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A DEMOCRACIA NO PROCESSO CONSTITUINTE DE 1999

Consequente com as propostas da Agenda Alternativa Bolivariana supra comentada, o Presidente Hugo Chávez Frías convocou no dia dois de fevereiro/1998, data de sua juramentação, um referendum97 para con-

sultar o eleitorado sobre a possibilidade de estabelecer uma Assembleia Nacional Constituinte, mediante Decreto Presidencial. Dito decreto98

97 Na realidade, o que parece ser algo novo no contexto político iniciado com Chávez, parece não ser tão novo assim. Esclarece Ricardo Combellas (1998: 98) que a ideia da Constituição não é nem muito menos uma invenção de Chávez, opinião da qual parece compartir também Urdaneta (apud Pastor; Dalmau: 2001: 122-123), para quem o processo de 1999 é resultado de quatro fases: elaboração (1989-1992) presidida por Rafael Caldera na Comissão Bicameral para a Reforma da Constituição; discussão (1992); letargia (1993-1998), no governo de Caldera, sem que se fizesse as mudanças constitucionais necessárias que se requeria no momento; debate constituinte (1998), a partir da vitória de Hugo Chávez nas eleições de 1998. 98. A exposição de motivos do decreto estava assim delineada: “O sistema político venezuelano está em crise e as instituições têm sofrido um acelerado processo de

continha duas perguntas dirigidas à nação: a primeira estava redigida nos seguintes termos: “Convoca você uma Assembleia Nacional Consti- tuinte com o propósito de transformar o Estado e criar um novo ordena- mento jurídico que permita o funcionamento de uma democracia social e participativa?”. A esta pergunta, 92% dos eleitores respondeu que “Sim”, que estava de acordo com a convocação de uma Assembleia Constituinte.

A outra pergunta queria saber se o eleitorado autorizaria “o Presidente da República para que mediante um Ato de Governo fixe, escutada a opinião dos setores políticos, sociais e econômicos, as bases do processo de comícios no qual se elegerão os integrantes da Assembleia Nacional Constituinte? Os resultados referentes a esta pergunta não diferiram muito em relação aos resultados da primeira, pois quase 86% estava de acordo com as sugestões.

É importante observar desde já, ao menos para o assunto que nos interessa daqui para frente, que no conteúdo da primeira pergunta sobre a convocação de uma Assembleia Constituinte Nacional estão presentes duas coisas: em primeiro lugar, a ideia de transformar o Estado, evitando, dessa forma, a linguagem da reforma da década de 80. E em segundo lugar, a sugestão de um novo modelo democrático com conteúdo social e participativo. Ambas as sugestões de novos modelos, tanto o de Estado como o de democracia, sugeridas na pergunta, estarão presentes no preâmbulo da Constituição que será elaborada e aprovada em dezembro de 1999, e tem um alvo em comum: refundar a República.

Na cerimônia de instalação da Assembleia Nacional Constituinte, parte do discurso do presidente Hugo Chávez continha a seguinte invocação:

O objetivo tem que ir mais além e por isso aqui falamos da democracia participativa e protagonística como um só conceito. O deslegitimação. Apesar desta realidade, os beneficiários do regime, caracterizados pela exclusão das grandes maiorias, têm bloqueado em forma permanente, as mudanças exigidas pelo povo. Como consequência desta conduta se desataram as forças populares que só encontram seu caminho democrático mediante a convocatória do Poder Constituinte Originário. Ademais, a consolidação do Estado de Direito exige uma base jurídica que permita a prática de uma Democracia Social e Participativa” (Decreto de convocatória referendum para convocar a uma Assembleia Nacional Constituinte” 2/02/99, tradução nossa).

protagonismo popular é um conceito bolivariano, democrático e eminentemente revolucionário, e se aproxima dos mecanismos de uma democracia que hoje não pode ser, o entendemos, exata e absolutamente direta, mas sim tem que ser protagonística, temos que dar ao povo diversos mecanismos como os plebiscitos, os referenduns, as assembleias populares, as consultas populares, as iniciativas de leis, todos esses instrumentos devem ficar, em meu critério, proponho, legisladores, inseridos na nova carta Fundamental para que seja vinculante a participação e para que não seja, simplesmente, um participar por participar, senão um instrumento de construção, de protagonismo e de democracia verdadeira, de participação efetiva, vital para construir um país, um rumo, um projeto (Gaceta Constituyente, apud Salamanca, 2005: 94, tradução nossa).

