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A VISÃO ELITISTA DA DEMOCRACIA

Depois de Mosca e Pareto, Schumpeter é considerado um dos mais importantes teóricos político do século XX, contribuindo com o refinamento do elitismo democrático, cujas principais ideias foram esboçadas na obra Capitalismo, socialismo e democracia. Na parte IV da obra (socialismo e democracia) o autor apresenta um problema muito claro: equacionar o problema da democracia, tendo em vista a forma como a ditadura do proletariado a percebe. Os socialistas defenderiam a democracia sempre e quando esta contrarie seus interesses? A resposta de Schumpeter a esta pergunta é não. Para o autor, os socialistas apoiam a democracia em uma única hipótese: desde quando não contrariem seus interesses. Desde que o interesse maior para os socialistas seja o de liquidar o capitalismo, não importa se o método político seja não democrático.

Segundo Schumpeter, os não socialistas ou aqueles que se professam fervorosos democratas, também podem, muitas vezes,

incorrer em práticas não democráticas em nome de certos valores e interesses. Neste caso, estariam pisando o mesmo terreno que os socialistas. Muitas vezes, a profissão de fé em um dogma, seja ele socialista ou liberal, pode levar os seus adeptos a apoiarem ações não democráticas diante de variadas circunstâncias. Este é o caso de líderes políticos como Mussolini e Hitler (por exemplo), ou mesmo de sangrentas ditaduras, que exerceram o poder da forma mais execrável possível, em sociedades tidas como capitalistas e “modernas”, cujo exercício do poder se deu em sociedades tidas como capitalistas e “modernas”.

Para Schumpeter, uma vez definida a democracia como um método político para a tomada de decisões, sejam elas legislativas ou administrativas, “não pode, mais do que outro método, ser um fim em si mesmo” (Schumpeter, 1961: 296). O método democrático delineado por Schumpeter teria a função de limpar o campo político dos aspectos valorativos. A caracterização de tal método, requiriria, por sua vez, indicar por “quem” e “como” essas decisões são tomadas? A definição mais elaborada de democracia de Schumpeter dependerá da conceituação destes elementos. Todas as dificuldades que possam advir do tratamento dessa questão podem ser solucionadas com facilidade, segundo Schumpeter, “contanto que estejamos dispostos a abandonar o governo do povo e substituí-lo por um governo aprovado pelo povo” (Schumpeter, 1961: 300).

A expressão citada acima coloca em evidencia duas coisas: a crítica ao modelo democrático direto de Rousseau, e por consequência, o elitismo20 atenuado de Schumpeter, se comparado com Mosca e

Pareto. Para o autor, além da democracia direta, existem outras formas de participação. Entretanto, seu realismo político adverte: “o povo jamais governa, mas sempre pode governar por definição” (Schumpeter, 1961: 301). O próximo passo de Schumpeter seria o de mostrar os limites da doutrina clássica da democracia, para então argumentar em 20 Segundo Peter Bachrach (1967: 20), a defesa moderna do elitismo está baseada no postulado de que “o bem de um povo livre e da própria civilização depende da capacidade dos dotados para conduzir as maiorias que atacam seus ditames, com vistas ao bem-estar geral”. Neste sentido, segue o autor, todas as teorias da elite descansam em dois supostos básicos: primeiro, que “as massas são intrinsecamente incompetentes, e segundo, que são, no melhor dos casos, matéria inerte e moldável à vontade”. Mas que no pior dos casos, “são seres ingovernáveis e desenfreados com uma tendência insaciável a minar a cultura e a liberdade”.

prol do modelo democrático de elites que competem entre si na manutenção o poder político.

O método democrático da doutrina clássica, diz Schumpeter, “é o arranjo institucional para se chegar a certas decisões políticas que realizam o bem comum” (Schumpeter, 1961: 305), sustentada também no pilar da vontade comum. Por algumas razões obvias, este é um método que não se sustenta por si só. Primeiramente, argumenta Schumpeter, não há consenso em torno do que seja o “bem comum”, pois para diferentes grupos e pessoas tal bem pode significar coisas diversas. Em segundo lugar, é possível que em muitos aspectos da vida de um país as pessoas e grupos convirjam para uma ideia de bem comum21, mas pode ser também que surja no campo individual mais

divergências do que convergências. Em terceiro lugar, o utilitarismo poderia ser uma doutrina suficientemente forte para consolidar uma ideia de “bem comum” e de “vontade geral”, mas sua debilidade está no fato de que os utilitaristas do século XVIII não previram as mudanças radicais que ocorreram na situação e hábitos da sociedade burguesa dos séculos XIX e XX.

