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AUGE DO SISTEMA POPULISTA DE CONCILIAÇÃO

Vimos que no período gomecista e perejimenista, as forças armadas constituíam o principal ator político e condutora da vida nacional. Agora, nas entrelinhas da Constituição de 1961, passam a ser uma instituição apolítica, obediente e não deliberante, cuja função será assegurar a estabilidade das instituições democráticas, ficando integradas à administração pública. Por outro lado, o papel dos partidos ganhará relevância, e serão os principais atores de mediação entre o povo e os Poderes Públicos. A Constituição de 1961 também agregou os Estados e Municípios como atores regionais, formalmente autônomos, porém controlados. No caso dos governadores, estes serão escolhidos de forma indireta (bionicamente) pelo Presidente da República. E quanto aos prefeitos, estes foram eleitos pelo povo em sistema de lista fechada com representação proporcional (Salamanca, 2006: 14). Contraditoriamente, num processo democrático de pelo menos 30 anos de vigência, governadores e prefeitos só serão eleitos diretamente pelo povo a partir de 1989, em função de sugestões de descentralização feitas pela COPRE55 a partir de 1984.

Segundo Rey, para entendermos o sistema político estabelecido pelo e a partir do PPF, é necessário levarmos em conta não somente o estudo da Constituição que o delimita e lhe dá formas. É preciso ir além, 55 Comissão Presidencial para a Reforma do Estado.

já que se trata de um sistema “baseado em razões utilitárias”, definido pelo autor como:

Um sistema populista de conciliação, que está constituído por um complexo sistema de negociação e acomodação de interesses heterogêneos, em que os mecanismos de tipo utilitário iam desempenhar um papel central na geração de apoios ao regime e, consequentemente, na manutenção do mesmo (Rey, 1991: 543, grifos do autor, tradução nossa). A tese de Rey é a de que para além da formalidade das normas constitucionais e seus princípios gerais, se adota um conjunto de regras informais e acomodações institucionais que visam conciliar diversos interesses heterogêneos em disputa. Ou seja, por um lado, conciliar interesses de uma minoria poderosa econômica e politicamente, tratando que apoiassem o “bom” funcionamento do sistema, e de outro lado, atender necessidades básicas de uma imensa parcela da população, apelando para o ideais da democracia liberal de liberdade, justiça e bem- estar. De ambos os lados, o fator confiança nas instituições recém inauguradas foi fundamental para que o sistema se equilibrasse. O orquestramento de todo esse sistema estava, em primeiro lugar, nas mãos do Estado venezuelano, e, em segundo lugar, estavam os partidos que faziam a mediação entre o Estado e a sociedade civil56. Quer dizer,

depois da ditadura de Jiménez, se havia possibilidade de “volta à política” novamente, esta volta teria o Estado e os partidos como os personagens mas importantes no cenário da política futura, e a ideia de democracia aparecia como sinônimo de partidos políticos (Arenas, 2001: 193).

O excesso de recursos provenientes da exportação de petróleo e a capacidade de parte do Estado em distribui-los, por si só, parece constituir uma forte variável de explicação sobre a consolidação do sistema democrático venezuelano ao longo da década de 60 e 70. Em 56 Instaura-se a partir daí o que Rivas Leone (2008; 35-36) define como “a partidocracia”: governo dos partidos e para os partidos, na medida em que estes se apropriaram não só da esfera política, mas também do que concerne aos estratos sociais e econômicos. Os partidos tendem a monopolizar tanto o poder político como a vida política organizada.

muitos países, a combinação democracia e petróleo nem sempre acaba em bons resultados, mas na Venezuela, apesar das altas e baixas do preço dessa matéria prima de exportação, a democracia vem se mantendo. Isso significa que para além de fatores estruturais, variáveis políticas e institucionais explicam a consolidação do sistema. As massas encontraram confiança suficiente nos líderes e organizações então nascentes, acreditando que estes não falhariam em suas promessas na satisfação das aspirações e necessidades populares. De tal maneira que as grandes diferenças socioeconômicas existentes não vieram à tona, tendo em vista dois fatores: “o papel desempenhado pelo Estado no processo de desenvolvimento, a quantia e natureza dos recursos que dispunha e, principalmente, o funcionamento de certos mecanismos democráticos fizeram que aquele se convertesse em um amortecedor e atenuador dos conflitos sociais” (Rey, 1991: 549, tradução nossa)57.

