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A DERROCADA DE UM LADRÃO

No documento Coisas da Vida no Crime (páginas 147-152)

Adriano foi expulso do morro pelo gerente-geral do tráfico, sob a acusação de estar atraindo a repressão policial para a favela. A esse respeito, uma parenta sua comentou: “Mandaram ele ir dar um rolé, pois ele estava trazendo problemas demais para o morro. Ele deu foi sorte de não matarem ele, pois ele estava aprontando muito.”

E um dos principais responsáveis da firma explicou-me:

Os canas estavam vindo aqui direto e já não era nem mais por causa de nós, por causa do tráfico mesmo. Só queriam pegar ele. Geral aqui quase rodou.

Vieram em todas as casas, menos a dele. Dei vários toques no [Adriano], mas ele tava demais, não tomava jeito. O papo não foi nem de que ele não podia mais voltar, mas do jeito que ele tava, não dava pra continuar.

Ao referir-se ao “jeito” como Adriano estava, o responsável aludiu ao que todos sabiam, mas por uma questão de decoro, evitavam falar explicitamente. Adriano, que fora sempre um bandido muito considerado e que acumulara muitas lutas pelo crime, tornara-se usuário de crack e passara a roubar cada vez mais para arcar com o seu acelerado ritmo de consumo de drogas. Ele fumava zirrê – cujo nome original fora antes desirré, como a palavra “desejo”, em francês –, que são cigarros de crack misturados com maconha. Devido ao seu aspecto visual semelhante ao de um baseado de maconha,

137 o consumo de zirrê é menos estigmatizado do que o consumo de crack em latinhas de alumínio, copos plásticos ou cachimbos. Ainda assim é muito mal visto consumir crack de qualquer modo que seja e a informação sobre um bandido ser usuário desta droga é algo que o desacredita fortemente entre seus pares.

Para disfarçar o seu vício, Adriano evitava ir pessoalmente à boca de fumo para comprar drogas e pedia para algum dos cracudos81 que perambulavam pelos arredores da boca para comprarem em seu lugar, dando-lhes R$2,00 em troca deste serviço. Mas, evidentemente, todos percebiam do que se tratava, quando o viam estacionar próximo à boca, chamar usuários de drogas à janela e depois aguardar o seu retorno. Uma estratégia mais bem sucedida em seu disfarce era ligar para um mototaxista de sua confiança, que trabalhava durante toda a madrugada, e pedir-lhe para vir buscar o dinheiro em sua casa, ir à boca e depois voltar com a droga. Era assim que ele fazia para reabastecer-se quando o crack acabava antes de ele sentir-se saciado. Uma coisa é ser visto comprando crack às 22h da noite; outra muito pior é ser visto novamente comprando crack às 4h da manhã.

Outra estratégia empregada em seu disfarce era, sempre que possível, passar a noite em hotéis, onde podia fumar à vontade, sem preocupar-se com o que os seus vizinhos estariam pensando. Como no morro, os vizinhos são sempre muito fofoqueiros – ou pelo menos é isso o que todos dizem –, fumar em sua própria casa era um empreendimento muito tenso, o que não o dissuadia de fazê-lo, quando não havia dinheiro suficiente para pagar um pernoite em hotel. Adriano tentava esconder o cheiro do crack, fumando dentro do banheiro, com o chuveiro permanentemente ligado, usando toalhas para vedar as frestas da porta e da janela. Em uma das casas em que morou, em vez de disfarçar o uso de drogas, o seu hábito conseguia piorar a situação, pois ele esvaziava a caixa d’água que compartilhava com os vizinhos. Quando a água acabava, ele jogava pó de café numa chaleira, para exalar um odor mais forte que o do crack.

De vez em quando, Adriano aparecia com um relógio caro no pulso e coberto de joias de ouro – tudo roubado – mas logo, logo aparecia sem nada novamente, pois vendia todos os objetos de valor que roubara e gastava com orgia – como ele se referia aos seus vícios/prazeres. Não gastava apenas com crack e pernoites em hotel, mas também com idas a bailes funk, onde gostava de beber muito, pagar a bebida de amigos

81 Crackudos ou crackeiros é como são pejorativamente chamados os usuários de crack notórios, que se encontram em situação de mendicância, sempre a espera de algum trocado para gastar comprando crack.

138 e mulheres – inclusive a minha –, e cheirar vidros de lança-perfume. O consumo deste solvente é bastante distintivo entre os bandidos, pois cada unidade custava R$150,00, à época da pesquisa. Como Adriano era muito vaidoso, ele também comprava sempre alguma roupa nova para ir ao baile, pois não gostava muito de repetir as mesmas roupas.