O argumento de Schumpeter é mais sutil: uma Vontade Geral não é possível porque nem sempre agimos de acordo aos preceitos racionais, podendo qualquer um “ser facilmente transformado psicologicamente em multidão e levado a um estado de frenesi” (Schumpeter, 1961: 313). Esta é uma situação da qual não escapa nem um leitor de jornal ou até um deputado ou senador. Se o agir de forma racional constitui um fator determinante para a formação de uma “vontade geral”, parece que a formação dessa vontade estaria fadada ao fracasso, já que a maioria de nossas ações estão “contaminadas” por nossas paixões. O indivíduo fala, deseja, sonha, resmunga, diz Schumpeter, mas, ordinariamente, “esses sentimentos não chegam a ser aquilo que chamamos vontade, o correspondente psíquico da ação responsável e intencional”. Consequentemente,

21 Cunningham (2009) comenta que Tocqueville frequentemente escreveu como se a vontade da maioria fosse a vontade do povo, de tal forma que a votação majoritária seria a expressão de um autogoverno popular que ele viu na América. Schumpeter, ao contrário, “para quem não há uma coisa tal como soberania popular, via isso como uma suposição não fundamentada de todos os teóricos clássicos. Se ele estava certo ou errado nesta questão, a crítica mostra que autores como Tocqueville deixaram pendentes questões sobre o significado do termo ‘democracia’”.

O cidadão típico, desce para um nível inferior de rendimento mental logo que entra no campo político. Argumenta e analisa de uma maneira que ele mesmo imediatamente reconheceria como infantil na sua esfera de interesses reais. Torna-se primitivo novamente. O seu pensamento assume o caráter puramente associativo e afetivo (Schumpeter, 1961: 319).

Diante desse protótipo de cidadão, a conclusão de Schumpeter não é nada otimista: ao invés do povo ser a causa primeira do processo politico, ele é o resultado. A doutrina clássica da vontade geral acabou gerando a apatia ao invés de autonomia. Dada a impossibilidade de o modelo democrático clássico sustentar-se em critérios puramente racionais, que permitiria aos cidadãos terem uma opinião bem definida sobre os problemas que afetam uma nação, Schumpeter pensa inverter a lógica democrática clássica; lógica essa que coloca em segundo plano o papel dos representantes no sistema político.

O modelo de democracia de Schumpeter procura inverter os papéis desses dois elementos, passando a colocar o povo num papel secundário e os representantes em primeiro plano. A democracia passa a ser pelo povo, cuja função será a de formar o governo executivo. Daí a sua definição de democracia: “é um sistema institucional, para a tomada de decisões politicas, no qual o indivíduo adquire poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos do eleitor” (Schumpeter, 1961: 328)22. Assim, a “vontade geral” do modelo democrático clássico

é substituída pela “vontade manufaturada”, corporificada na figura das lideranças que disputarão no mercado político. Na prática, o método democrático de Schumpeter de escolha de lideranças, desloca a clássica “vontade do povo” para a “vontade da maioria”.

Schumpeter não deixa dúvidas quanto ao resultado almejado por seu método democrático: “evitar o estouro da boiada”. Tal método 22 Depreende-se do modelo de Schumpeter também que “a democracia não significa nem pode significar que o povo realmente governa em qualquer dos sentidos tradicionais das palavras povo e governo. A democracia significa apenas que o povo tem oportunidade de aceitar ou recusar aqueles que o governarão […] A democracia é o governo dos políticos” (Schumpeter, 1961: 346).

funcionará bem nas grandes nações industrializadas do tipo moderno, as quais deverão selecionar os homens de qualidade suficientemente alta, mas desde que não se estenda demasiado nas decisões políticas; desde que tenha uma burocracia estatal bem treinada e ágil para que possa dar respostas rápidas aos cidadãos; e que seja tolerante com as diferenças de opiniões.

Ao analisar o modelo elitista de democracia, Maconheiro diz que o modelo representa essencialmente um mecanismo para escolher e autorizar governos, e não uma espécie de sociedade nem um conjunto de fins morais; o mecanismo consiste de uma competição entre dois ou mais grupos escolhidos por si mesmo de políticos (elites), agrupados em partidos políticos. Os votantes os qualificarão para governar até as próximas eleições; a resolução de problemas políticos não compete aos votantes, mas aos eleitos; o papel do povo é produzir um governo. Portanto, o exercício da cidadania ficaria restrito a participações periódicas em eleições, procedimento que teria a finalidade de evitar a tirania.

Vimos que na perspectiva de Schumpeter, a democracia fica reduzida a um pluralismo partidista, esfera de onde surgem as elites em concorrência no mercado eleitoral, dotadas, quem sabe, de umas qualidades que não possuem os demais mortais das grandes massas urbanas do capitalismo tardio. Neste caso, eleições periódicas para a escolha das elites políticas parece constituir um critério bastante razoável, na perspectiva de Schumpeter, para poder diferenciar entre regimes democráticos daqueles que não o são. A diferença entre as elites políticas de regimes não democráticos e democráticos está no fato de que aquelas não são escolhidas por procedimentos eleitorais. Resta-nos saber se o método democrático de Schumpeter23, é suficientemente

blindado a ponto de ficar imune às críticas de outras teorias democráticas.

