fins úteis possa ser usado na prática o mais rápido possível.

Por fim, após apontar para as potencialidades do modelo soviético Bernal retoma a sua defesa do materialismo dialético, discutida no seu artigo de 1937, e reafirma como o marxismo é a chave para a construção do novo modelo de sociedade, o único que pode garantir o verdadeiro progresso da ciência.

Mas, finaliza novamente com a ressalva de que se tratava de um processo ainda em construção e, disso se depreendia um dilema, a relação entre o novo e o velho. Essa ideia, que faz lembrar a famosa de sentença de Gramsci181, ainda que, em um sentido inverso, cumpre afirmar que há uma nova filosofia científica em construção, bem como relativizar possíveis conflitos no desenvolvimento da ciência soviética.

O resultado é que a ciência soviética vem descobrindo sua filosofia no processo de seu crescimento, e este tem sido um processo vivo e, às vezes, quase violento. Isso é complicado pelo fato de que os cientistas mais velhos eram, naturalmente, incompreensíveis e até hostis às novas ideias, enquanto os mais jovens careciam de conhecimento científico suficiente para ilustrar seus argumentos de forma eficaz.182

As linhas seguidas por Bernal, portanto, sobre o fazer científico soviético buscam responder a características criticadas por ele no modelo capitalista, ao mesmo tempo que defende, através da lógica marxista, que o socialismo é o passo natural na ordem do progresso social e científico.

Interessante, senão irônico, que entre os últimos dois pontos explorados para justificar sua tese, a celebração da potencialidade do modelo soviético e as ressalvas

181 “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer;

neste interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece” Gramsci, Cadernos, 184.

182 Bernal, Social Function, 231.

93 por ser um processo em construção, está no exemplo trabalhado, o geneticista Nikolai Vavilov (1887-1943). Contudo, dada a importância deste tema, ele será discutido no tópico seguinte, que tentará analisar e compreender as críticas e incongruências da narrativa de Bernal sobre o fazer científico na União Soviética.