Quadro I

Evolução do sistema de partidos na Venezuela

___________________________________________________________________

Etapa Período Definição

___________________________________________________________________ 1ª 1958/1968 Luta e consolidação democrática

2ª 1973/1988 Bipartidarismo estável

Crise “viernes negro”

3ª 1989/1992 Descentralização: COPRE

Caracazo

1992 Tentativas de golpe de estado

1993 Triunfo de Caldera CONVERGENCIA 1995 Novos atores locais

1998 Eleições de 1998 e triunfo de Chávez Frías

1999 CRBV

Fonte: adaptado de Rivas Leone, 2008: 21.

57 Na análise de González Fuentes (2006: 178), o esquema rentista eximiu o Estado da responsabilidade de extrair recursos de um setor da sociedade para transferi-los a outro, “atendendo de uma maneira satisfatória as demandas e expectativas dos diferentes setores sociais sem gerar conflitos distributivos”.

Antes de seguirmos na descrição da evolução da democracia na Venezuela, é importante fazermos alguns esclarecimentos mais detalhados sobre o papel dos modernos partidos, surgidos em meados do século XX. É importante destacar que, ao contrário do que ocorreu no continente europeu, e em alguns países da América Latina, no momento em que surgem os partidos modernos venezuelanos, ainda não havia uma organização de trabalhadores do campo e urbanos organizados. Isso significa que na Venezuela, a organização sindical é posterior ao nascimento dos partidos, sendo que a organização e criação de grande parte daqueles dependeu essencialmente destes. De igual modo, essa foi a relação dos partidos com as organizações de bairros e outras organizações da sociedade civil.

Dada a falta de desenvolvimento social em que nasceram os partidos, explica Rey, “estes tiveram que assumir diversas funções, tanto políticas como sociais, que em outros países foram realizadas por estruturas autônomas e especializadas” (Rey, 1991: 550, tradução nossa). Isto explica, segundo o mesmo autor, o estilo “populista” dos partidos modernos nascentes, cujas características são: o paternalismo, o apadrinhamento e o clientelismo burocrático, dentre outras58. Frente a

uma situação de quase abandono do cidadão por parte do Estado, o partido se converte, para os setores populares, “em protetor e gestor frente ao Estado e em fonte de emprego e em via de ascensão econômica e social” (Rey, 1991: 550, tradução nossa). Acrescentaria que além dos setores populares, o partido também será fonte de benesses tanto para empresários como para sindicatos, forças armadas e Igreja Católica. Em todo caso, e concordando com Rey (1991: 554, tradução nossa), “se desenvolverá um sistema de participação e representação de caráter semi-corporativo, distinto e paralelo ao estritamente democrático”, 58 Segundo Trenado (1994: 125), os partidos desta época tem uma estrutura dual, no sentido de que, em primeiro lugar, “contam com uma estrutura vertical que segue a divisão político- administrativa do país (nacional, estadual, distrital e municipal). No vértice estão os órgãos de direção nacional do partido, enquanto que na base se encontram os órgãos locais, integrados por comitês (organismos mais elementares de cada partido), cujo raio de ação são os bairros e casarios. A segunda estrutura é horizontal ou funcional e se sobrepõem à anterior. Estão constituídos para dar lugar na organização a diferentes grupos sociais relevantes: campesinos, obreiros, mulheres, profissionais e estudantes”. Na prática adotam o modelo leninista do centralismo democrático, e de acordo à descrição feita de suas organizações, o funcionamento de sua estrutura vertical é rígida, centralizada e disciplinada.

como forma de garantir a funcionalidade do novo sistema59.