A obra de Schumpeter analisada acima foi escrita num contexto em que a democracia representativa parecia perder forças em função do socialismo que dominava o leste europeu. Segundo os socialistas, o 23 Também presente nos trabalhos de Dahl e Sartori, embora, segundo Pateman (1992: 14), a ênfase na estabilidade do sistema político é maior nestas obras do que na de Schumpeter, “mas a teoria democrática comum a todas elas descende diretamente do ataque que este autor fez à teoria 'clássica' da democracia”.

reino da igualdade social e política seria implementado mais tarde ou mais cedo: era uma questão de tempo. Mas antes era necessário limpar o terreno, deslocando do meio do caminho, a pedra chamada “democracia burguesa”. Enquanto no lado oriental do planeta a democracia “não burguesa” não se concretizava, de outro lado, a democracia representativa avançava vertiginosamente, desta vez estimulada, inclusive, pelos próprios movimentos que antes visavam a sua extinção: “a esquerda na Europa ocidental, aí incluídos os grandes partidos comunistas, é quase exclusivamente parlamentar democrática […]. A esquerda rendeu-se à democracia. Aceitou o governo representativo, as eleições multipartidárias e os eleitorados amplos” (Hirst, 1992: 7-8).

Segundo Macpherson (1978: 82), o modelo shcumpeteriano deliberadamente esvazia o conteúdo moral rousseauniano. Nesse sentido, o propósito da democracia, segundo esse modelo, é o de registrar os desejos do povo tais como o são, e não contribuir para o que ele poderia ser ou desejaria ser. Nesta perspectiva, a democracia se assemelha ao mecanismo de mercado: votantes são consumidores e políticos são empresários. O modelo presume também que o único meio de obter o necessário fornecimento de bens políticos, e distribuí-los na proporção das demandas sociais, é um sistema empresarial como o que opera no modelo padrão de uma economia de mercado concorrencial. A elite governante resultante do processo majoritário no processo democrático teria como finalidade precípua equilibrar a procura e a oferta de bens políticos. Logo, eliminado o elemento ético marcante do modelo Rousseauniano, o modelo de Schumpeter trata os cidadãos como simples consumidor políticos, e a sociedade política simplesmente como uma relação do tipo mercado entre eles e os fornecedores de mercadorias políticas (Macpherson, 1978: 84). A concorrência entre as partes produziria um equilíbrio social.

Segundo Macpherson, duas alegações do modelo schumpeteriano se destacam: a primeira é a de que o modelo não é justificatório, mas apenas expositivo e explicativo, e a segunda alegação está associada à analogia com o sistema econômico de mercado, ou seja, o sistema concorrencial de partidos elitistas enseja um equilíbrio ótimo da oferta e da procura de bens políticos e dá certa medida da soberania do cidadão consumidor. Segundo Macpherson, tudo o que segue dessas premissas é

que esse modelo é ótima coisa para o mercado. Mas um mercado não é necessariamente democrático (1978: 90). O sistema democrático elitista não é tão democrático com se faz crer, pois o equilíbrio que o modelo produz é um equilíbrio na desigualdade.

A considerável desigualdade de riqueza e chances de adquirir riqueza em sociedades desiguais como a sociedade capitalista coloca em cheque o equilíbrio democrático. Logo, a apatia política não é um fenômeno deslocado das relações econômicas, tal como sugere o modelo elitista. Ao invés de este modelo atenuar o problema da apatia, o promove mais ainda. Em segundo lugar, o modelo não oferece significativo volume de soberania ao consumidor. Na essência, o modelo tem poucos vendedores e peca pela falta de concorrência, ou seja, esse mercado político traduz-se em oligopólio (poucos partidos políticos). Num mercado oligopólico a demanda não é autônoma.

Portanto, a iniciativa política é sempre das elites. A unidade básica e irredutível do processo democrático não é o indivíduo com um conjunto autônomo e independente de demandas (Macpherson, 1978: 93). Pouco resta da argumentação do modelo elitista, segue Macpherson, a não ser a função de proteger contra a tirania. A existência de um sistema de elites em competição com um baixo nível de participação pelos cidadãos é uma exigência de uma sociedade em que há desigualdades.

Até que ponto o modelo democrático schumpeteriano é suficientemente resistente para poder sobreviver sem a possibilidade outros modelos? Se o modelo é passível de críticas e está sujeito a inconsistências, quais seriam estas? De onde partiriam?