Quem o via sempre impecavelmente vestido, normalmente acima do peso e gastando dinheiro como se estivesse sobrando, não poderia imaginar que ele tinha problemas com abuso de crack. Adriano se forçava a comer bastante para controlar a perda de peso que o afligia em algumas épocas, vangloriando-se de sua beleza, quando conseguia ficar bem barrigudo. Ele fazia de tudo para não deixar transparecer em sua imagem a difícil fase que vinha passando em sua vida doméstica, sendo severamente criticado por todos os seus parentes, pois não ajudava a fazer as compras de comida, pagar as contas da casa e nem contribuía com as despesas de seus próprios filhos. Como me disse um amigo que o acolheu em sua casa durante alguns meses, “ele só pensa nele, em segundo lugar, nele, em terceiro, nele mesmo, e mais dez vezes nele, antes de pensar em alguém.”

Para manter o seu estilo de vida dispendioso e dito egoísta, Adriano trabalhava – isto é, saia para roubar na pista – quase todos os dias. Em tempos passados, quando ainda mais jovem, ele fora um ladrão muito prestigiado, que se envolvia em assaltos maiores. Mas agora que se tornara usuário de crack, não tinha mais a cabeça no lugar, como diziam, para esperar uma fita boa e planejar as suas ações com calma. Adriano passara a só roubar carros comuns e transeuntes, o que rendia pouco dinheiro e precisava ser feito com muita frequência para dar conta de seus elevados gastos. Tais práticas culminaram em sua expulsão do morro, sob o argumento de que ele estava atraindo a repressão policial para a favela.

De fato, muitos moradores e familiares vinham relatando que, além dos policiais militares da UPP local estarem mostrando uma foto de Adriano, dizendo tratar-se de um criminoso procurado e muito perigoso, também a Polícia Civil vinha sistematicamente tentando encontrá-lo para cumprir não apenas o mandado de recaptura que já existia, como também oito novos mandados de prisão preventiva recentemente expedidos.

Adriano passara a roubar tanto e isso ganhara tal notoriedade que algumas vítimas vinham ao morro pedir de volta os seus veículos roubados ou demais pertences. Uma delas contou que, ao registrar a ocorrência na delegacia, os policiais lhe haviam mostrado a foto de Adriano, dizendo ser este o responsável pela maioria dos roubos praticados na região.

139 A delegacia da área começara inclusive a mandar recado aos traficantes, pedindo que localizassem os carros que Adriano roubava. Poupavam assim o trabalho de vasculhar o morro atrás dos mesmos. Apesar de ser corriqueiramente chamado à atenção há alguns anos, ele continuava guardando carros roubados – os chamado bodes – dentro do morro, contando com que eles não seriam descobertos pela polícia e nem pelos demais traficantes. Mesmo antes de a UPP se instalar na favela, mais de uma operação policial tinha sido realizada no intuito de recuperar carros por ele roubados, o que lhe causara uma primeira expulsão da boca.

Após a ocupação do morro pela UPP, ele fora readmitido pela firma, mas em vez de ficar sossegado, como diziam, e trabalhar apenas para o tráfico, continuou roubando e trazendo bodes para a favela. Só que agora a polícia estava presente e recuperava os veículos antes que ele tivesse tempo de jogá-los fora, próximo a um morro inimigo, como sempre fizera. Foi, portanto, novamente expulso da boca e perdeu o direito de utilizar a arma com a qual praticava os assaltos.

Mesmo sem arma, ele não desanimou. Aprendeu um talento novo, como ele dizia, e passou a michar a fechadura e a ignição de carros para furtá-los. Os veículos sujeitos a esse tipo de furto – por não terem chaves codificadas – eram apenas os carros velhos de marca popular, não lhe oferecendo mais do que um aparelho de som para vender e pertences sem valor esquecidos no banco de trás. E sobre isso, a sua cunhada dizia: “Você fica roubando pobre! Toma cuidado, porque pobre roga praga.”

Mas o objetivo não era ficar com esses carros. Passado algum tempo, ele os devolvia, mas enquanto isso, utilizava-os para praticar roubos a transeuntes, mesmo sem portar arma. Ele roubava na sugestão, escondendo um celular por debaixo da camisa, que fingia ser uma arma. Passou, inclusive, a roubar carros melhores, fechando-os com o “seu” carro velho e, convencendo a vítima de que estava armado. Uma das façanhas que ele me contou ilustra bem a maneira como vinha improvisando diante das condições adversas em que passara a roubar:

Fui, michei o carro e, quando entrei, tava com uma tranca de ré. Você nem acredita o que eu fiz. Coisa de artista! Fui de ré até bater com a traseira na traseira de outro carro. O cara saiu pra reclamar e eu já saí também, “foi mal, companheiro...”, rá! Peguei o carro dele e meti o pé.

No entanto, como ele não poderia trocar tiros com a polícia, caso fosse necessário empreender uma fuga, começou a praticar muitos assaltos no bairro onde ficava a favela, de maneira a evitar longos deslocamentos pela cidade. Foi assim que se tornou conhecido pela polícia local devido ao seu modus operandi e foi este o estopim

140 de sua expulsão da favela. Adriano recebeu um prazo para juntar os seus pertences e ir embora.