Aparentemente, o sistema democrático representativo venezuelano, iniciado com a caída de Pérez Jiménez dava sinais de concorrência entre partidos e demonstrava um caráter multipartidarista, aproximando-se do modelo das poliarquias descrito por Robert Dahl. Entretanto, o que parecia ser multipartidarismo, pouco a pouco foi adquirindo um caráter bipartidarista. Segundo os analistas políticos, o multipartidarismo teria vigorado a partir de 1958 até 1973; a partir de 1973 a 1993 prevalece o bipartidismo, e a partir dessa data o bipartidismo teria entrado em definhamento (González Fuentes, 2006: 180).

Quadro II

Multipartidarismo e bipartidarismo

Presidente Multipartidarismo Bipartidarismo Ano/mandato Rómulo Ernesto

Betancourt AD 1959-1964

Raúl Leoni Otero AD 1964-969

Rafael Caldera Rodríguez COPEI 1969-1974

Carlos Andrés Pérez AD 1974-1979

Luís Herrera Campins COPEI 1979-1984

Jaime Lusinchi AD 1984-989

Carlos Andrés Pérez AD 1989-1993

Rafael Caldera Ocaso do

bipartidismo 1994-1998 Fonte: pesquisa do autor

Se analisamos as disputas eleitorais no período compreendido entre 1958 a 1993, ocorreram sete disputas, e nos deparamos com o fato de que COPEI governou apenas em dois momentos: uma na vigência do multipartidarismo e outra no período bipartidarista. Ao longo do 59 Os atores do sistema estão assim distribuídos: 1) O Estado (proprietário dos recursos petroleiros) como epicentro da sociedade e como ator mais vigoroso; 2) Os partidos, canal de vinculação entre o Estado e a sociedade; 3) As elites: a- militar; b- econômicas, e c- hierarquia eclesiástica católica; 4) A sociedade civil (com pouca expressão política no decorrer do período); 5) Organizações intermediárias (grêmios, associações civis voluntárias e sindicatos).

período, AD governou cinco vezes, vencendo duas vezes a disputa no multipartidarismo e três vezes durante o bipartidarismo. Portanto, dizer que houve um período relativamente longo de prevalência do bipartidarismo parece não dizer muita coisa do ponto de vista da análise política. O que sim revela é que AD e COPEI se consolidarão como partidos maioritários ao longo do tempo. Por outro lado, revela também que ao longo do período citado, COPEI vai se transformando em um partido anão ao lado do gigante AD60.

AD passou por dois períodos importantes: o período ideológico, situado na fase multipartidarista, onde o partido ganhava eleições principalmente por haver sido o partido das reformas populares, canal de mobilização de setores não oligárquicos do país; e o período “máquina política”, iniciado pelo primeiro mandato do governo de Carlos Andrés Pérez, no período bipartidarista. É o momento em que AD tende a desaparecer definitivamente como um partido ideológico (Preciado & Rodríguez, 1997: 45).

O regime de “máquinas políticas” instalado por AD coincide com o período em que ocorrerá o auge da migração do campo para as cidades, no final da década de 60 e durante a década de 70. De agora em diante, os dirigentes dos partidos passaram a desempenhar o papel de gestores na solução de pequenos problemas61, e tudo passou a ser

matéria de favores e de intercâmbios, de tal modo que “todas as instituições foram corrompidas pela ação do clientelismo, mas dentre todas, a que mais sofreu seus embates foram os Conselhos Municipais, verdadeiras 'caixas dois' das máquinas políticas” (Preciado & Rodríguez, 1997: 49, tradução nossa). Segundo os autores, foi nestes espaços locais 60 Nas palavras de Rivas Leone (2008: 18), ditos partidos mantiveram o controle e domínio político, e uma intervenção direta e contínua no campo social, repartindo o país e fazendo um forte escudo contra as pequenas possibilidades da oposição. Partidos como o MAS, La Causa R e PCV só ganharão vida própria a partir do contexto de reformas políticas de 1984 e com as eleições diretas para governadores e prefeitos em 1989.