O excerto do pronunciamento do presidente Hugo Chávez indica, em primeiro lugar, a consciência de que o modelo de democracia possível não é o de democracia direta pura, mas nem por isso abre mão de que a mesma seja exercida de forma “protagonística”, conceito não usual no campo jurídico, e quiçá estivesse sendo usado para se referir a uma democracia horizontal, exercida pelo “povo”. Em segundo lugar, caberia saber a qual “povo” está se dirigindo o Presidente. Seriam os venezuelanos em sua totalidade, ou uma parcela da população? Não parece haver dúvida de o “povo” constitui, na perspectiva de Chávez, àquela parcela da população que historicamente foi excluída dos processos sociais e políticos. Logo, o tom do discurso não é retórico, é ideológico e dirigido àquela parcela da população que se identifica com “um rumo, um projeto”, neste caso, o “projeto revolucionário”.

Começava a perfilar, a partir daí, um certo maniqueísmo político nos discursos do Presidente Chávez, o qual visa conceber nesta parcela do “povo” uma ideia de bem e de pureza, contraposta à maldade contida na oligarquia, na burguesia, nos contra revolucionários, nos imperialistas, etc. Segundo Salamanca (2004: 95, tradução nossa), esta dialética retroalimenta de forma negativa o conceito de povo: “todo

aquele que se opõe à revolução deixa de pertencer ao povo”. Quadro V

Evolução de acontecimentos da constituinte 1999 e processos eleitorais 1998-2006

Data Fato

02/021999 Posse do Presidente Hugo Chávez Frías

02/02/1999 Decreto presidencial convocando referendum para a instalação de uma Assembleia Constituinte

Recursos solicitando a anulação da segunda pergunta do decreto Recursos sobre o processo de eleição dos constituintes 25/04/1999 Referendum

25/07/1999 Eleição para a escolha dos membros da Assembleia Nacional Constituinte 03/08/1999 Início das atividades da Assembleia Constituinte

05/08/1999 O Presidente Chávez entrega seu projeto de Constituição no Congresso Nacional, colocando seu cargo à disposição do mesmo

09/08/1999 Hugo Chávez Frías foi ratificado no cargo de Presidente Constitucional pela Assembleia 12/08/1999 A Assembleia Constituinte determina a reorganização de todos os órgãos públicos 15/12/1999 Referendo que aprovou o Projeto de Constituição

30/12/1999 Entra em vigor a Constituição da República Bolivariana de Venezuela

25/05/2000 Suspensão das “mega eleições” para selecionar todos os cargos de eleição popular previstas para 28/05/2000

30/06/2000 Eleições para Presidente, Assembleia Nacional, Conselhos Legislativos estaduais, prefeitos, parlamento Andino e Latino

23/01/2003 Suspensão de referendo consultivo sobre a renúncia presidencial previsto para 2/02/2003 12/09/2003 Rechaço da primeira solicitação de referendo revocatório presidencial

15/08/2004 Referendo revocatório presidencial

30/10/2004 Eleições para governadores, Assembleias legislativas estaduais e prefeitos 07/08/2005 Eleições para Vereadores e juntas paroquiais

04/12/2005 Eleição para a Assembleia nacional, Parlamento Andino e Latino 03/12/2006 Eleição Presidencial

2007 Referendo para a reforma da Constituição 26/09/2010 Eleição para a Assembleia Nacional FONTE: pesquisa do autor.

O decreto presidencial que convocou o referendum para a uma Assembleia Constituinte abriu um debate intenso e deu margem para o pedido de muitos recursos na Corte Suprema de Justiça, sobretudo advindos de parte do Polo Democrático, que se apoiava no argumento de que a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte seria papel da Assembleia Nacional e não do Presidente da República. De outro lado, apoiados na Lei Orgânica de Sufrágio e Participação Política e no artigo 4º da Constituição de 1961, as forças políticas do PP reivindicavam a titularidade da soberania.

Depois da aprovação do referendum, um outro ponto geraria uma controvérsia ainda maior na agenda da Constituinte venezuelana, pois não estava claro se a escolha dos representantes da Assembleia Constituinte se daria por meio de eleição nominal ou mediante lista partidárias. Caso prevalecesse a primeira alternativa, sem dúvida que as novas forças políticas em torno do PP não levariam vantagem em relação às forças políticas tradicionais. Estas perderam o desiderato na Corte Suprema de Justiça, o que acabou favorecendo as forças chavistas, compondo o quadro da Assembleia Constituinte com uma maioria aplastante de 95% dos representantes, ou seja, a aliança a favor de Chávez obteve 122 das 131 cadeiras que estavam sendo disputadas.