Ele conseguiu abrigo na casa de parentes que moravam em outro município próximo, mas nem assim sossegava. Ele continuava pegando a estrada para roubar no Rio de Janeiro e acabou vencendo o seu medo de roubar desarmado. Passara apenas uma semana após a sua expulsão e, ao tentar abordar um veículo esportivo importado, em um bairro da zona sul da cidade, teve o azar de se deparar com um motorista armado que reagiu a tiros, sem, contudo, atingi-lo imediatamente. Iniciou-se, então, uma perseguição pelas ruas da cidade, em que o ladrão fugia com um carro infinitamente menos possante – de motor 1.0 –, mas contava com uma vastíssima experiência de fugas espetaculares.

Adriano já havia conquistado certa distância, quando avistou uma viatura de polícia e precisou diminuir a velocidade, evitando, assim, chamar-lhe a atenção. Sua vítima transformara-se agora em algoz e alcançara-o, atirando em sua direção e forçando-o a empreender uma fuga pela contramão. Ainda assim, o outro carro alcançou-o novamente e, como chovia muito, o veículo do ladrão acabou derrapando e girando em uma curva, momento em que o perseguidor aproveitou para encostar ao lado de seu carro e efetuar mais tiros.

Adriano foi alvejado por um dos disparos, mas acabou conseguindo fugir e chegar vivo à sua casa. Mas que casa? Ele fora expulso do morro e não podia mais aparecer por lá. Também não podia dar entrada em um hospital e nem viajar para outro município esvaindo-se em sangue, com uma bala alojada em seu braço, em um carro perfurado por balas. Não havia outro jeito senão furar a proibição de voltar para o morro e buscar a ajuda de Tia Zuleica, a enfermeira que sempre tratara dos ferimentos de bandidos locais.

Ela limpou a ferida, fez um curativo e disse que não poderia retirar imediatamente a bala. Seria preciso esperar que a ferida desinflamasse e cicatrizasse para que ela então pudesse abrir novamente com um bisturi e fazer a extração. Mas havia outros problemas urgentes a resolver. Adriano não poderia estar no morro. Logo, a caminho de sua casa, onde pretendia descansar um pouco antes de partir, deixou um recado com a esposa de um dos chefes, explicando o que tinha acontecido. Era preciso deixar claro que não se tratava de um abuso, que ele tinha vindo apenas se tratar e iria embora de lá no mesmo dia.

141 Cerca de uma hora depois, vieram trazer-lhe um aparelho telefônico para que falasse com um dos patrões, mas quem ligou não foi nenhum deles e sim Roberto, que era o responsável de uma das bocas. Este foi bem duro ao telefone, alegando que não poderiam acolhê-lo no morro e que era imperativo que Adriano partisse o quanto antes.

Humildemente, este argumentou:

Assim que eu cheguei, eu mandei logo um recado pro [chefe] para ele saber que eu não to de abuso não. Eu fui baleado. Quase arrancaram o meu braço.

Já ensanguentei a minha casa toda. Só vim mesmo para me cuidar com a [Tia Zuleica], to esperando ela comprar uns materiais que estavam faltando pro meu curativo, vou passar lá de novo e meter o pé. Eu amo vocês, to morrendo de saudades de todo mundo, mas eu entendo que eu exagerei mesmo e que, por isso, o certo é eu ficar mesmo afastado.

Roberto perguntou pelo carro com que ele chegara à favela e Adriano esclareceu não ser este o da vítima que o baleara, dizendo ainda ter pedido a um dos rapazes da boca para jogá-lo fora. Antes de desligar, ele disse: “Eu vou até ver essa parada agora e checar se jogaram mesmo o carro fora.” Como era mentira sua – ele não tinha pedido a ninguém para dispensar o bode –, Adriano juntou uma pequena muda de roupas e foi logo buscar o veículo – totalmente perfurado e com um vidro quebrado – para jogá-lo fora por conta própria e ir logo embora, antes que algo de ainda pior lhe acontecesse.

Ele deixou o veículo em frente a um estabelecimento comercial da rua principal de onde saem os acessos à favela e desceu a rua a pé, escondendo o seu braço ensanguentado por debaixo de um casaco. Pegou um taxi até a rodoviária e, depois, mais dois ônibus e, finalmente, conseguiu chegar à casa de seus parentes, em outro município.

Pensamos todos que ele finalmente tomaria jeito, mas nem assim Adriano sossegou. Mal a sua ferida cicatrizou e ele voltou a praticar furtos de veículos populares com a utilização da micha. Cerca de três semanas após ter sido baleado, Adriano foi preso em flagrante enquanto, baleado e desarmado, furtava um carro em frente à residência do proprietário. Ele chegou a conseguir fugir com o veículo, mas os policiais atiraram nos pneus, impedindo-o de prosseguir.

No documento Coisas da Vida no Crime (páginas 147-152)