61 Desde “tirar um preso até conseguir umas pranchas de zinco, sacos de cimento ou providenciar um dinheiro para um enterro […]. O todo poderoso chefe ocupava a totalidade do seu tempo costurando as lealdades necessárias para ganhar as próximas eleições” (Preciado, 1997: 48-49, tradução nossa). Na descrição de Preciado, não eram somente os pobres ou campesinos desesperançados, os que batiam às portas das oficinas do partido. Também a elas recorriam “altos empresários em busca de créditos suaves, dólares preferenciais ou de exonerações de qualquer tipo; aspirantes a reitores; artistas e intelectuais solicitando bolsas para estudar no estrangeiro […].

onde se concentraram os chefes intermediários, aqueles que manejavam a massa de pobres do partido.

Ao fazermos um balanço do sistema político venezuelano do período até aqui estudado para entendermos as realizações da democracia nesta época, recorro a Rey (1991: 563), para quem os resultados são ambivalentes, já que apresenta aspectos positivos e negativos. Quanto aos aspectos positivos do campo político: preservação do Sistema Político venezuelano; socialização das regras do jogo da democracia representativa; princípio da alternância sem traumas maiores; consolidação de um sistema nacional de partidos de massa nacional; formação de lideranças e de uma elite política; baixo índice de abstenção eleitoral. No campo econômico e social: controle das riquezas básicas (petróleo, ferro, alumínio); criação de uma infraestrutura para impulsionar a substituição de mercadorias; política distributiva e de gastos nas áreas sociais.

E quanto aos aspectos negativos, nos últimos anos vem se desenvolvendo uma crise que afeta tanto aos dirigentes e elites políticas, como o conjunto dos partidos, evidenciada nos seguintes pontos: desprestígio dos líderes políticos nos vários âmbitos institucionais; tendência ao crescimento das críticas provindas de parte da população em relação à “partidocracia62”; falta de democracia interna na vida dos

partidos, bem como orientações pragmáticas dos mesmos; empobrecimento dos conteúdos das mensagens de caráter político; propaganda eleitoral massiva e pouco esclarecedora; falta de controle do representado sobre o representante; generalização da corrupção; falta de confiança de parte da população em relação às instituições legislativas e judiciárias; baixos resultados na área social; padrão de desenvolvimento concentrador e desigual, e aumento das cifras absolutas de pessoas em situação de pobreza e marginalização.

A análise do sistema político venezuelano correspondente ao 62 Segundo Coppedge (2005: 190), a partidocracia promoveu a governabilidade de 3 maneiras, as quais podem ser sintetizadas como segue: 1) Os partidos eram amplamente representativos da sociedade, os quais tinham uma grande quantidade de filiados e conseguiam canalizar as demandas dos trabalhadores, dos campesinos e outros setores; 2) AD e CPEI praticaram uma disciplina férrea, o que trouxe como consequência, a extensão do controle destes dois partidos sobre organizações não partidistas que haviam politizado; 3) Atuavam como blocos poderosos e de mobilização de consenso, forjando boas relações com setores estratégicos como os militares e o setor privado.

período pós ditadura de Pérez Jiménez aos dias atuais nos remete a diferentes etapas num processo contínuo de consolidação e transformações. Vimos que a primeira etapa se estende de 1958 a 1973, a qual corresponde ao período de um alto nível de centralização político- administrativa, impulsionada pelo Estado, definida como a etapa de consolidação do “sistema populista de conciliação” (Rey, 1991). A segunda etapa abarca 1973 a 198863, auge do sistema político, época em

que o bipartidarismo se orienta no sentido de instaurar um regime partidocrático, com capacidade para neutralizar eventuais esforços desestabilizadores internos ou externos ao sistema (Jiménez, 1999: 37). Até aqui, o consenso e a “harmonia” do sistema político venezuelano se manteve em função de mecanismos utilitários, não formais que extrapolavam o campo normativo e constitucional, resultando num sistema semi-corporativo” (Rivas Leone, 2008: 283, tradução nossa)64. A

última etapa, é considerada uma etapa de profunda crise do sistema e teria iniciado no final da década de 80, e segundo a perspectiva de muitos analistas da política contemporânea venezuelana, prolonga-se aos dias atuais.