Os trabalhos propriamente ditos da Assembleia Constituinte só iniciam no dia 3/08/1999, tendo como Presidente, primeiro Vice- Presidente e segundo Vice-Presidente, membros do oficialismo de PP, organizando-se em torno de 24 comissões de trabalho. Tal como esclarece Salamanca (2002), a CRBV não foi redigida em um vazio participativo, nem jurídica nem socialmente, ao contrário, este foi um momento na sociedade venezuelana em que as diversas forças políticas e novos atores sociais puderam manifestar seus anseios, sobretudo aquelas tendencias participativas que vinham se desenvolvendo no final da década de 1970 e início de 1980, em prol de mudanças nas estruturas do Estado e dos partidos políticos tradicionais.

Do ponto de vista do debate sobre as discussões que o processo constituinte poderia suscitar, a maioria dos analistas políticos venezuelanos tende a constatar que na maioria dos casos só uma minoria intervinha nos debates, e os demais intervinham em ocasiões excepcionais, embora se tenha reconhecido a experiência de muitas

organizações cidadãs, contribuindo dessa forma com o avanço do processo, “as quais foram reconhecidas na agenda pública nacional como portadoras de interesses, de sistemas de valores, de racionalidades e de novos significados e projetos sociais desejáveis” (Bastidas Velásquez, 2007: 106, tradução nossa) 99. Não obstante, e tal como nos

adverte Dalmau e Pastor (2001: 167), não se produziu a participação popular de setores não organizados prognosticados pelos chavistas, ficando a participação civil restrita a agrupações com um nível médio ou alto de organização, motivado pela dinâmica da própria Assembleia Nacional Constituinte. Reconhecem os autores citados que esta não foi uma Constituição redigida por expertos, desconectados da realidade venezuelana: “ao contrário, no texto constitucional a marca da cidadania foi clara e determinante, o que trouxe vantagens e inconveniências”.

Entre as redes presentes estavam as organizações ambientalistas, de direitos humanos, de mulheres, de educação, de vizinhos, dos setores populares, de planificação familiar, de direito tributário, entre outras, contribuindo com o processo na várias mesas, comissões e plenárias, e segundo García-Guadilla (2005), o êxito maior ou menor na apresentação de proposituras à Constituição dependeu de fatores como a trajetória, a consolidação e a capacidade das mesmas para difundirem suas propostas entre os constituintes, assim como a afinidade ideológica ao projeto chavista. Mas, um dos fatores relevantes para a aprovação de propostas advindas das organizações sociais era a sua distância em relação ao ideário da democracia representativa, e por sua vez, a proximidade ao princípio da democracia participativa e protagonística

O novo modelo democrático que começava a ser delineado nas entrelinhas da nova carta constitucional seria suficientemente dotado de institucionalidades que pudessem aplacar os conflitos que surgiram ao longo de décadas entre Estado e a sociedade? Adentremos primeiro no espírito da lei para sabermos como foi concebido o modelo de participação cidadã na CRBV e depois contrastemo-lo com a práxis 99 Para García-Guadilla (2005: 97, tradução nossa), esta participação da sociedade civil na CRBV foi o “resultado de transformações das redes informais existentes nos anos oitenta e grande parte dos anos noventa, em redes formais e institucionalizadas, a criação e institucionalização de novas redes nacionais de caráter formal e eletrônicas junto com a continuidade e reforçamento das redes informais e submergidas preexistentes e o surgimento de alianças, comunicação e intercambio com redes internacionais por através de meio eletrônicos”.

social para saber de suas fortalezas e debilidades.

Na realidade, a discussão sobre o modelo de democracia a ser adotado será o fio condutor e motivador de tensões nos debates entre o oficialismo chavista e a oposição. Tal como visto acima, o máximo que a Constituição de 1961 concebia em termos de participação estava consagrado no direito de votar, e o tipo de associação política por excelência estava circunscrita aos partidos políticos, o qual mediava entre o Estado e a sociedade. Tendo em vista não somente o aspecto legal da questão, mas as consequências das crises advindas do sistema de partidos até então predominante, os constituintes de maneira geral queriam superar essa realidade, precisamente esta limitada visão de participação e de organização da vida política, na sua forma de representação política (Reyes, 2001: 113).

Nesse sentido, e tendo presente o que significou o sistema representativo até aquele momento, de maneira geral, os constituintes se moveram em três direções: “os que consideravam que havia que liquidar a representação e quem defendiam que esta devia coexistir, subordinada à democracia participativa”. Uma terceira posição via na democracia participativa “um incremento da representatividade” (Salamanca, 2004: 96, tradução nossa).